segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O Caminho da Beleza 07 - Epifania do Senhor

Mantinha-se firme, como se visse o Invisível! (Hb 11, 27)

Epifania do Senhor                    03.01.2021

Is 60, 1-6                 Ef 3, 2-3.5-6                       Mt 2, 1-12

 

ESCUTAR

Levanta-te, acende as luzes, Jerusalém, porque chegou a tua luz, apareceu sobre ti a glória do Senhor (Is 60, 1).

Os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo por meio do Evangelho (Ef 3, 6).

“Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mt 2, 2).

 

MEDITAR

Caminhar, buscar Deus. És tu mesmo, Senhor Jesus, que é nosso caminho, não através de manifestações deslumbrantes e maravilhosas, mas através do pequeno menino de Belém, de sua pobreza, de sua fragilidade, de sua discrição. Um recém-nascido é o futuro. Só se pode descobrir Deus com um coração de menino, voltado para o futuro, ávido por descobrir o mundo, ávido por encontrar e amar os outros.

(Bernard Prévost, 1913-?, França)

 

ORAR

    Deus se manifestou a nós... A ÁGUA de nosso batismo com a Fé de nossos pais, a Fé da Igreja, foi o primeiro SINAL desse desvelamento de Deus na noite. Ele nos pôs na rota, como os magos... que ele nos conserve no caminho. Deus SINALIZA! A cada um o seu, ajustado, adaptado... os magos, habituados a escrutinar o céu, veem ali esta estrela. Os pastores, sem dúvida, não conheciam senão a estrela do pastor... eles tiveram seu sinal, uma manjedoura. José teve seu sinal: a cidade de Davi, uma virgem... Os escribas e sacerdotes foram interpelados pelas Escrituras. Herodes: o rei. Jerusalém: os pagãos que afluíam pedindo-lhe a Luz. As próprias ovelhas do rebanho.... o “Pão” no espaço da manjedoura. Cada um desses sinais conduz ao Menino, diz alguma coisa sobre Ele. Para Maria não há sinal mediador no Natal: para ela seu sinal é simultaneamente a Realidade de Deus. Maria terá sempre um lugar à parte na economia sacramental. Pela graça, ela já está do outro lado do véu. O sinal que Deus lhe FAZ é o MENINO marcado por Deus. Mas também para o MENINO Deus SINALIZA: o ouro, o incenso, a mirra... eis o rei, sacerdote e profeta da Vida mais forte que a morte. Todos os sinais da criação convergem para Ele. A conversão do universo está em marcha, tão bem assinalada pela rota dos MAGOS: as nações pagãs (que tem parte na herança) e a estrela do céu que se junta à terra. Serão todos instruídos por Deus! Todos os homens, quaisquer que sejam, têm capacidade de ser instruídos por Deus. Os sinais diferentes para cada um, mas que convergem para o Filho. Nesse sentido, sim, o Islã é sinal de Deus, ele indica também o Menino... e cabe a nós estarmos muito atentos para o dizer. O sinal feito ao outro pode iluminar aquele que Deus me faz, ajudar-me a discerni-lo! Os magos procuravam o rei... eles interrogaram Herodes... os sacerdotes (o buscavam nas Escrituras). JERUSALÉM não reconheceu o tempo em que foi visitada. A partir de agora, não é mais em Jerusalém que ADORAREMOS em espírito e verdade. Ir até o fundo do sinal que Deus nos faz! Os magos negligenciaram a estrela... porque Jerusalém lhes parecia o berço ideal do Menino. É preciso que saíssem dos arredores... reencontrar o sinal que lhes garantia sua rota! E reconhecer nela o rei em suas aparências e entrar em ADORAÇÃO. Ir até o fundo da palavra das Escrituras (Deus oculto em seu interior): o ESPÍRITO VIVO. Ir até o fundo da manjedoura: será preciso COMER... e de todos os sacramentos também: o óleo, sinal da cura. Mas ir até o fundo do sinal é receber o REMÉDIO e entrar em adoração desse Deus que pode tomar as aparências da doença, da velhice para se exprimir como um radioso e definitivo NASCIMENTO; um nascer do sol.

(Christian de Chergé, 1937-1996, França)

 

CONTEMPLAR

S. Título, s.d., Alain Laboile (1968-), Bordeaux, França.




sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O Caminho da Beleza 06 - Sagrada Família de Jesus, Maria e José

    Mantinha-se firme, como se visse o Invisível! (Hb 11, 27)

Sagrada Família de Jesus, Maria e José              27.12.20

Eclo 3, 3-7.14-17               Cl 3, 12-21               Lc 2, 22-40

 

ESCUTAR

Meu filho, ampara o teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto ele vive... a caridade feita a teu pai não será esquecida (Eclo 3, 14.15).

Amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição (Cl 3, 14).

“Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição (Lc 2, 34).

 

MEDITAR


O SEU SANTO NOME

Não facilite com a palavra amor.

Não a jogue no espaço, bolha de sabão.

Não se inebrie com o seu engalanado som.

Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).

Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão

de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra

que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.

Não a pronuncie.

(Carlos Drummond de Andrade, 1902-1987, Brasil)

 

ORAR

      Simeão entra em cena, movido pelo Espírito (nomeado por três vezes). E é o Espírito que inspira em Simeão as palavras que revelam o mistério desse pequeno menino: “meus olhos viram tua salvação”. Simeão esperava a consolação de Israel, Ana (e muitos outros, se compreendo bem) esperava a libertação de Jerusalém... Todos os dois, visivelmente, estão cumulados. Ora, as palavras “consolação de Israel” e “libertação de Jerusalém” eram as que se empregavam no Primeiro Testamento à propósito do Messias. O papel do Messias, justamente, será o de trazer a salvação definitiva, a consolação, a libertação. Lucas está a nos dizer, por palavras veladas – veladas talvez para nós, mas muito claras para os familiares do Primeiro Testamento – que esta criança é o Messias que se esperava. As palavras de Simeão já o dizem: “Agora, Senhor, podes deixar teu servo ir em paz, segundo tua palavra. Porque meus olhos viram tua salvação, que preparastes diante de todos os povos; luz para iluminar as nações pagãs e glória do teu povo, Israel”; e as da profetiza Ana vem confirmar: como diz Lucas, “Ela proclamava louvores a Deus e falava do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém”. Todo o Antigo Testamento é a história desta longa e paciente preparação por Deus da salvação da humanidade. E trata-se sim da “salvação da humanidade” e não apenas do povo de Israel. A glória de Israel, justamente, é a de não ter sido eleito para si só, mas para a humanidade inteira. À medida que a história avançava, o Antigo Testamento descobria cada vez mais que o desígnio da salvação de Deus contempla toda a humanidade. Outra surpresa, não a única, neste episódio: Lucas não nos apresenta Jesus com os traços de um rei filho de Davi, como havia feito nos relatos da Anunciação e da Natividade, por exemplo. As assertivas sobre Belém, sobre o trono de Davi seu pai, sobre um reino que não terá fim... eram igualmente alusões à realeza do Messias. Aqui, Lucas escolheu nos revelar um outro aspecto do mistério do Messias: o Messias-Servo; e, visivelmente, escrevendo essas linhas, o evangelista está impregnado pelos cantos do Servo contidos no livro de Isaías. “Te tomei ao lado e te destinei a ser a aliança do povo, a ser a luz das nações” (Is 42) ou “Te destinei a ser a luz das nações a fim de que minha salvação esteja presente até os confins da terra” (Is 49). A segunda parte da declaração de Simeão ressalta uma outra característica do Messias: “teu filho provocará tanto a queda como o reerguimento de muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição”. É uma alusão à pedra de tropeço para os descrentes de que fala Isaías (8, 14-15) transformada, ao contrário, em pedra de fundação (pedra angular) para os que acreditam (Is 28, 16). Consolação de Israel, libertação de Jerusalém, pedra angular... este menino é mesmo o Messias que se esperava, ou seja, aquele que traz a Salvação. Como diz ainda Isaías (canto 53): “Por ele se cumprirá a vontade do Senhor”. Pois, depois de Abraão, sabe-se que a vontade do Senhor é a salvação para todas as famílias da terra.

(Marie-Noëlle Thabut, 1939-, França).

 

CONTEMPLAR

Velha mulher, 2019, Wei Chang Kuo, fotografia do ano do Monochrome Photography Awards 2019, categoria profissional, Taiwan.




segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O Caminho da Beleza 05 - Natal do Senhor

        Mantinha-se firme, como se visse o Invisível! (Hb 11, 27)

Natal do Senhor              25.12.2020

Is 52, 7-10               Hb 1, 1-6                  João 1, 1-18

 

ESCUTAR

Como são belos, andando sobre os montes, os pés de quem anuncia e prega a paz, de quem anuncia o bem e prega a salvação (Is 52, 7).

Este é o esplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser (Hb 1, 3).

E a Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14).

 

MEDITAR

Qual é a razão pela qual alguns veem e encontram e outros não? O que abre seus olhos e coração? O que falta aos que são indiferentes, aos que apontam a estrada, mas não se mexem? (...) Eles estão seguros da ideia que fazem do mundo e não se deixam inquietar no mais fundo de si mesmos pela aventura de um Deus que quer encontrá-los. Eles colocam mais confiança em si próprios do que Nele e não consideram possível que Deus seja grande a ponto de se fazer todo pequeno, de poder verdadeiramente se aproximar de nós. Falta a capacidade evangélica de serem crianças no coração, de se encantarem e de saírem de si para se colocar em rota sobre o caminho que a estrela indica, o caminho de Deus. Mas o Senhor tem o poder de nos tornar capazes de ver e de nos salvar.

 (Bento XVI, 1927-, Alemanha)

 

ORAR

   Se esta festa de Natal traz em si uma nostalgia e tanta ternura e sentimentos que nos comovem, é porque ela nos coloca diante dos olhos a figura da criança mais frágil. Nela, nós vemos ao mesmo tempo a beleza, a inocência, a delicadeza da existência, a proteção que reclama e o amor que pede de todos nós. Na verdade, nós nos identificamos com esta infância e nos compadecemos de nós mesmos quando uma tal figura de inocência nos é apresentada. Como se, secretamente, nos fosse restituída a segurança da criança envolvida pelo amor do pai e da mãe. Como se pudéssemos nos dar um instante de ilusão de sermos pequenas crianças na segurança do amor original. E se achamos muitas vezes que o mundo é duro, é porque há um enorme contraste entre esta nostalgia que nos habita e a realidade. Gostaríamos muito que o mundo fosse como o amor de uma mãe por um pequeno bebê. Gostaríamos muito de ficar seguros de que Deus nos cerca, como diz a Escritura, como uma criança de colo carregada por seus pais. Eis o que gostaríamos. E nos espantamos que o mundo não seja assim. E se uma pequena lágrima surge no dia de natal, é por ter sonhado, no espaço de uma noite ou de uma hora, que isso pudesse ser assim. Só que de fato o mundo permanece duro, impiedoso e nós não somos mais bebês. E mesmo os bebês um dia desaparecem, pois na vida é preciso também crescer. Tornar-se um adulto ou uma adulta significa aceitar sua solidão, aceitar que o mundo não seja perfeito e que nossos sonhos não sejam a realidade de cada dia. E a despeito disso, viver, viver bem, viver sabendo por que se vive... Dizer que Deus se torna acessível no mistério de uma pequena criança quer dizer que Deus se torna ainda mais invisível, ainda mais inacreditável, ainda mais inconcebível. É no momento mesmo em que Deus se dá a nós que nos parece ainda mais incompreensível que um tal dom nos seja feito. É quando o amor nos atinge que ele se torna inconcebível. É quando ele se faz próximo que nós queremos recuar, dizendo: “Isso não é verdade”. Isso quer dizer, talvez, que só podemos nos aproximar de um tal mistério desorientando nossa mente, perturbando nossa existência, com a condição de sermos nós próprios transformados. Se Deus se entrega assim em nossas mãos, tal como uma criança passiva entre os braços de seus pais – e esta frase não é blasfematória – isso quer dizer que Deus, o Inconcebível, não está apenas à nossa frente, mas que Aquele que está acima de nós se entregou a nós na figura de irmão. E só podemos descobrir nosso irmão, tornando-nos, nós, seu irmão. Só descobrimos que alguém nos ama quando consentimos em amá-lo. Só podemos reconhecer o mistério de Deus que se esconde nesta criança entregue se aceitamos nos entregar a ele.

(Jean-Marie Lustiger, 1926-2007, França)

 

CONTEMPLAR    

Ludavine, 2020, Sophie Harris-Taylor (1988-), da série Milk, Londres, Reino Unido.




segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

O Caminho da Beleza 04 - IV Domingo do Advento

        Mantinha-se firme, como se visse o Invisível! (Hb 11, 27)


IV Domingo do Advento                      20.12.2020

2 Sm 7, 1-5.8-12.14.16                Rm 16, 25-27                     Lc 1, 26-38

 

ESCUTAR

“Vai e faze tudo o que diz o teu coração, pois o Senhor está contigo” (2 Sm 7, 5).

Glória seja dada àquele que tem o poder de vos confirmar na fidelidade ao meu Evangelho (Rm 16, 25).

Maria perguntou ao anjo: “Como acontecerá isso se eu não conheço homem algum?” (Lc 1, 34).

 

MEDITAR

Eu me anunciei

Eu afirmei minha voz

Não temi questionar

 

Eu resisti

Dei meu sim

Olhando diretamente nos olhos do anjo

(qualquer escrava poderia ter sido espancada ou violentada por menos)

Não houve sujeição aqui

Nada me foi arrancado

Tudo foi oferecido


Aqui estou

Olha-me

Ouça


(Elizabeth Schüssler Fiorenza, 1938-, Romênia)

 

ORAR

    Embora o diálogo entre Maria e o anjo não tenha ocorrido na realidade, sendo composto por Lucas seguindo um esquema dado no Antigo Testamento, as palavras que Lucas põe na boca de Maria tem um conteúdo teológico autêntico. Na realidade, deveria chamar a atenção de qualquer um a forma, diríamos, não católica de argumentar utilizada por Maria. Para ela, a mensagem do anjo acerca da concepção do Filho de Deus é inconcebível porque ela não conhece varão. Para ela, o copular com um homem é requisito necessário para o prometido nascimento do filho de Davi. Ambas as coisas constituem um todo indivisível para ela, enquanto para a dogmática católica sucede justamente o contrário: a copulação com um homem e o nascimento de um filho divino se excluem. Se pudéssemos tomar como histórico o relato sobre a Anunciação, haveria que reconhecer a Maria mais inteligência teológica do que dois mil anos de teologia católica acerca do parto virginal, isto é, de teologia ginecológica da cegonha. Em sua pergunta, Maria já expressou com clareza o que então chegou a ser opinião entre tantos, compartilhada pela maioria dos teólogos, mas que os bispos católicos não têm compreendido ainda em nossos dias e menos ainda João Paulo II: que, na opinião de Maria, a filiação divina de Jesus e uma filiação natural de Jesus não se excluem. Maria pensa, sobretudo, que um não é possível sem o outro. Em sua pergunta, ela poderia ter considerado presentes acontecimentos (legendários) da Bíblia judaica nos quais se produziu também uma concepção mediante a intervenção criadora de Deus sem que fosse excluída em tais casos a cooperação procriadora de um varão. Mediante tal intervenção de Deus, nasceu-lhes, por exemplo, à nonagenária Sara e ao centenário Abraão, seu filho Isaac (Gn 17, 17); e mediante uma intervenção de Deus a estéril Rebeca deu à luz a seus Esaú e Jacó (Gn 25, 21). O judaísmo desconhecia por completo a ideia de um parto virginal e tampouco esperou tal parto para o futuro Messias. Ao contrário, sua esperança tinha por objeto um Messias que seria um homem nascido de homens. Por conseguinte, se Maria tivesse querido relacionar de algum modo a mensagem do anjo com o Messias esperado pelos judeus, deveria ter pensado totalmente o oposto a um parto virginal porque tal parto contradizia de forma diametral a esperança judia.


(Uta Ranke-Heinemann, 1927-, Alemanha)

 

CONTEMPLAR

Mãe migrante, 1936, Nipomo, Califórnia, Dorothea Lange (1895-1965), Estados Unidos.




segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O Caminho da Beleza 03 - III Domingo do Advento

                    Mantinha-se firme, como se visse o Invisível! (Hb 11, 27)


III Domingo do Advento                     13.12.2020

Is 61, 1-2.10-11                  1 Ts 5, 16-24                       Jo 1, 6-8.19-28

 

ESCUTAR

O Senhor me ungiu; enviou-me para dar a boa nova aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos (Is 61, 1).

Não apagueis o espírito! (1 Ts 5, 19).

Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz (Jo 1, 8).

 

MEDITAR

É somente na doação do amor que há incremento de si, fortalecimento e expansão da vida. O amor não é cupiditas, não é consumo ávido do Outro, mas dádiva de si que acresce sobretudo quem a faz. Não é essa, no fundo, a estranha substância de que é feito o amor? Substância que, quanto mais se dá, quanto mais se cede, quanto mais é consumida, mais se enriquece, mais aumenta, mais se acresce.

(Massimo Recalcati, 1959-, Itália)

 

ORAR

       João é a voz; o Senhor, “no começo, era o Verbo” (Jo 1, 1). João é a voz provisória; o Cristo era, no começo, a Palavra eterna. Retirada a palavra, o que se torna a voz? Vazia de todo significado, ela não é senão ruído. Sem a palavra, a voz atinge o ouvido, ela não nutre o coração. É difícil não confundir a voz com a palavra: tomar-se assim João pelo Cristo. Confundimos voz e Verbo. Mas a voz não quer fazer mal ao Verbo: ela se reconhece pelo que ela é: “Eu não sou o Cristo, disse João, nem Elias, nem o Profeta”. Então lhe perguntaram, quem é você? – “Eu sou a voz daquele que grita no deserto: preparai um caminho para o Senhor”. A voz grita no deserto, ela rompe o silêncio. “Preparai, ela grita, um caminho para o Senhor”. Quer dizer: eu só vibro em seus ouvidos para fazer entrar o Senhor em vossos corações; mas mesmo aí onde devo introduzi-la ele só se digna vir se lhe preparais um caminho. Em que sentido? – Se a vossa oração ardente o convida. Em que sentido a mais? – Se tiverdes pensamentos humildes. João admite o que é, diz o que não é, ele se humilha. Lúcido, reconhece de onde vem a salvação: ele compreendeu que é a lâmpada e teme ser apagado pelo sopro do orgulho. Por uma disposição da vontade de Deus, o homem enviado para dar testemunho do Cristo é ele próprio tão grande em graça que se pode tomá-lo pelo Cristo. Porque enfim: “Entre os nascidos das mulheres, disse o Cristo em pessoa, não surgiu um maior que João Batista (Mt 11, 11). Se nenhum dentre os homens ultrapassou este homem, aquele que o ultrapassa é mais do que um homem. Grande testemunho que o Cristo rende a si próprio! Mas aos olhos remelentos e enfermos, a luz testemunha mal de si: uma vista doente a teme, ela só suporta a luz de uma lâmpada. Por isso, a Luz prestes a vir se faz anunciar pela lâmpada: enviada para os corações fiéis, ela confunde os ímpios. “Preparei, diz o salmo (131, 17), uma lâmpada para meu Ungido”: ao que salva, é João quem o proclama; ao Juiz que vem, é João o Precursor; ao Esposo esperado, é João seu amigo.

(Agostinho de Hipona, 354-430, Argélia)

 

CONTEMPLAR

Meninos correndo no campo, 2016, Andrea Brooke, Alberta, Canadá.




segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O Caminho da Beleza 02 - II Domingo do Advento

                                        Mantinha-se firme, como se visse o Invisível! (Hb 11, 27)


II Domingo do Advento                       06.12.2020

Is 40, 1-5.9-11                    2 Pd 3, 8-14                        Mc 1, 1-8

 

ESCUTAR

 “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus” (Is 40, 3).

 O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça (2 Pd 3, 13).

 “Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias” (Mc 1, 7).

 

MEDITAR

 Caminante, son tus huellas

el camino y nada más;

Caminante, no hay caminho,

se hace camino al andar.

Al andar se hace el camino,

y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar.

Caminante no hay camino

Sino estelas en la mar.

(Antonio Machado, 1875-1939, Espanha)

 

ORAR

      Essa via do Senhor que nos é pedida para preparar, meus irmãos, é caminhando por ela que a preparamos e é preparando-a que por ela caminhamos. E mesmo se vocês progredirem bem nela, resta, todavia, sempre o que preparar para que, do ponto em que alcançaram, vocês sigam adiante em direção ao que há para mais além. Assim, a cada progresso, o Senhor cuja via é preparada para sua vinda vem ao nosso encontro, sempre de algum modo renovando-o e o tornando maior do que era. É, portanto, com razão que o justo fazia esta oração: “Senhor, coloca-me sobre a via de tuas justificações e eu a perseguirei sem cessar”. Talvez a chamemos “via eterna” porque se a Previdência previu a via de cada um e fixou um fim para seu progresso, a natureza da Bondade para qual se progride não tem limite. Por isso, o viajante sábio e empenhado, quando estiver chegado ao termo só lhe restará começar, de sorte que esquecendo o que está para atrás, ele dirá para si a cada dia: “agora eu começo”. Mas nós que falamos do progresso por essa via, possamos ao menos ter começado! Porque, na minha opinião, não é um progresso superficial ter começado. É ainda preciso, na verdade, ter começado e ter encontrado a via da cidade onde habitaremos. De fato, esta via onde o Senhor nos torna justos, esta via da verdade que vocês escolheram, quantos elogios Isaías lhe dedicou! É um prazer para mim evocá-los com sua caridade: “haverá, ele disse – referindo-se às antigas covas de dragões sob a terra deserta e sem caminho – haverá ali uma trilha e uma via”... “E esta via, ele prossegue, será chamada santa”, porque ela é de fato a santificação dos pecadores e a salvação dos que estão perdidos. Logo, se tu estás sobre o caminho, teu único temor deve ser se afastar dele, ofender ao Senhor que te conduz por ele, para que ele não te deixe errar pela via do teu próprio coração; mas, fora dele, não temas ninguém. E se aspiras que seja uma via muito estreita considere o fim para o qual ela te conduz. Com efeito, se vês o fim de toda perfeição, dirás logo: “tua lei é larga em excesso”. E se não podes vê-la, creia em Isaías, o visionário, que é o olho de teu corpo. Ele via ao mesmo tempo sua estreiteza e seu fim, e dizia assim: “sobre esta estrada caminharão os cativos libertos e resgatados pelo Senhor; retornarão a Sion cantando louvores e uma alegria eterna estará em suas faces. Eles terão alegria e contentamento, enquanto a dor e os lamentos se afastarão”. Creio que aquele que pensa muito nesse fim, não apenas torna sua vida espaçosa, mas chega a ter asas: ele não caminha mais, mas voa. Logo, meus irmãos, lembrai-vos sempre da recompensa final e percorrei a via dos mandamentos, com toda doçura e contentamento.

 (Guerric d’Igny, 1070-1157, Bélgica)

 

CONTEMPLAR

 S. Título, 2019, da série “Metrópolis”, Alan Schaller (1989-), Londres, Reino Unido.




 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O Caminho da Beleza 01 - I Domingo do Advento

                                                Mantinha-se firme, como se visse o Invisível! (Hb 11, 27)


I Domingo do Advento             29.11.2020

Is 63, 16-17.19;64, 2-7               1 Cor 1, 3-9             Mc 13, 33-37

 

ESCUTAR

 Senhor, tu és nosso pai, nosso redentor; eterno é o teu nome. Como nos deixaste andar longe de teus caminhos e endureceste nossos corações para não termos o teu temor? (Is 63, 16-17).

 Nele fostes enriquecidos em tudo, em toda palavra e em todo conhecimento, à medida que o testemunho sobre Cristo se confirmou entre vós (1 Cor 1, 5-6).

 “Cuidado! Ficai atentos, porque não sabeis quando chegará o momento” (Mc 13, 33).

 

MEDITAR

 Evangelho de Deus porque toda palavra de vida supera aquele que a profere e aquele que a ouve e nada garante de antemão que vá fazer deles “viventes falantes”. Evangelho de liberdade porque tal palavra só pode vir do fundo do coração humano para manifestar a sua perfeita concordância consigo mesma e porque nada pode revelar a liberdade de Deus a não ser essa liberdade humana.

 (Christoph Theobald, 1946-, Alemanha)

 

ORAR

    É o tempo do Advento que começa, quer dizer o tempo da espera da vinda do Senhor na glória. Não é um tempo de preparação para a festa de Natal, mas de preparação para o acontecimento que o próprio Jesus indicou a seus discípulos como o acontecimento definitivo, acontecimento no qual a justiça será definitivamente instaurada e em que se cumprirá o reino dos céus que ele anunciou. O brado da Igreja no decorrer desse tempo é o da Esposa que, com o Espírito, faz esta invocação: “Vem, Senhor Jesus! Maranà tha!” (Ap 22, 17.20; 1 Cor 16, 22). Os cristãos ainda estão em espera, mesmo se o ar que respiram hoje mostre uma profunda incapacidade para esperar: eles sabem, contudo, que a espera do Senhor é a única espera importante, decisiva, e eles acreditam firmemente nessas palavras sobre a vinda do Filho do homem (cf. Mc 13, 26-32). Muitos, com efeito, numa cegueira autossuficiente, não pensam e nem acreditam em julgamento, num dia em que ocorrerá o cumprimento da justiça e da verdade para todos os que na história foram oprimidos e afligidos, para todas as vítimas e os sem voz. E eis, todavia, a chegada desse dia, e ele é o da boa nova, é o do Evangelho! A vinda do Senhor não nega a história, ela não condena essa humanidade, mas quer transfigurar esse mundo, quer resgatar a história. Não é mais possível viver como adormecidos, num triste sonambulismo espiritual; é preciso, ao contrário, de atenção ou antes da vigilância como uma tensão interior por toda a vida até a meta: o encontro com o Senhor que vem. Eis porque na breve parábola de Jesus é dito que é o tempo em que o Senhor partiu em viagem, deixando a cada um a sua própria tarefa e ao porteiro o dever de vigiar. Quando ele retornará? À tarde ou à meia-noite, ao canto do galo ou pela manhã? Qualquer que seja a hora em que ele vem, o Senhor quer ser acolhido; é por isso que é preciso vigiar, mas é muito difícil e o Senhor o sabe bem. Não esqueçamos que essas palavras foram dirigidas aos discípulos, mas que eles justamente na hora da crise, na hora da paixão de seu próprio mestre e profeta, dormiam na chegada da noite enquanto Jesus vigiava (cf. Mc 14, 32-42); depois todos eles fugiram durante a noite deixando Jesus só (cf. Mc 14, 50), e ao canto do galo Pedro negou Jesus (cf. Mc 14, 66-72). E, no entanto, Jesus teve misericórdia de todos eles... Vigiemos, portanto, e fiquemos atentos, lembrando-nos das palavras de Ignace Silone que respondia, a qualquer um que lhe perguntasse por que ele não se tornava cristão: “Porque que me parece que os cristãos não esperam nada!”

(Enzo Bianchi, 1943-, Itália)

 

CONTEMPLAR

 Um mundo cheio de indiferença, 2016, Metro de Moscou, Cu Vântul/Voubus, Social Issues Photography Contest, Bulgária.




segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O Caminho da Beleza 53 - Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo                 22.11.2020

Ez 34, 11-12.15-17            1 Cor 15, 20-26.28                       Mt 25, 31-46

 

ESCUTAR

“Vou procurar a ovelha perdida, reconduzir a extraviada, enfaixar a da perna quebrada, fortalecer a doente” (Ez 34, 16).

 O último inimigo a ser destruído é a morte (1 Cor 15, 26).

 “Eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa (Mt 25, 25).

 

MEDITAR

 Aí vem o Cristo na sua túnica inconsútil,

Conhece a multidão brandindo palmas.

Sob o dossel de palmas e magnólias

O Príncipe da Paz abençoa.

É o mais perfeito dos filhos do céu e da terra,

O ente absoluto, pai e mestre,

Gerado em graça desde toda a eternidade,

Que se encarnou para matar a morte

E atirar no tanque de fogo o lado feio da criação...

 

É ao mesmo tempo o homem contemporâneo,

Que se senta à nossa mesa, rompe o pão e bebe o vinho,

Conversa com as mulheres da vida

E muda pelo avesso os pecadores...

 

“Louvai-o, terra dos vivos,

Plantas respirando, gado e peixes,

Bichos da sombra, formas semoventes,

Louvai aquele que nos mantém com seu braço,

O Deus que divide o ar

E dá sua parte a cada um

O Deus manifestado aos nossos ancestrais

E a todos os homens antigos desde o dilúvio.

Louvai ao que justiça o oprimido

E liberta o encarcerado...

 

Todo o ser que respira louve a Deus”.

 (Murilo Mendes, 1901-1975, Brasil)

 

 

ORAR

      Deus não chegou ao extremo de entregar seu próprio Filho? E tu, não podes dar o teu pão ao mesmo que se entregou por ti e se fez matar? O Pai, por causa de ti, não o poupou. E tu o deixas, com indiferença, morrer de fome, embora não fizesses senão tirar dos seus próprios bens, dando em teu próprio interesse! Ele se entregou por ti, ele vagueia por causa de ti, mendigando. O que lhe dás, para ajudá-lo, tiras dos seus próprios bens, e mesmo assim não lhe dás nada! Pois, não bastou a ele assumir a cruz e a morte; quis conhecer também a pobreza e o exílio, ser errante e nu, lançado no cárcere, impotente, para poder assim te lançar o teu apelo. “Se não queres me dar outro tanto, pelo que sofre por ti, tem piedade de mim por causa da minha miséria, deixa-te dobrar por minha fraqueza e por minha prisão. Se não queres render-te mesmo a isto, rende-te ao meu modesto pedido: não peço nada que te custe; somente pão, teto, algumas palavras de consolação; se continuas intratável, ao menos te tornem melhor o pensamento do Reino, as recompensas prometidas: se nada disto te comove, ao menos por instinto natural se abra o teu coração, à vista da minha nudez, da minha prisão, da minha fome hoje. Conheci a sede quando estava na cruz, e continuo a experimentá-la através dos pobres, a fim de te atrair a mim. Assim, tendo-te ligado a mim por inumeráveis benefícios, peço-te que me retribuas, não como um devedor, pois eu te quero coroar como a um benfeitor, e em troca desses pobres dons, eu te darei o Reino. Se eu estiver na prisão, eu não te forço a me tirar de lá pela violência. Só te peço uma coisa: ver que estou preso por causa de ti. Eu poderia te coroar sem nada disto; mas eu quero ser teu devedor, a fim de que a coroa te traga confiança. É por isto que erro como um mendigo: bato à tua porta, com a mão estendida, a fim de ser alimentado por ti: eu te amo tanto! É por isto que desejo estar à tua mesa, como entre amigos; e eu me glorio disto, e o proclamo à face do mundo, e a todo o universo eu me apresento como alguém a quem tu alimentas”.

 (João Crisóstomo, c. 347-407, Antioquia)

 

CONTEMPLAR

 S. Título, 1990, hospital psiquiátrico de Sichuan, China, da série “As Pessoas Esquecidas: a condição dos pacientes psiquiátricos chineses, 1989-1990”, Lu Nan (1962-), Magnum Photos, Beijing, China.




terça-feira, 10 de novembro de 2020

O Caminho da Beleza 52 - XXXIII Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


XXXIII Domingo do Tempo Comum         15.11.2020

Pr 31, 10-13.19-20.30-31                      1 Ts 5, 1-6                Mt 25, 14-30

 

ESCUTAR

 O encanto é enganador e a beleza é passageira (Pr 31, 30).

 Todos vós sois filhos da luz e filhos do dia. Não somos da noite nem das trevas (1 Ts 6, 5).

 “Fiquei com medo e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence” (Mt 25, 25).

 

MEDITAR

 Faze que sejam claros meus olhos, Senhor,

E que meu olhar, bem reto, desperte uma fome de pureza.

Faze que não seja nunca um olhar desiludido, desabusado, desesperado.

Mas saiba admirar,

Extasiar-se, contemplar.

Dá-me aos olhos a graça de saberem fechar-se para melhor te encontrar,

Mas que nunca se afastem do Mundo por medo.

Dá-me olhar a graça de ser bastante profundo para reconhecer tua presença no Mundo.

E faze que jamais meus olhos se fechem à miséria dos homens.

Que meu olhar, Senhor, seja limpo e firme,

Mas saiba enternecer-se,

E que meus olhos sejam capazes de chorar.

Faze que meu olhar não suje o que tocar,

Não perturbe, mas serene,

Não entristeça, mas semeie a Alegria,

Não seduza para guardar cativo,

Mas convide e arraste à superação de si mesmo.

Faze que meu olhar transtorne, por ser um encontro, o encontro de Deus.

Que seja o apelo, o toque de clarim que mobilize toda a gente cada qual à soleira da porta,

Não por causa de mim, Senhor,

Mas porque vais passar.

Para que meu olhar seja tudo isso, Senhor,

Uma vez mais, esta noite,

Eu te dou a minha alma,

Eu te dou o meu corpo,

Eu te dou os meus olhos,

Para que ao olhar os homens, meus irmãos,

Sejas tu quem os olhe

E de dentro de mim lhes acene.

 (Michel Quoist, 1921-1997, França)

 

ORAR

       Hoje, em nossa sociedade ocidental ultra-desenvolvida, é surpreendente constatar a que ponto alguns se satisfazem em não assumir nenhum risco e que nada se altera em suas vidas. Eles são absolutamente “imóveis”. O homem vive, todavia, numa sociedade que, globalmente, mesmo se pensando nos atuais atos terroristas, é menos perigosa que a da Idade Média e, menos ainda, que a de Jesus. Isso nos faz crer que quanto mais o homem se habitua à segurança e ao seu bem-estar mais ele recusa o risco. Alguns preferem mesmo morrer do que viver! Viver é assumir o risco de se ferir, de ficar frustrado, de sofrer pelo outro. Morrer é evitar de ter que se confrontar com a realidade do outro e de destruir uma imagem ideal de si mesmo por meio da qual nos amamos e nos identificamos. Um ser pode se deixar prender, sem o saber, nas malhas da rede invisível de tudo possuir e se interditar de assumir o risco de viver a aventura do outro, com o risco de morrer por isso! Resta que entre os que têm a paixão de viver o risco da aventura e os que preferem morrer antes de viver, há todos esses “fantasmas” da vida, que se encontram em nosso caminho, que decidiram não se colocar questões, aproveitar-se do tempo que passa (e dos outros), salvar-se de “todo risco” esperando morrer um dia, o mais tarde possível, que recusam o inesperado que poderia colocar em questão todas as proteções que reúnem tão arduamente ao redor de si. Foi assim que um paciente me disse um dia: “Eu só procuro durar”. A sociedade não fabrica cada vez mais “assistidos” que só pensam em proteger o que adquiriram em nome da solidariedade, mas que em nenhum caso seriam capazes de partilhar com aqueles que se achassem em necessidade? Em que medida conseguiríamos escapar desta força social centrífuga que se nutre de nossa vontade de não perder e que nos conduz sem cessar a esse famigerado “reflexo de segurança”? Ao inverso, existem pessoas que empreendem, que inventam, que inovam no cenário da sociedade. São essas que assumem o risco da aventura interior, que aceitam acolher o estrangeiro que há nelas, que fazem aliança com ele e que tiram finalmente sua energia deste encontro com o outro para partir para a descoberta do homem e do mundo. Visivelmente, Jesus foi um homem desta têmpera. Alguns santos também. Seria desejável retirar o véu em que foram colocadas suas biografias durante muitos séculos para reencontrar o vigor desses homens e mulheres de ação e redescobrir a propósito deles o sentido da palavra “notável”. Na parábola dos talentos, Mateus nos ecoa um Jesus que desenvolve uma verdadeira filosofia da ação da qual se destaca uma espiritualidade: uma maneira de ser para o outro e, por meio dela, para o mundo e para Deus. Jacques Maritain sublinhava: “A ação é uma epifania do ser”.

 (Daniel Duigou, 1948- , França)

 

CONTEMPLAR

 Lech Walesa, líder do Solidariedade, fala aos trabalhadores no porto de Gdansk, Polônia, durante uma greve em agosto de 1980, Erazm Ciolek (1937-2012)/Forum, Reuters, Polônia.




segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O Caminho da Beleza 51 - XXXII Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


XXXII Domingo do Tempo Comum                       08.11.2020

Sb 6, 12-16              1 Ts 4, 13-18                       Mt 25, 1-13

 

ESCUTAR

 A sabedoria é resplandecente e sempre viçosa. Ela é facilmente contemplada por aqueles que a amam, e é encontrada por aqueles que a procuram (Sb 6, 12).

 Se Jesus morreu e ressuscitou – e esta é a nossa fé –, de modo semelhante Deus trará de volta, com Cristo, os que através dele entraram no sono da morte (1 Ts 4, 14).

 “Ficai vigiando, pois não sabeis qual será o dia nem a hora” (Mt 25, 13).

 

MEDITAR

 Tão abstrata é a ideia do teu ser

Que me vem de te olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,

E nada fica em meu olhar, e dista

Teu corpo do meu ver tão longemente,

E a ideia do teu ser fica tão rente

Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, que, só por ter-me

Consciente de ti, nem a mim sinto.

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo, nem sabendo

Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

Do interior crepúsculo tristonho

Em que sinto que sonho o que sinto sendo.

 (Fernando Pessoa, 1888-1935, Portugal)

 

ORAR

 

     Falando da proximidade do Reino de Deus que nossa parábola explicita de maneira especial (o presente é definido como “estar prestes a”), nós já notamos que esta “imediaticidade” se resolvia com a recusa absoluta de toda hesitação. Aquele que entra na órbita do Reino não pode retardar a sua opção radical. Aceitar o presente de Deus na vida do homem implica que se participe ativamente da exigência proposta por Jesus. Esta opção é total porque ela compromete todos os ouvintes e cada um dentre eles no conjunto de sua existência. Ela é pessoal porque cada um deve responder por si mesmo, deve se apropriar da experiência de Jesus e atualizá-la concretamente. Em consequência, a opção pelo Reino, não importa qual, só pode ser compreendida por uma radicalidade, porque a práxis do ouvinte da parábola é colocada em questão em todas as suas dimensões. Diante da proximidade do Reino, o homem não pode continuar a viver num paradigma de contradição: é preciso dar o passo em direção à não-contradição. Se o momento escatológico presente é urgente e total, a exigência de Jesus é radical e radical deve ser a resposta dos ouvintes: a passagem da contradição à não-contradição torna-se uma passagem radical porque o homem é chamado a participar da radicalidade do Reino de Deus. O homem é então impelido totalmente a colocar em questão seu paradigma de existência e a fazer uma opção que o leve a assumir um paradigma novo e diferente. Esta radicalidade exigida com urgência tem aspectos ameaçadores? A interpretação final eventual equivale à uma ameaça formal de exclusão dirigida a todos os ouvintes? De imediato, é preciso dizer que a exclusão não é central. Certamente, poder-se-ia replicar que a interpelação final quis colocar o dedo sobre a ferida lembrando que algumas jovens permaneceram diante da porta. Isso é certo. Mas o contador da parábola, mencionando a exclusão, quis sublinhar as últimas consequências de uma atitude de contradição, a negação trágica a que se pode conduzir a manutenção de um paradigma que não é sensível às exigências radicais do Reino. Jesus quis desqualificar completamente (com todas as consequências) um paradigma de existência que não responde ao que a proximidade do Reino requer. Digamos, de outra maneira, que Jesus quis colocar em evidência uma atitude e provocar uma reposta, porque a parábola é salvação, salvação oferecida àquele que a escuta. A explicação de uma atitude equivocada não pretende condenar, mas salvar aquele que aceita a mensagem e a realiza radicalmente. A parábola quis, portanto, estremecer o homem que a escuta, fazê-lo passar de uma situação ambígua, de uma situação em que dominam os componentes do não-ser (em chave narrativa, a falta, o não compromisso com a criação, o fracasso da prática) para uma situação em que a participação no Reino é nutrida de transparência.

 (Armand Puig i Tàrrech, 1953-, Catalunha/Espanha)

 

CONTEMPLAR

 Rebanho de Ovelhas, 2020, a árdua e empoeirada viagem das ovelhas em Bitlis, Turquia, F. Dilek Uyar, Sony World Photography Awards, Ancara, Turquia.