quinta-feira, 16 de maio de 2024

O Caminho da Beleza 26 - Pentecostes

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

Pentecostes           

At 2, 1-11                 1 Cor 12, 3-7.13-13                    Jo 20, 19-23

 

 

ESCUTAR

 

“Todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua” (At 2, 6).

 

“A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum” (1 Cor 12, 7).

 

“E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20, 22).

 

 

MEDITAR

 

É isto, o espírito. Esta capacidade de não submeter sua existência, mas de assumi-la no amor para fazer dela uma oferenda luminosa e universal.

(Maurice Zundel)

 

 

ORAR

 

Tentemos deixar fluir ao menos uma vez na vida o sopro do Espírito no meio e dentro de nós. Deixemos que sejam varridos das cabeças todos os símbolos do poder: coroas, solidéus, mitras com todas as máscaras e disfarces que ornam as liturgias do poder. Permitamos que o sopro arranque as páginas dos nossos códigos, que leve para o mais longe as sandices dos nossos discursos políticos, sociais e religiosos e assistamos ao fogo se ocupar de queimá-los para que nunca mais pretendam dosificar a sua força. Com certeza, será um ganho para todos nós. Ele não sopra para garantir a ordem, para avalizar decisões que prejudiquem o Bem Comum e nem desempenha a função de juiz em nossos jogos com as regras determinadas por nós e para o nosso sucesso. Façamos, ao menos uma vez, com plena confiança no Espírito da Liberdade, a prova de acolher este mesmo Espírito como elemento perturbador, verdadeira inspiração, desmonte das regras fixadas de antemão e portador de coisas jamais vistas, ouvidas e experimentadas antes. Tenhamos a coragem de sermos habitados pelo vento e pelo fogo. É o Espírito da Verdade que vem a nós e nos produz como homens e mulheres que não temem as travessias plurais da vida. O Ressuscitado abre o futuro, abre a porta e abre a esperança do possível. Pentecostes é a festa de todos os possíveis. O Espírito acende em nós uma paixão e uma nova criação nasce de um colossal incêndio que nos deixa enamorados e nos surpreende com as palavras apaixonadas que por falso pudor nunca nos permitimos, publicamente, dizer. O Espírito – vento e fogo – rompe os limites das alcovas e das salas e brinca, diverte-se e ri da nossa sisudez e pretensa seriedade. Vento e fogo são incontroláveis, imprevisíveis e a nova aliança que trazem nos faz orbitar fora de nós e encontrar os outros conhecidos e desconhecidos num abraço amoroso e livre. Os discípulos foram considerados embriagados, pois novamente despertavam entusiasmados para anunciar, em todas as línguas, as maravilhas do Senhor. Toda a tentativa de administrar a ação do Espírito e falar em seu nome será um contrassenso. O Espírito de Jesus se encontra na oração, na solidariedade, no perdão, na palavra comprometida e na misericórdia que superam todas as fórmulas e as frases de conveniência, os conselhos moralizantes e as respostas pré-fabricadas. Jesus nos fala de um pecado contra o Espírito que nunca terá perdão. É a blasfêmia de conceder ao Espírito apenas um sussurro e uma sutil e vigiada fissura ao invés de janelas e portas abertas dos corações. O pecado irreparável é a pretensão de falar da coragem cristã e oferecer ao Espírito um pouco menos da metade de todo o resto que concedemos ao medo e a angústia. O pecado sem perdão é falar de Pentecostes sem nunca nos permitir experimentar e viver até as últimas consequências a sua embriaguez.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Pentecost, 1989, Andrew Wyeth (1917-2009), têmpera, 20,75” x 30,625”, Coleção Particular, Estados-Unidos.




quinta-feira, 9 de maio de 2024

O Caminho da Beleza 25 - Ascensão do Senhor

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

Ascensão do Senhor                  

At 1, 1-11                  Ef 1, 17-23               Mc 16, 15-20

 

 

ESCUTAR

 

“Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?” (At 1, 10).

 

“Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos” (Ef 1, 18).

 

“Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (Mc 16, 20).

 

 

MEDITAR

 

Não fiques imóvel
à beira do caminho,
não congeles a vida,
não ames com fastio,
não te salves agora,
não te salves nunca

Não te enchas de calma,
não reserves do mundo,
apenas um cantinho feliz,
não deixes cair pesadas
pálpebras como juízos definitivos,
não fiques sem lábios,
não durmas sem sonho,
não te penses sem sangue,
não te julgues sem tempo.

Mas se
apesar de tudo,
não podes evitar;
e congelas a vida,
e amas com fastio,
e te salvas agora,
e te enches de calma,
e reservas do mundo,
apenas um cantinho feliz,
e deixas cair pesadas pálpebras como juízos definitivos,
e te secas sem lábios,
e dormes sem sonho,
e te pensas sem sangue,
e te julgas sem tempo,
e ficas imóvel
à beira do caminho,
e te salvas;

então
não fiques comigo.

(Mario Benedetti)


ORAR

 

Nesta festa, os sentimentos são ambíguos: desilusão e espera; tristeza e alegria; decadência e consolo; cansaço e vontade de recomeçar. Sobretudo, domina uma pergunta de fundo: trata-se de uma conclusão ou um princípio? É preciso superar a catequese simplista e pueril que até hoje nos subjuga: Jesus veio ao mundo, permaneceu nele trinta e três anos, terminou sua missão com um incidente político, mas num final feliz voltou aos céus. Em suma, cumpriu a sua parte e agora cabe às igrejas assumir a parte que lhes cabe neste latifúndio até o Juízo Final quando serão julgadas pelo que fizeram na sua ausência. As coisas, infelizmente, não são tão lineares. Na trajetória cristã tudo aparece sob o signo da instabilidade e da imprevisibilidade. Somos herdeiros de uma fé vivida na obscuridade, mas com a certeza da ressurreição como sinal de que o mundo pode avançar, que as forças do mal podem ser derrotadas apesar das incertezas e contradições: tudo está cumprido e tudo está por se fazer. As rotas são inúmeras e diversas: um espiritualismo desencarnado, um apostolado burocrático e sem alma, uma missão fundamentalista e intolerante. E, no entanto, a beleza de ser cristão é a de que nada está decidido de antemão; nenhum programa está definido de uma vez por todas. A beleza de ser cristão se encontra na travessia que deve ser inventada e reinventada a cada dia. Como dizia Guimarães Rosa: “Viver é rasgar-se e remendar-se!”. Somos chamados a conquistar um sentido da realidade sem jamais perder a esperança, a honrar a cada dia um compromisso, por menor que seja, ainda que seja desproporcional a este mundo que resiste às mudanças. O cristão é o homem que admite as próprias misérias para experimentar a força que vem do Espírito e, por meio, de pequenos sinais de compaixão e fraternidade, manifestar o amor transbordante do Cristo. Jesus cumpre os profetas e, entre o dom do Espírito e o acontecimento definitivo do Reino, existe uma espera de tempo que deve ser preenchida pelo testemunho do amor fraterno “até as extremidades da terra”. O teólogo jesuíta Karl Rahner enfatiza: “O Cristo está de agora em diante no coração de todas as humildes coisas que compõem a vida da terra, esta terra que não podemos abandonar, pois ela é a nossa mãe”. A humanidade de Jesus é de tal modo perfeita que é necessário, agora e sempre, escrever a palavra Deus, e sua divindade é de tal modo real que é, também, preciso escrever, eternamente, a palavra Homem.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

 

Ascensão, Salvador Dalí, 1958, óleo sobre tela, 115 x 123 cm, Coleção Simon Perez, México.