Publicado em Vida Pastoral, 54
(289): 03-10, mar-abr 2013.
O
que há por trás da religiosidade popular?
Por Eduardo Hoornaert
O artigo demonstra
importância fundamental da religiosidade popular nas origens do cristianismo e
na sua formação como ele se apresenta hoje. Muito mais dos que as razões
tradicionalmente elencadas para a expansão do cristianismo, foi a sua
inculturação na religiosidade popular que o fez expandir-se rapidamente.
Hoje em dia, já existem
muitos estudos disponíveis sobre as variedades religiosas no Brasil. Num país
culturalmente tão diversificado, é de se esperar que também as formas
religiosas sejam as mais diversas: indígenas, africanas, portuguesas, italianas
ou alemãs, rurais ou urbanas, populares ou burguesas, católicas, protestantes,
espíritas, islamitas, judaicas. Esse amálgama está sendo estudado sob os mais
diversos ângulos e dentro das mais variadas perspectivas. Enfim, dispomos hoje
de excelentes estudos sobre o assunto da religiosidade popular.
Esse modesto estudo pretende contribuir com uma apresentação sobre a importância fundamental da religiosidade popular nas origens do cristianismo. Penso que a distância histórica, ao mesmo tempo que obscurece os detalhes, realça as grandes formas, ou seja, o que tem importância para nossos trabalhos hoje. Montanhas altas só se destacam na paisagem quando vistas de longe. Por isso convido você, leitor(a), a viajar comigo nestas páginas até os primeiros tempos do cristianismo, para verificar como aí funcionava a religiosidade popular e a importância que ela teve na formação do cristianismo tal qual se apresenta ainda hoje. Não vamos nos deter em detalhes. O que nos interessa é saber o que existe por trás das imagens e dos ritos. Queremos conhecer o motor que impulsiona a primeira religiosidade cristã. Pois é disso que se trata, afinal.
Esse modesto estudo pretende contribuir com uma apresentação sobre a importância fundamental da religiosidade popular nas origens do cristianismo. Penso que a distância histórica, ao mesmo tempo que obscurece os detalhes, realça as grandes formas, ou seja, o que tem importância para nossos trabalhos hoje. Montanhas altas só se destacam na paisagem quando vistas de longe. Por isso convido você, leitor(a), a viajar comigo nestas páginas até os primeiros tempos do cristianismo, para verificar como aí funcionava a religiosidade popular e a importância que ela teve na formação do cristianismo tal qual se apresenta ainda hoje. Não vamos nos deter em detalhes. O que nos interessa é saber o que existe por trás das imagens e dos ritos. Queremos conhecer o motor que impulsiona a primeira religiosidade cristã. Pois é disso que se trata, afinal.
1. Expansão sensacional do
cristianismo nos primeiros séculos
Quem estuda as origens do cristianismo fica impressionado com a expansão sensacional do movimento cristão nos primeiros séculos. Nascido na humildade da Palestina, o movimento alcança, já no decorrer do século I, a Síria, depois penetra na Ásia Menor, espalha-se no delta do rio Nilo e nas terras litorâneas do Mar Mediterrâneo (Grécia e Itália). No decorrer do século II, o cristianismo penetra no interior da Síria e chega à longínqua cidade de Edessa, na margem direita do rio Eufrates. A partir de suas bases na Ásia Menor, chega às regiões da Capadócia e da Armênia, atravessa a África do Norte (Cartago), sobe o rio Nilo até a terra dos etíopes (acima da sexta catarata do rio). Do outro lado do mundo mediterrâneo, penetra pelo rio Ródano e daí se espalha pelos vales da Gália (atual França) e da península ibérica (Espanha). Essa rapidez impressiona, se consideramos as condições de viagem da época e os poucos recursos de que dispõem os cristãos. Fica a pergunta: de onde provém tão extraordinário desenvolvimento em tão pouco tempo? Qual o segredo de tão rápida expansão?
2. Razões tradicionalmente
aduzidas para explicar essa expansão
Os livros clássicos costumam aduzir principalmente quatro razões para tão impressionante sucesso do movimento cristão: o martírio, a santidade, os milagres, a evangelização. Acontece que cada uma dessas explicações pode ser questionada. Os que falam numa “igreja dos mártires”, por exemplo, esquecem que o número de mártires vitimados pelo sistema romano foi bem menor do que se afirma frequentemente e que só em curtos períodos houve perseguições sistemáticas. Decerto, a igreja não era bem-vista pelas autoridades, e as comunidades estavam sempre expostas a eventuais pogroms (perseguições de caráter local). A qualquer momento, os cristãos podiam ser chamados para interrogatórios vexatórios e então eram humilhados perante as autoridades, mas isso ainda não é bastante para se falar em “igreja dos mártires”, da maneira em que alguns autores escrevem. Afinal, morreram mais testemunhas de Jeová nos crematórios nazistas da última guerra mundial (por volta de 3 mil) que cristãos em todo o período da “perseguição da igreja”. Quanto ao argumento de que a expansão do cristianismo se deva à “evangelização” (no sentido que atualmente damos ao termo), não possuímos documentos históricos que comprovem isso. O primeiro documento histórico a mencionar um “evangelizador”, ou seja, um missionário que consiga reunir em torno de si pessoas para ouvir o que ele tem a dizer, é um sermão que o padre da Igreja Gregório de Nissa pronunciou em 380 (portanto, já no final do século IV), sobre seu parente Gregório o Taumaturgo, que trabalhou entre camponeses no Ponto Euxino. A imagem do evangelizador que fala alto em praça pública ou monta um púlpito para proferir um sermão não corresponde a fatos históricos, pelo menos nos primeiros séculos. Quem desejaria ouvir um cristão naqueles tempos? Quem estaria interessado em ouvir falar de uma religião considerada inferior, proveniente do judaísmo, pelo menos na opinião do público romano? Quanto à pretensa santidade dos primeiros cristãos, a história de Judas já mostra que eles não eram mais santos que os de hoje. Finalmente, nós sabemos, por meio do aprimoramento da análise literária crítica, que histórias mirabolantes sobre extraordinários milagres praticados pelos apóstolos e pelos primeiros cristãos, e que por muitos séculos circulavam intensamente no seio do cristianismo, não merecem confiança enquanto fontes históricas.
3. O que foi então que
provocou a expansão do cristianismo?
Será que essa expansão se deve a fatores relacionados com a religiosidade popular? Até pouco tempo atrás, era difícil responder a essa pergunta, pois a historiografia cristã estava principalmente baseada no estudo de fontes escritas. Ora, essas fontes praticamente nunca abordam a religiosidade dos primeiros cristãos. Os escritos sobre as origens do cristianismo não costumam mostrar interesse pelo que se passou entre o povo comum. Nem o filósofo judeu Filo de Alexandria, nem o historiador judeu Flávio Josefo informam algo sobre a religião do dia a dia. E historiadores romanos como Tácito e Suetônio só mencionam o cristianismo quando descrevem acontecimentos sensacionais, como o levante na Alexandria nos anos 39-41 ou o incêndio de Roma nos tempos de Nero (65). Aliás, é regra geral: intelectuais não costumam mostrar interesse pelo que se passa no meio do povo comum e anônimo. A “plebe” não retém a atenção de filósofos como Platão, Aristóteles, Cícero ou Sêneca, ou de intelectuais proeminentes como Galeno, Plotino ou Marco Aurélio. Esses “humanistas” dão a impressão de que a história é feita pelas classes dirigentes. Nem mesmo autores cristãos como Justino, Ireneu, Tertuliano, Cipriano, Clemente de Alexandria ou Orígenes descrevem o que se passa entre cristãos comuns. Eles também pertencem à elite letrada e não se mostram interessados em saber o que se passa no meio do povo.
Felizmente, dispomos hoje de bons estudos históricos baseados na arqueologia, e a tendência é que a qualidade desses estudos ainda melhore no futuro. A arqueologia vem se tornando um recurso sempre mais utilizado nos estudos das origens do cristianismo. Atualmente, dispomos de informações que resultam de pesquisas arqueológicas realizadas em muitos lugares onde viviam os primeiros cristãos, não só em metrópoles como Roma, Alexandria e Antioquia, mas também em pequenos vilarejos espalhados pela atual Turquia ou Síria ocidental. Esses dados arqueológicos abrem um panorama novo e inesperado, pois não estamos acostumados a estudar as origens do cristianismo focalizando a vitória de Cristo sobre Asclépio e/ou de Maria sobre Isis.
4. Cristo vence Asclépio
Escavações arqueológicas comprovam que durante os longos sete séculos entre o final do século V a.C. e o século III d.C., Asclépio foi a divindade mais venerada em todo o território pan-mediterrâneo. Ficamos impressionados com o número de templos dedicados ao deus medicinal, desde o Oriente médio ao ocidente mediterrâneo. A razão é que Asclépio é o primeiro deus do panteão grego que desceu do repouso esplêndido no monte Olimpo para se envolver com a dor da humanidade. Chegando à terra, entre os mortais, Asclépio sentiu pena ao constatar a morte prematura de tantas criaturas humanas e os grandes problemas de saúde enfrentados pelas pessoas. Ele ganhou rapidamente a preferência popular. Os doentes vinham de longe fazer suas “incubações” em algum templo de Asclépio. Passavam a noite deitados numa maca, dentro do recinto do templo, na esperança de ter um sonho com Asclépio e assim recuperar a saúde. A devoção generalizada em torno de Asclépio é uma prova cabal do pouco caso dado pela administração romana a questões de saúde pública. Os doentes ficavam abandonados à própria sorte: 80% da população vivia em condições muito precárias, seja por doença ou deformação física, seja ainda por trabalho escravo exaustivo ou violência. Os documentos escritos só registram dados esparsos sobre esse dado fundamental que nos mostra como funcionava a antiga sociedade romana. Assim, sabemos, por exemplo, que um escravo normalmente não vivia mais que 25 anos e que na época de Jesus, em média, um terço das crianças que conseguiam sobreviver ao parto morria antes de completar seis anos de vida. Cerca de 60% dessas crianças estariam mortas aos 16 anos, 75%, aos 26 anos, e 90%, aos 46 anos. Apenas 3% das pessoas atingiam a idade de 60 anos. Eis o que explica o sucesso de Asclépio.
Mas a mesma arqueologia que nos revela a importância de Asclépio nos revela como, a partir do século II d.C., começa a aparecer, dentro de templos tradicionalmente dedicados a Asclépio, a figura de Cristo. São invocações gravadas em pedras ou grafites sobre paredes. Mais: aparecem igrejas cristãs que são na realidade acomodações improvisadas de antigos templos dedicados a Asclépio. Pedras com invocações a Asclépio são reviradas, e nelas se inscrevem doravante invocações dirigidas a Cristo. Tudo isso mostra que Cristo começa a rivalizar com Asclépio no favoritismo popular. As incubações tradicionais começam a se realizar em igrejas cristãs, que, dessa forma, parecem enfermarias. Esse movimento inicia-se entre a população pobre das grandes cidades (Roma, Alexandria, Antioquia) e daí se divulga pelo interior. As escavações demonstram que o fato é global e se verifica por toda a extensão do Império Romano: Cristo vai aos poucos substituindo Asclépio, num processo que demora séculos e culmina, no ano 381, com a proclamação oficial de Cristo como “salvador do povo romano” pelo imperador Teodósio. A partir desse momento, Cristo reina soberano sobre o imaginário ocidental e não encontra mais nenhum rival à sua altura.
5. Maria vence Ísis
Na mesma época, uma evolução parecida acontece no universo feminino. Até o século II d.C., a imagem de Ísis reina soberana sobre o imaginário pan-mediterrâneo. A história dessa deusa começa no Egito, onde sua origem se perde nas brumas do passado. Mas já no século III a.C. verifica-se como Ísis incorpora gradativamente as demais divindades femininas do Oriente Médio e da bacia mediterrânea, como Cibele, Demeter, Magna Mater, Mater Deum Magna e outras. Seu poder de assimilação é tão forte que, numa inscrição da época, ela ganha nada menos que 320 predicados e, aos poucos, se torna a única “rainha do céu”. Só não consegue assimilar Vênus, símbolo do amor livre. Ísis usa os meios de transporte mais modernos da época. O culto à deusa cruza de barco o mar mediterrâneo e penetra nos grandes rios, como o rio Danúbio. Comerciantes internacionais e marinheiros a transportam por toda extensão do mundo romano. Na proa de um barco daqueles tempos ainda se pode ler hoje a inscrição latina una quae es omnia dea Isis (você é tudo, deusa Ísis). Ísis viaja de barco e de canoa, em dorso de cavalo e jumento, alcança lugares tão distantes como a fronteira do Reno ou a muralha de Adriano na Britânia (Inglaterra). Em todos esses lugares, ainda hoje se encontram estatuetas de Ísis sentada num trono com seu filho Horus nos braços. É a imagem da mãe carinhosa, que protege seu filho e demonstra o cuidado que as pessoas têm com a maternidade, a procriação, a proteção da natureza e a educação dos filhos.
Mas aqui, mais uma vez, a arqueologia nos reserva surpresas. Escavações nos mais diferentes sítios do universo romano da época mostram, a partir do século II, estatuetas de Ísis que parecem intencionalmente quebradas e ruínas de igrejas toscas construídas em cima de templos dedicados a Ísis. Isso indica que templos tradicionalmente dedicados a Ísis passam a ser aproveitados para venerar a figura de Maria. O mundo está encontrando uma nova figura feminina representativa em substituição de Ísis. Pois o que é a imagem de Nossa Senhora com Jesus no colo senão uma apropriação cristã da imagem de Ísis que cuida de seu filho Horus? Para conseguir essa proeza, Maria pode contar, desde o início, com o apoio de intelectuais cristãos letrados como Hipólito, Tertuliano, Justino e outros e, principalmente, com o apoio das autoridades. Constantinopla (330), a nova capital do império, inaugurada em 330, por exemplo, já conta com um número considerável de santuários dedicados a Maria. Aqui também a data definitiva é 381, quando o imperador romano Teodósio invoca Maria sob o nome de “mãe de Deus”, um nome tradicionalmente reservado à deusa Cibele. É verdade que a devoção a Ísis ainda resiste por diversos séculos, mas quando o imperador Justiniano, em 560, manda fechar o último templo dedicado a Ísis, um ciclo histórico chega ao fim.
6. Os bispos demoram a
perceber a força da religião popular
O que impressiona é que os bispos demoram em perceber a importância de toda essa movimentação no âmbito da religiosidade popular. Eles pensam em outras coisas. Mas quando eles se reúnem em Niceia (325), na residência de verão do imperador Constantino, para sua primeira grande assembleia geral, eles pecebem que não há mais como fugir da realidade: quem toma conta de Cristo e de Maria é o povo. É a pressão da religiosidade popular que empurra os bispos a reconhecer a relação entre devoção e problemas que afetam as pessoas pobres (doença, marginalização, penúria, morte). Os sinais são por demais visíveis: Hércules cede diante de São Miguel nas artes da guerra, e Apolo, diante de São Sebastião na luta contra a peste. Então, é antes por considerações pragmáticas que os bispos aceitam o protagonismo da religiosidade popular na configuração histórica da instituição cristã. Como estão convencidos de que precisam manter as rédeas do movimento em mãos, eles se preocupam em apresentar aos fiéis imagens de Jesus e Maria que não entrem em choque com a fé do povo. Entre os séculos IV e VI, por exemplo, eles se reúnem reiteradas vezes para chegar a um acordo sobre como apresentar melhor a figura de Cristo ao povo. Sua principal dificuldade parece ter sido a aceitação da denominação “mãe de Deus”, que o povo teima em atribuir a Maria. A expressão lhes soa mal, já que na época designa a deusa pagã Cibele. Temos de esperar até a assembleia episcopal de Éfeso, em pleno século V (431), para encontrar um documento que aceite a formulação “Maria, mãe de Deus”. Os bispos hesitam, pois não encontram no novo testamento nenhum indício do lugar tão proeminente de Maria na história de Jesus. Mas os devotos de Maria não deixam por menos e exercem uma pressão considerável sobre a assembleia de Éfeso, como comprovam documentos da época. Finalmente, por considerações antes políticas que propriamente evangélicas, os bispos acabam chegando a um acordo acerca da devoção à Maria. Já está na hora. Se não aceitam as expressões da fé popular, os bispos arriscam perder o chão sob os pés e isolarem-se de seus próprios fiéis. Isso significa que a sobrevivência da instituição eclesiástica depende da aceitação popular. Dito em outras palavras, a instituição, da maneira como funciona concretamente, tem de ser considerada uma criação da religiosidade popular. Para os bispos, não é tão fácil aceitar isso, mas não há como fugir da evidência. Inclusive, o povo sustenta financeiramente a hierarquia e lhe confere prestígio e honorabilidade. Aceitar essa dependência estrutural exige uma boa dose de humildade por parte do episcopado. Mas não existe alternativa. Afinal, o que é um bispo sem a religiosidade popular? Podemos fazer a mesma pergunta hoje em relação ao papa: o que seria dele sem a religiosidade popular? Penso que, no futuro, com o avanço dos estudos históricos e críticos, será mais fácil aceitar essa verdade: sem a religiosidade popular, a igreja não se sustenta. A partir dessa compreensão, a afirmação “a igreja é o povo de Deus”, hoje tão controvertida, um dia será aceita como uma evidência.
7. O que se passa por trás
da religião e dos ritos?
Para avançar na nossa reflexão, temos de cavar mais fundo. O que existe por trás da religião popular? Qual a vida vivida que se expressa em símbolos, imagens, gestos e ritos? Concretamente, qual a razão por que as pessoas, a partir do século II, começaram a preferir Cristo a Asclépio e Maria a Ísis? A resposta que se impõe é a seguinte: o movimento cristão consegue articular, dentro da sociedade romana, uma rede associativa de socorro a prementes necessidades humanas, e nisso se mostra mais eficiente que as tradicionais iniciativas tomadas em nome de Asclépio ou Ísis. Cristo e Maria são mais “eficientes” que Asclépio e Isis. Essa maior eficiência provém do fato de que o movimento cristão cava mais fundo nos pressupostos da desigualdade social existente no Império Romano. Em seu texto “A antiguidade tardia” (que faz parte do livro “História da vida privada”, editado pela Companhia das Letras de São Paulo em 1990), o historiador irlandês Peter Brown descreve em pormenores de que modo a sociedade romana é fundamentada no postulado de um inexorável e intransponível distanciamento social entre os “bem-nascidos” e seus inferiores (na maioria, escravos). É aqui que se percebe a radical novidade do cristianismo, que parte do pressuposto contrário: somos todos iguais diante de Deus. Mais ainda: Deus prefere os pobres, como fica claro nos textos do novo testamento. Essas ideias têm enorme influência pelo fato de que as primeiras gerações cristãs vivem em contato direto com categorias sociais marginalizadas, onde violência, injustiça e mesmo suicídio (por desespero) são tristes ocorrências da vida diária. Tendo uma comunidade cristã por perto, os pobres sabem para onde se dirigir em suas necessidades de saúde, maternidade, educação dos órfãos, amparo às viúvas, cuidados com os mais velhos, atendimento aos presos, sepultamento digno. A montagem de uma estrutura para socorrer pessoas humildes em suas prementes necessidades, submergida nos subterrâneos da história, constitui, pois, a real novidade do cristianismo emergente, da qual as manifestações de religiosidade popular são a expressão visível. As vitórias simbólicas de Cristo e de Maria são na realidade vitórias do povo analfabeto na sua luta por dignidade e bem-estar. O mais impressionante é que esse movimento consegue introduzir a figura de Maria, que não encontra muito realce nos textos do novo testamento, na intimidade do próprio Deus. Ela sobe ao céu, é acolhida pela santíssima trindade e fica sentada no trono, como rainha do céu e da terra.
8. No mundo dos símbolos, nenhuma
vitória é definitiva
O tipo de análise que fazemos aqui evita um erro comum na interpretação do cristianismo das origens. Quem afirma que os primeiros cristãos, os anônimos, lutavam contra o paganismo, está equivocado. Pode ser que os bispos estivessem engajados numa luta desse tipo, mas os cristãos anônimos, não. Eles não lutavam especificamente contra o paganismo, mas sim contra os males que afligiam a vida humana. Era uma luta positiva a favor da vida, da saúde, da dignidade. É perfeitamente compreensível que os atendentes nos templos de Asclépio estivessem tão empenhados em lutar pela saúde de seus pacientes quanto seus colegas cristãos. Assim, no fundo, não há incompatibilidade entre Cristo e Asclépio. Só que Cristo, pelo menos a partir do século II, se mostra mais eficiente. Mas isso não significa que possamos rasgar os longos séculos do paganismo das páginas da história. Os longos séculos, em que pessoas cuidavam de doentes por devoção ao deus Asclépio, foram sucedidos por outros séculos (cristãos) em que pessoas, igualmente empenhadas na luta contra a doença, invocavam a Cristo. Os séculos em que mulheres parteiras se empenharam na luta contra a mortalidade materna em nome de Ísis foram seguidos por séculos em que se fez esse mesmo empenho em nome de Maria, nas casas e maternidades cristãs. Acontece que, no universo dos símbolos, nada é definitivo. Por exemplo, algumas igrejas neopentecostais introduzem formas de devoção semelhantes a formas católicas e que atraem muitos fiéis, como o “jejum das causas impossíveis”, da Igreja Universal do Reino de Deus. Por conseguinte, a novidade do cristianismo não tem de ser procurada no nível dos símbolos, ou seja, das imagens ou dos ritos, mas no nível de uma ação eficiente no campo das relações sociais e políticas. Os primeiros cristãos, ao combaterem os deuses, na realidade combatiam a falta de sensibilidade pela humanidade sofredora. A mesma lei hoje vale para o candomblé e muitas outras expressões religiosas. O sincretismo, sempre mal compreendido pelos que têm a ilusão de pensar que a luta se trava no nível da religião, ou seja, dos símbolos, expressa no fundo uma movimentação nos relacionamentos reais de ordem social e política.
9. A eficácia de uma ação
modesta
Este trabalho quebra uma lança a favor da ação persistente e modesta na base da sociedade. Um bom trabalho pastoral sempre consistirá no aproveitamento das brechas existentes nos sistemas simbólicos, políticos e sociais em que vivemos, no intuito de abrir oportunidades iguais para todos. Desde as suas origens, a novidade do cristianismo não deve ser procurada em megaprojetos, mas em trabalhos humildes. Eis uma das mais importantes lições que podemos tirar de um estudo das origens do cristianismo. O jovem movimento de Jesus não embarca em grandes projetos, não participa de sucessivos levantes contra Roma que sacudiram a Palestina da época, tanto nos anos 67-70 como mais tarde, no ano 135, com a revolta palestina liderada por Bar Kókeba, que custou a vida a quase meio milhão de pessoas. Os seguidores de Jesus preferem projetos concretos, miniutopias realizáveis. Em grandes metrópoles como Alexandria, Roma ou Antioquia, os cristãos organizam um serviço de acolhimento aos estrangeiros que procuram trabalho na cidade. Os recém-chegados sempre podem ir à casa do bispo cristão, hospedeiro por excelência, como você pode ler em meu livro Hermas no topo do mundo (Paulus, 2002), um comentário de um dos primeiros escritos cristãos, redigido por um ex-escravo chamado Hermas. Esse Hermas conta que os imigrantes em Roma encontram na casa do bispo a mesa posta e um abrigo para os primeiros dias de sua permanência na grande cidade. Em algumas comunidades há um serviço regular de alimentação e hospedagem para necessitados, viúvas e órfãos. Organiza-se uma caixa de dinheiro comunitário destinado a casos de urgência (como atesta o escritor Tertuliano). Em dias de jejum, as pessoas oferecem gêneros alimentícios. Outro serviço bem organizado é o do enterro de falecidos. São beneficiados não só os da comunidade, mas os vizinhos em geral. Os cemitérios cristãos chegam a ser tão famosos que no século III temos um papa (Calisto) que foi administrador dos cemitérios cristãos em Roma. Quando alguém adoece, pode contar com visitas regulares. Nos melhores casos, pode encontrar um lugar tranquilo para se recuperar. Na hora de interrogatórios pelas autoridades, os cristãos se dão mutuamente apoio moral. Procuram manter o moral quando acontece um pogrom ou alguma investida de hostilidade por parte de grupos e autoridades. Há um serviço de visita aos presos e, em certos casos, um amparo psicológico para os que, desesperados, tentam o suicídio. Tudo isso está documentado no pastor de Hermas. Estamos diante de um cristianismo “de mãos calejadas” e quase nenhuma escrita, de mãos habituadas a lidar com mesa e cozinha, fuso e agulha, enxada e arado, na fonte, na oficina do pisoeiro e do trabalhador na lã, mãos de trabalhadores no campo e na cidade, de escravas domésticas nas casas senhoriais. Com um rol tão impressionante de serviços no campo social e humanitário, é de se compreender que o cristianismo tenha recebido em relativamente pouco tempo um sólido apoio popular. E esse apoio se expressa simbolicamente na religiosidade popular.
Resumindo: não pensemos que o cristianismo se tenha divulgado por meio de uma “evangelização” planejada e liderada por bispos, sacerdotes ou diáconos. Essa é uma falsa imagem das origens cristãs. O cristianismo não venceu tampouco pela pregação, nem pelo testemunho destemido de mártires, pela santidade de seus heróis, pelas virtudes ou milagres de seus santos. Venceu, isso sim, por uma atuação persistente e corajosa na base do edifício social e político da sociedade, assim como ainda hoje vence à medida que apresenta resultados positivos na vida das pessoas. Os resultados sempre foram e continuam sendo limitados e bastante modestos, mas, mesmo assim, fundamentais para evitar absurdos maiores numa sociedade que por vezes parece mais uma casa de loucos.
Eduardo
Hoornaert*
* Nascido na Bélgica, vive há mais de 50 anos no Brasil.
Estudou línguas clássicas na universidade de Lovaina e Teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Foi professor catedrático em história da Igreja nos Institutos de Teologia de João Pessoa, Recife e Fortaleza. Tem ministrado por anos cursos e conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Tem mais de 20 livros publicados.
Estudou línguas clássicas na universidade de Lovaina e Teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Foi professor catedrático em história da Igreja nos Institutos de Teologia de João Pessoa, Recife e Fortaleza. Tem ministrado por anos cursos e conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Tem mais de 20 livros publicados.
E-mail: e.hoornaert@yahoo.com.br.
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