Esta página apresenta textos e imagens relacionados a temáticas sobre a Juventude.
Os jovens de várias nacionalidades dão “razão de sua esperança” ao se mobilizarem criticamente em seus países contra a idolatria do dinheiro e da ganância promovida pelos grandes centros financeiros e empresas mundiais. O cartaz acima ("Qual é a nossa maior reivindicação?") é um dos primeiros elaborados pelo movimento dos “indignados” nos Estados-Unidos, cujo lema é “Ocupe Wall Street” (local do maior centro financeiro deste país). Em muitos dos cartazes empunhados pelos jovens ecoa-se a mensagem radical do Evangelho: “A compaixão é revolucionária”; “Capitalismo é um estado de espírito, transcenda-o”; “Não há razão para mais violência e cobiça”; “A ganância é a nossa civilização”; “Acabe com a guerra, alimente o pobre”; “Eu estou aqui com você porque você está aqui por mim”. Eis a mensagem, no calor da hora, de uma comentarista do movimento: “É isso o que vejo acontecendo nesta praça. Na forma em que vocês se alimentam uns aos outros, se aquecem uns aos outros, compartilham informação livremente e fornecem assistência médica, aulas de meditação e treinamento na militância. O meu cartaz favorito aqui é o que diz ‘eu me importo com você’. Numa cultura que treina as pessoas para que evitem o olhar das outras, para dizer ‘deixe que morram’, esse cartaz é uma afirmação profundamente radical” (a autora é Naomi Klein, de Nova York e seu texto foi postado em 06/10/2011, em www.naomiklein.org/articles, tradução de Idelber Alvelar).
Fonte: IHU On-Line
Sexta, 23
de março de 2012
Os jovens e a construção da autonomia. Um desafio. Entrevista especial
com Hilário Dick
“A juventude quer vivência grupal. Nunca houve tanta busca dessa
vivência como nos dias de hoje. Por outro lado, a essência da Igreja é ser
comunidade (ecclesia). Não se entende uma Igreja que não seja e não
promova a comunidade, o grupo. Por isso a juventude espera acolhida”, diz padre
jesuíta.
Confira a entrevista.
A Igreja precisa possibilitar e incentivar a construção
da autonomia. É a partir dessa percepção que Pe. Hilário
Dick critica as práticas da Igreja e sua relação com a juventude. Para ele,
a Jornada Mundial da Juventude – JMJ, evento católico que reúne o maior
número de jovens em todo o mundo desde 1980, tem uma pedagogia que não conduz
“à transformação social” e tampouco possibilita o protagonismo juvenil na
Igreja. “Não se nega que um e outro jovem mude de valores, se ‘converta’, que
descubra Jesus Cristo etc., mas poucos são os dados que fazem que o jovem
descubra mais a realidade social ou, até mesmo, a própria realidade juvenil em
termos mais amplos”. E complementa: “A maior prova disso está na observação de
quem é o protagonista das Jornadas: quem fala? Quem decide? Quem ocupa o
palco? De forma um tanto dura podemos dizer que a juventude das JMJ é
uma massa de manobra da Igreja-Instituição”, provoca, em entrevista
concedida à IHU On-Line por e-mail.
Em contato com a juventude há mais de 40 anos, ele assegura que, apesar
das limitações, “a Igreja e a juventude se encontram: a Igreja
naquilo que ela deveria ser e a juventude naquilo que ela sonha com uma
instituição como a Igreja”. E explica: “A juventude quer vivência
grupal. Nunca houve tanta busca dessa vivência como nos dias de hoje. É falso
dizer que a juventude não quer viver em grupo. Por outro lado, a essência da Igreja
é ser comunidade (ecclesia). Não se entende uma Igreja que não
seja e não promova a comunidade, o grupo. Por isso a juventude espera
acolhida”. Para que esta aproximação seja possível, sugere, o trabalho pastoral
com os jovens deve ser entendido como um processo, “que acontece no dia a dia,
nos pequenos grupos que se encontram para relacionar-se, viver, estudar,
enfrentar questões comuns, celebrar etc.”.
Hilário Dick é graduado em Teologia pela
Pontifícia Faculdade do Colégio Máximo Cristo Rei, e em Filosofia e em Letras
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Mestre e doutor,
também em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, é
coordenador do Observatório Juvenil do Vale/Unisinos. Entre seus vários livros
publicados, citamos Gritos silenciados, mas evidentes: jovens construindo
juventude na história (São Paulo: Loyola, 2003) e Cartas a neotéfilo –
Conversas sobre assessoria para grupos de jovens (São Paulo: Loyola, 2005).
Junto de Carmem Lucia Teixeira e Lourival Rodrigues da Silva publicou Juventude:
acompanhamento e construção de autonomia. É autor do Cadernos IHU
número 18, intitulado Discursos à Beira dos Sinos. A emergência de
novos valores na juventude: o caso de São Leopoldo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a trajetória da Jornada Mundial da
Juventude – JMJ? A JMJ é uma apresentação da Igreja para os jovens ou revela o
engajamento e a relação da juventude com a Igreja?
Hilário Dick – Quando é que podemos falar
de “trajetória” de um evento? Basta ver as datas, o número de participantes, os
locais, a reação da sociedade, a repercussão na Igreja, o preço do evento?
Qualquer “movimentação” se caracteriza pelas preocupações que manifesta, pelas
ideias que defende, pelas propostas que carrega. É mais do que um ajuntamento
de datas, de número de participantes, de número de discursos ou “sermões” que
se fizeram, de tipos de hinos que foram cantados etc. Por isso, somente com um
estudo em profundidade poder-se-á falar de uma possível trajetória das JMJ.
Quanto à segunda parte da pergunta, as Jornadas Mundiais estão
provando que elas são muito mais uma apresentação da Igreja para os jovens do
que um engajamento dos jovens com a Igreja. A maior prova disso está na
observação de quem é o protagonista das Jornadas: Quem fala? Quem decide? Quem
ocupa o palco? De forma um tanto dura podemos dizer que a juventude
das JMJ é uma massa de manobra da
Igreja-Instituição. Assim como não se fala de Reino para esta juventude,
insiste-se muito no amor à Igreja. Não podemos dizer que o seguimento de Jesus
não é desenvolvido, mas não é o que as juventudes enxergam e ouvem de forma mais
significativa.
IHU On-Line – Como explicar a receptividade da Jornada por parte dos
jovens? Qual o significado desses eventos massivos? A JMJ tem um viés
transformador?
Hilário Dick – Todo jovem gosta de viajar
e de participar de um evento em que se encontram muitos jovens. Isso vale para
dentro e fora da Igreja. O Papa João Paulo II, além de seu carisma no
relacionamento com os jovens, foi transformado num “Papa Pop” como até
cantam os Engenheiros do Havaí. Pelo caráter que tinham e têm as JMJ, os
meios de comunicação não tiveram nem têm dificuldade em assumi-las.
Existem dois modos de trabalhar pastoralmente com os jovens: ou
priorizando uma pastoral de eventos, de grandes concentrações, de movimentos
massivos com muito marketing, muita visualidade etc., ou priorizando uma
pastoral de processos, essa que acontece no dia a dia, nos pequenos grupos que
se encontram para se relacionar, viver, estudar, enfrentar questões comuns,
celebrar etc. A Igreja Católica está priorizando, nesse momento, de muitas formas,
a pastoral de eventos. É em tal geografia que se situam as JMJ.
Pela pedagogia que se usa nas JMJ pode-se dizer que elas não levam à
transformação social. Não se nega que um e outro jovem mude de valores, se
“converta”, descobre Jesus Cristo etc., mas poucos são os dados que fazem que o
jovem descubra mais a realidade social ou, até mesmo, a própria realidade
juvenil em termos mais amplos. Basta recordar o significado que tiveram as
mobilizações juvenis na Jornada Mundial de Madrid. A juventude fora da Igreja parece que não existe...
IHU On-Line – Como construir, a partir dos movimentos de grupos, das
pastorais da juventude, a autonomia dos jovens que participam da Igreja?
Hilário Dick – Critico a pedagogia, porque
as JMJ não garantem a participação da juventude. Se houvesse e se
possibilitasse real participação, haveria protagonismo
juvenil. Só se constrói autonomia,
personalidade, identidade numa boa participação, e uma boa participação
significa uma boa organização, onde o protagonismo juvenil seja o exercício da
autonomia etc. Podemos dizer que a autonomia é o tendão de Aquiles da Igreja
porque se trata do exercício do poder. E a Igreja Católica, hoje e na
história, tem muita dificuldade na vivência evangélica do poder. Isso vale para
todos, também para o povo de Deus, em geral, e de modo especial para a
juventude que vive a descoberta da liberdade (saindo do mundo da dependência),
da participação e da autonomia. Esse aspecto fica evidente na forma como são
vivenciadas as JMJ. Apesar disso, na teoria, o paradigma que a Igreja defende
(assume?) é o da construção da autonomia. Uma das coisas que mais afasta a
juventude da Igreja é a esquizofrenia, afirmando uma coisa e fazendo outra, na
prática.
IHU On-Line – Em que consiste o projeto de revitalização da Pastoral da
Juventude Latino-Americana? Em que medida é preciso revitalizar a ação
pastoral?
Hilário Dick – É um atestado de sanidade e
de saúde para qualquer instituição o fato de ter vontade de sempre se renovar.
Ora, a Pastoral Juvenil Latino-Americana tem uma caminhada de 30 anos,
fundamentada na construção da Civilização do Amor. As diretrizes dessa
caminhada já mereceram várias reelaborações. A grande decisão da revitalização,
falada e sonhada há mais tempo, foi a proposta assumida no 3º Congresso
Latino-Americano, em 2010, na Venezuela. Trata-se de reforçar o espírito
missionário da juventude, seguindo uma inspiração bíblica. A novidade foi a
escolha dos lugares bíblicos alimentando essa revitalização, isto é,
impulsionada por aquilo que é mais de Deus: o Evangelho. Vai sair, por
isso, em breve, nova edição da obra Civilização do Amor com o subtítulo Projeto
e Missão. A Conferência de Aparecida, embora não tenha dito algo
novo neste campo da evangelização da juventude, não deixou de reforçar o que já
se vinha fazendo, embora dificultando um aspecto fundamental: a articulação,
considerada como o melhor instrumento para suscitar a formação de jovens
caminhando para o empoderamento, a autonomia ou, então, o protagonismo. A
revitalização é uma exigência da vida; também o é da ação pastoral. Uma das
formas de sempre se renovar é saber alimentar-se da Palavra de Deus.
IHU On-Line – Na sua avaliação, a juventude está mais consciente do seu
papel como ator social?
Hilário Dick – Toda a humanidade e também
toda a juventude, com o decorrer da história, cresce em consciência social.
Assim como se descobrem e se conquistam novos direitos, também vão-se conquistando
e descobrindo novos deveres. É arriscado dizer que a juventude, hoje, tem mais
consciência. A juventude atual não é melhor nem pior que a juventude de
outrora: ela é diferente. Assim como nos anos 1960 a juventude tentou fazer
tudo o que fez sem TV, sem celular, sem internet, etc., a juventude de 2012
deve tentar fazer tudo o que pode com os auxílios que a técnica e a comunicação
oferecem. Nos últimos tempos estamos vendo manifestações juvenis significativas
em várias partes do mundo. Poderiam ser mais? Poderiam ser melhores? Ser ator
social nem sempre é fácil. Assim como também não foi. O mundo dos adultos não
quer e nem pode entregar, nas mãos da juventude, o protagonismo e a autonomia.
Isso sempre será conquista e sempre será conflitivo.
IHU On-Line – Quais os limites e desafios da Igreja diante da Juventude?
Hilário Dick – O documento 85 da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, desenvolvendo sua doutrina sobre a
evangelização da juventude, chama-se Desafios e Perspectivas da
Evangelização da Juventude. Não vou repetir o que está exposto nesse
documento. Você faz, no entanto, outra pergunta, dizendo: "O que a
juventude procura na Igreja e o que a Igreja tem para oferecer a esta
juventude". Eu gostaria de responder às duas questões numa só resposta.
Pensando bem, a Igreja e a juventude se encontram: a Igreja naquilo que ela
deveria ser e a juventude naquilo que ela sonha com uma instituição como a Igreja. Acentuaria cinco aspectos:
1) a juventude quer vivência grupal. Nunca houve
tanta busca dessa vivência como nos dias de hoje. É falso dizer que a juventude
não quer viver em grupo. Por outro lado, a essência da Igreja é ser comunidade (ecclesia).
Não se entende uma Igreja que não seja e não promova a comunidade, o grupo. Por
isso a juventude espera acolhida;
2) a juventude espera ser reconhecida em sua
realidade concreta. A Igreja, por sua vez, que não se encarna nas diferentes
realidades onde deseja anunciar a Boa Nova, não é a Igreja de Jesus Cristo que
se encarnou. É nessa inserção que nasce o profetismo e a juventude deseja uma
Igreja profética;
3) a juventude quer ser ela mesma, quer deixar de ser
massa para ser povo, isto é, um segmento organizado. Por outro lado, na Igreja,
a pastoral orgânica e a colegialidade episcopal fazem parte de seu ser. É só na
organização que a juventude vai construir a sua autonomia e seu protagonismo.
Não há outro instrumento;
4) a Igreja tem consciência de que ela, como Deus,
deve ser acompanhante. Nas últimas Diretrizes Gerais da CNBB, os bispos
até dizem que a Igreja é a casa da iniciação cristã. A juventude não quer
caminhar sozinha; ela sonha com a presença de alguém que saiba ser
“companheiro”, alguém que, com ela, coma do mesmo pão. Portanto, as duas
vocações se encontram;
5) a juventude sonha com uma formação que seja
integral, que a ajude em todas as suas dimensões. Um dos maiores vazios que ela
sente é a ausência destes/as companheiros. Por outro lado, a Igreja diz nas
suas Diretrizes que ela é e deseja ser uma Igreja a serviço da vida
plena para todos. Por isso que afirmamos que não é grande a distância entre a
Igreja e a juventude.
Voltando às JMJ, devemos ter presente essas realidades por parte
da Igreja (instituição) e por parte da juventude. Se for grande a
distância entre os sonhos e as vocações, o diálogo será mais difícil.
IHU On-Line – Quais os desafios de passar de uma igreja episcopal para
uma igreja ministerial?
Hilário Dick – A pergunta é simples e complexa.
Suponho que a pergunta pense “igreja episcopal” como aquela onde os bispos
“mandam” demais, esquecendo-se que também fazem parte do “povo de Deus”.
Infelizmente estas contradições também acontecem na Igreja: esquecer-se de sua identidade... A reflexão que desejaria fazer
refere-se a uma das doenças de nossa Igreja: o clericalismo. No clericalismo o
“leigo” está de um lado, na parte que não decide, que recebe ordens; quem
decide é o clero. Um dualismo que não tem sentido, mas que é muito forte em
toda a parte, também no trabalho com a juventude. Parece que se tem medo de
estar próximo, de perder a autoridade. Isso pode ser visto igualmente nas JMJ.
Nem o padre nem o bispo deixam de ser o que são se forem capazes de se
misturarem com a juventude, nem quando deixam que a juventude entre no
“comando” das grandes plenárias, das grandes concentrações etc. Clero e
pastores devem convencer-se de que, embora a “autoridade” seja algo que venha
de “fora”, antes de tudo ela é algo que vem de “dentro”, onde todos são “povo
de Deus”. É muito estranho que o discurso da “aparência” esteja tão forte
em nossa Igreja. É preciso voltar à simplicidade que aprendemos com Jesus de
Nazaré.
O triste é que a ostentação reforça o clericalismo; ela não aproxima.
Além disso, esmaga, oprime, provoca uma cisão. É um “encanto” perigoso. Saber
ser próximo da juventude e do povo é uma graça, mas é igualmente uma conquista,
fruto de estudo, leitura, presença, pesquisa, observação, abertura à novidade.
As JMJ serão ações de aproximação quando o espírito de Jesus de
Nazaré se manifestar, também, nestas grandes concentrações.
IHU On-Line – O que espera da visita do Papa ao Brasil no próximo ano,
quando participará da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro?
Hilário Dick – Deixemo-lo primeiramente
vir. Claro que é bem-vindo. O povo brasileiro e a juventude brasileira vão
estar de festa. Depois, talvez, possamos fazer uma avaliação. Sonhamos, contudo, que
nosso Papa não deixe de estimular a juventude do mundo para que sejam
uma novidade no seguimento a Jesus Cristo, indo além das sacristias e
dos templos, proclamando o Reino de Deus e não só incentivando o amor à Igreja.
A JUVENTUDE, O ESPETÁCULO RELIGIOSO E A FÉ CRISTÃ
Pe. Paulo Botas, mts
“A juventude é a total disponibilidade” (Emmanuel Mounier, Carta a Jacques Lefranc).
“Que o cristianismo levante a alta vela no alto mastro e partindo dos portos onde vegeta, singre rumo à mais longínqua das estrelas, sem dar-se conta da noite que o envolve” (Emmanuel Mounier, L’Affrontement Chrétien).
“A tal sinceridade que você invoca é o seu maior perigo. E que sinceridade se você não é você? A sua sinceridade, por enquanto, é a sua espontaneidade. E a sua espontaneidade são 10 milhões de anos de crimes humanos, 2 mil anos de traição ao Cristo, 200 anos de burguesia capitalista, 21 anos de filhinho de papai, 15 anos de aluno de escola e professores que ensinaram de acordo com tudo isso. Isso é a sua sinceridade e você sabe que ela não vale um tostão. Porque até agora escolheram por você. Agora é você quem vai escolher” (Carta de Mário de Andrade ao jovem Fernando Sabino).
Tempus Fugit...
Este texto pretende ser uma reflexão sobre os desafios para as instituições, notadamente as igrejas, que desejam atingir, com suas pastorais e movimentos, o setor vital da juventude. Somos países envelhecidos e, consequentemente, igrejas envelhecidas que já não respondem pela formação de fortes lideranças cristãs que atuem além dos limites das suas próprias igrejas locais. O texto percorre os anos 60 e a filosofia de Emmanuel Mounier que foi determinante para o movimento da Ação Católica, que envolvia jovens católicos, estudantes universitários e operários (as JEC, JUC e JOC). Em seguida, destaca a posição assumida pela Igreja Latino Americana e do Caribe nas suas reuniões de Medellín, de Puebla, de Santo Domingo e de Aparecida para enfatizar a posição do Papa Bento XVI, nas Jornadas Mundiais da Juventude, desde a Alemanha em 2005 até Madri em 2011, e no encontro com representantes de outras religiões realizado em Assis, neste mesmo ano. Oxalá possa oferecer subsídios para que possamos preparar os novos jovens da Igreja que irão participar da Jornada Mundial no Rio de Janeiro, em 2013.
Vivemos novos tempos fragmentados, céleres, fugazes e descontínuos. Os sentimentos determinam a nossa vontade; as impressões a nossa inteligência; uma lógica arbitrária e a busca do prazer negam uma moralidade ascética. Nestes tempos fluídos, a prioridade é a sensibilidade, a emoção e o momento presente. A existência humana torna-se, dessa maneira, um lugar de liberdade desvairada em que a pessoa exercita, ou acredita poder exercer, o seu arbítrio pessoal por meio da própria e isolada criatividade. A racionalidade é vista como fonte de violência porque se acredita que ela pode ser imposta como verdade, pois não existiria mais a essência das coisas, mas o uso delas para o fim que nos interessa, ou seja, qualquer fim determinado pela vontade individual.[1]
Estamos construindo uma sociedade da opulência e os meios de comunicação exploram ao máximo o nosso sentido visual numa gratificação imediata – o prazer de ter e consumir – e assim banalizam e reduzem os vínculos de amor ao prazer sensorial que se tornou o tema obsessivo da cultura de massas.
Esta sociedade tem como lema: “Vale o quanto produzes” e a sua espiritualidade é marcada pelo assédio do mercado; o seu evangelho pela competitividade e o seu pecado mortal é não “agregar valor” e não ter sucesso.
O apóstolo Paulo já escrevia: “Lembre disto: nos últimos dias haverá tempos difíceis. Pois muitos serão egoístas, avarentos, orgulhosos, vaidosos, xingadores, ingratos, desobedientes aos seus pais e não terão respeito pela religião. Não terão amor pelos outros e serão duros, caluniadores, incapazes de se controlarem, violentos e inimigos do bem. Serão traidores, atrevidos e cheios de orgulho. Amarão mais os prazeres do que a Deus, embora preservem as formas da religiosidade, renegam seus efeitos. Foge dessa gente” (2 Tm 3, 1-5).
As vivências comunitárias, entre elas a estrutura familiar, se desmoronam, pela exaltação da liberdade individual como valor absoluto e o culto ao $$$ como a religião do poder absoluto. No ano de 2000, o Wall Street Journal publicou que o mercado da espiritualidade movimentou no mundo mais de um bilhão de dólares e que todos os movimentos e instituições religiosas foram seduzidos por esta pastoral compreendida como negócio. Neste sentido, a juventude dos nossos colégios e universidades confessionais está submetida a uma espiritualidade da privatização da fé e da despolitização do espaço sagrado.
Somos avessos ao diálogo e sem aprender com o diferente de nós tomamos o caminho do confronto imediato, sem nenhuma escuta do pensamento alheio. Ansiamos a expor nossas intimidades e nos projetamos nos programas televisivos em que são desnudados os corpos, os sentimentos, as frustrações e, sobretudo, as alianças competitivas para se alcançar o prêmio máximo material. A agressividade e a combatividade fazem parte da vida das crianças em seus video games. Neles, desde cedo, aprendem que a pessoa agradável é a que está de acordo comigo, caso contrário, deverá ser destruída para se ganhar pontos e podermos continuar no jogo.
Nesta cultura, os diferentes de nós, notadamente, os indígenas, os negros e os excluídos de toda sorte são vistos como objeto de estudo, mas não reconhecidos como sujeitos da História: têm folclore e não cultura; praticam superstições e não religiões; falam dialetos e não idiomas; fazem artesanatos e não arte.
Carpe Diem...
Apesar de tudo, o ser humano continua mantendo as suas três características essenciais. A primeira é a de um ser religioso, pois mesmo quando ateu ele se interroga. Como nos afirma Dom Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura: “É possível estabelecer um diálogo frutífero e interessante com os ateus pensantes, ao contrário do que ocorre com o ateísmo não-pensante, que só está disposto a ridicularizar e a banalizar”.[2]
A segunda é a de um ser capaz de rir a partir de uma reflexão sobre a moralidade dos acontecimentos. Como afirma H. Bergson: “O lado cerimonioso da vida social deverá, pois, conter uma comicidade latente, que só precisará de uma oportunidade para vir à luz. Desse modo, para que uma cerimônia se torne cômica, basta que nossa atenção se concentre no que ela tem de cerimonioso e que desprezemos o seu conteúdo para só pensar em sua forma”.[3]
A terceira característica é a de que o ser humano é capaz de conferir um sentido à sua existência a partir de uma narrativa que o transcende: a arte. Em suma, arte, religiosidade e riso são instrumentos para confrontar a dramaticidade imperativa da existência. O cantor e compositor Sting, comprometido com as causas das minorias e dos desafios ambientais, respondeu ao ser questionado sobre a sua fé: “Eu não tenho religião a não ser a música, o amor e a arte, todas estas longas viagens misteriosas e infinitas”.
O cristianismo, desde o seu nascimento, teve um encargo universal: o de transmitir um bem que não pertencia somente a ele, mas a todos os homens. A missão não era a de conquistar a adesão de todos para ampliar o seu poder, mas expandir a mensagem da Boa Nova destinada a todos os homens e mulheres das múltiplas e diversas culturas.
O cristianismo não surgiu na Europa, mas na Ásia ocidental, no ponto geográfico onde se tocam os três continentes, Ásia, África e Europa. Não foi apenas um contato geográfico, mas um contato das correntes espirituais dos três continentes. Lembra-nos J. Ratzinger: “Ninguém nasce cristão, nem mesmo quando nasce num mundo cristão e de pais cristãos. O cristianismo somente pode acontecer como um novo nascimento. O ser cristão começa com o batismo, que é morte e ressurreição (Rm 6) e não nascimento biológico.”[4]
O cristianismo ocidentalizado e ideologizado da cristandade buscou imperar sobre as outras religiões e, neste sentido, sua expansão “missionária” equivale à negação da pluralidade das religiões. Em seu horizonte teológico e político não cabem as religiões, porque existe somente a religião e esta é a que ele, somente ele, representa: a configuração oficial dominante do cristianismo como momento expressivo da potência imperial do Ocidente. Não podemos esquecer que a forma que o cristianismo tomou na Europa durante todos estes séculos, no melhor dos casos, é uma forma das formas possíveis de se viver o cristianismo, mas apenas uma e, de nenhuma maneira, é a melhor forma possível para as outras partes do mundo.
Este é o tempo favorável...
Tudo o que apontamos anteriormente desemboca na realidade concreta em que a nossas igrejas particulares estão inseridas e na compreensão que têm dela. Depois de anos marcados por uma parte da teologia da libertação que ideologizou a comunidade eclesial, transformando-a em “igreja popular” e fez das comunidades eclesiais de base braços estendidos para os programas político-partidários, vivemos hoje momentos de uma profunda alienação religiosa caracterizada por movimentos acentuadamente carismáticos com o seu contingente de padres cantores, programas de televisão e liturgias que reforçam mais um estilo pré-conciliar do que a busca de se efetivar as orientações do Concílio Vaticano II. Some-se a isso a enorme variedade de movimentos e “formas de ser igreja” que procuram enfrentar os movimentos pentecostais rotulados de “seitas”. Os desafios se sucedem a partir da secularização das igrejas, da dessacralização do mundo e da globalização econômica.
O documento final da Assembleia Plenária do Conselho Pontifício da Cultura de 2004, sobre a fé diante do desafio da indiferença religiosa, aponta alguns aspectos que podemos detectar nas nossas igrejas particulares: o ateísmo e a não-crença que se apresentam como fenômenos mais masculinos e, notadamente, com pessoas de um nível cultural acima da média; a indiferença religiosa que cria o homo indifferens expresso no bordão: “Pode ser que Deus não exista, mas isto não tem importância, e de todas as maneiras, não faz a menor falta!”. Esta atitude acaba reduzindo a aspiração do homem pelo transcendente a uma simples necessidade subjetiva de espiritualidade, a felicidade ao bem estar material e os vínculos afetivos à mera satisfação das pulsões sexuais. Do ponto de vista da vivência sacramental, a juventude, principalmente, vive uma forma matizada de crença: crer sem pertencer. Fora os grandes e fugazes eventos de massa, com seus shows e desfiles de cantores católicos mais conhecidos, as nossas pastorais da perseverança parecem não atingir estes jovens que sofrem um processo de “desconfessionalização”, um êxodo religioso que os faz vivenciar movimentos religiosos de origens as mais heterogêneas: “Sou católico, mas não praticante”; “Acredito numa força superior”; “Gosto de ir na Igreja [espaço físico] quando ela está vazia, porque fico em paz”, etc., etc., etc.[5]
Existem algumas razões comprovadas para que três em cada cinco jovens abandonem as suas igrejas de origem.[6] A primeira razão, é que as igrejas dão a sensação de serem excessivamente protetoras e reprovam energicamente tudo o que não tem a ver com a elas; a segunda, é que os jovens adultos descobrem que a sua experiência de cristianismo é superficial e que a paróquia se parece mais com um clube de atividades atrativas, sem vínculos religiosos, e de valor estético e artístico duvidoso; a terceira, é que Deus parece ausente da sua vivência na igreja; a quarta razão, é o despreparo do clero diante do avanço científico dando a impressão de que a Igreja é contra a ciência; a quinta razão é o fato do não enfrentamento das questões reais da afetividade e da sexualidade que são reduzidas sempre à lógica da perversão da ternura e da demonização do prazer e pela simplificação das dificuldades concretas que enfrentam os jovens no início da sua vivência afetiva. Tudo acaba se reduzindo ao binômio pecado/perdão: peca-se de segunda à sexta, confessa-se no sábado, comunga-se no domingo e assim por diante... A sexta razão, é que muitos jovens adultos, num mundo pluralista, reagem à exclusividade de um catolicismo que não reconhece como sendo de sua altura as outras tradições religiosas. A sétima razão é que os jovens sentem que as igrejas são pouco amistosas com as pessoas que têm dúvidas e que se torna impossível nos ambientes de encontros e reuniões, pré-programadas nos seus conteúdos, fazer perguntas sobre as questões mais urgentes da vida, pois elas quebram a “rotina” dos encontros e seus impactos emocionais que conduzem ao final apoteótico da “conversão”.
É o caso de nos questionarmos se nossas pastorais e programas de evangelização não estão estruturados e dirigidos para jovens “tradicionais”, ainda que a maior parte, hoje, dos jovens adultos não siga o caminho tradicional de sair de casa, casar, ter filhos antes dos trinta anos a não ser que haja um “acidente de percurso” que os obrigue a esta decisão.[7]
Nas famílias “católicas não-evangelizadas”, o batismo, a primeira comunhão e o crisma são apenas ritos externos de “uma passagem sacral”. Um grande desafio catequético de uma pastoral evangelizadora, hoje, é não vulgarizar os sacramentos e rever esta pastoral em que os católicos vêem na paróquia uma prestadora de serviços, sobretudo, de oferta de sacramentos.
A vida cristã parece, desta maneira, atingir níveis bastante medíocres, na maioria das vezes, decorrentes da carência de uma formação cristã que não prepara os cristãos para agir com confiança na força do Evangelho; que não os conduz ao encontro pessoal com Cristo e que não os faz superar os parcos sentimentos de piedade das jaculatórias em que o nome de Jesus é usado e abusado. É o que chamamos de ateísmo prático mesmo para os que se dizem continuar cristãos e católicos.
No que diz respeito às celebrações litúrgicas, desde a secularização dos anos 70 temos uma tendência de diluir Deus na comunidade humana e nos arriscamos a cair num imanentismo cultual em que a comunidade dos fiéis se atém apenas a uma referência própria ao mundo horizontal e humanizado. A comunidade acaba por cultuar-se a si mesma alegrando-se na sua experiência coletiva que atrai e trai uma “multidão de fiéis”. Uma missa “alegre e participativa”, como qualquer festa social, em que o sacrifício eucarístico é carnavalizado. O cardeal von Balthasar é enfático: “A palavra de Deus não pode ser simplesmente recitada; ela exige o testemunho de uma vida de cristão exemplar, pois o Verbo fez-se carne e devemos, por consequência, testemunhar com nossa própria carne o que é o Verbo”.[8]
Estas celebrações usuais são decorrentes de uma cristologia deficiente, pois no esforço de dar à liturgia um caráter mais comunitário coloca-se, paradoxalmente, o celebrante no centro de tudo e acabamos por nos referir não à celebração do Cristo, mas à missa do padre fulano, sicrano ou beltrano. Um híbrido de clero e caricatura em que as celebrações nascem do terreno pródigo onde jorra a pseudo-criatividade, onde Deus passa ao largo e onde o verdadeiro Povo de Deus dá lugar a um grupo fechado em si mesmo. O padre tende a se tornar, por se considerar capaz de cantar e saracotear, um one priest show, o único que atrai a atenção e concentra o olhar da multidão embevecida e “arrebatada”. Das músicas aos paramentos litúrgicos, dos gestos aos arranjos florais, tudo é o reflexo de uma sub-cultura de uma sociedade regrada pelo mercado e pelo espetáculo enganoso das luzes televisivas que vai gerar uma Igreja do entretenimento. Como diz mais uma vez von Balthasar: “Nenhum homem se converterá ao Cristo porque existe um magistério, existem os sacramentos, um clero, um direito canônico, núncios apostólicos e um gigantesco aparelho de Igreja. Mas, quando muito, porque o homem em questão terá encontrado um católico cuja vida e o exemplo lhe terão feito aparecer como evidente que no domínio católico há maneiras e não a maneira de se seguir Jesus Cristo”[9]. Não podemos esquecer, como afirma Paulo, que um carisma é dado a um indivíduo, mas unicamente em favor do conjunto (1 Cor 12, 7).
E no Brasil, naquele tempo...
Pelos idos de 1968, no século passado, houve uma explosão da juventude. Um movimento de contestação varreu urbi et orbe e o grito de guerra foi gravado nos muros: “Sejamos realistas, peçamos o impossível!”. Logo após o Ato Institucional nº5, em dezembro de 1968, um novo modelo educacional foi imposto. Decretou-se a lei nº5692 que incentivava o Ensino Profissionalizante e “jogava no mercado” uma mão-de-obra intermediária para atender às necessidades das multinacionais que chegavam com toda a sua ganância ao País do Carnaval, em que “cada um amarrava a sua rede no coqueiro que dá coco em noites lindas de luar”. A formação em ciências humanas foi limitada ao treinamento dogmático da disciplina de OSPB (Organização Social e Política do Brasil), no segundo grau, e de EPB (Estudos dos Problemas Brasileiros) nas universidades. Os professores eram de preferência militares ou afins que, posteriormente, podiam ser agraciados com um curso na ESG (Escola Superior de Guerra). Um adestramento cívico-militar se impunha à formação da consciência de cidadania e da crítica social. A transformação do ensino universitário em regime de créditos fragmentados foi uma clivagem na formação dos grupos ideologicamente identificados que ultrapassavam as fronteiras da política estudantil. Era o reino de “cada um por si e Deus por ninguém”.
Com o passar do tempo, a secularização invadiu as Igrejas e se iniciou o desencantamento do mundo.
No terceiro milênio, 43 anos depois, a juventude brasileira está submetida à apatia política, ao desinteresse social e à busca de empregos que “deem dinheiro”. Ela consume o subproduto de uma cultura televisiva, pós-moderna, com o aparato cibernético de celulares, ipads, ipods, tablets, e está mergulhada numa rasa comunicação de facebooks, msm, etc. Diante de todo poder de sedução destas imagens caóticas será quase impossível e antiquado que os jovens se coloquem questões sobre o sentido da vida.
Esta juventude, pela internet, está onipresente e onisciente, exercendo, cotidianamente, a sua onipotência, salvando ou deletando, com um leve toque dos dedos, o que lhe parece ser descartável. Podem até mesmo exercitar o sexo virtual, com todas as sensações e emoções, sem criar nenhum vínculo real a não ser com o seu próprio corpo reduzido ao isolamento penumbroso de si mesmo. Tem a certeza de que neste tipo de sexo seguro o único que corre o risco de pegar algum vírus é o computador.
Até então, as famílias católicas eram pródigas em número de filhos e filhas e, geralmente, da parte dos meninos, sempre havia um que seguia a carreira de padre; outro a de militar e, posteriormente, se acostumou a incentivar a qualquer um dos filhos a fazer o concurso do Banco do Brasil. As meninas, com raras exceções, eram preparadas para esperar os seus maridos e a desencalhar o mais rápido possível. A expressão mais utilizada era a de “descontar a hipoteca”.
A desestruturação da família nuclear, muito mais econômica do que moral, tem inventado outras formas familiares de ser e existir. Do ponto de vista religioso, a dessacralização das formas culturais erigiu o cientificismo como a lógica correta para o desencantamento do mundo. Como na sociedade, as igrejas estão submetidas a uma moral do espetáculo expressa em espaços de fruição religiosa com grandes concentrações de massas e catarses espirituais. Some-se a isto o fundamentalismo crescente nas religiões tradicionais e o esvaziamento das relações ecumênicas e inter-religiosas.
Os jovens corpos são conduzidos para outro tipo de imposição, o da perfeição das formas, que, modeladas, estimulam o intercurso de uma felicidade sensorial. O consumo compulsivo de suplementos energéticos e de próteses para as correções corporais, por meio de uma estética plástica, responde pela ditatura e pelo padrão de “corpos perfeitos” que são deglutidos após serem estampados nas revistas de moda e nas novelas televisivas.
A autoridade não é mais a de uma sabedoria conquistada pela história pessoal e social. A autoridade de hoje atende pelo nome de celebridade e, culturalmente, em torno deste nome vai orbitar uma legião de imitadores, seguidores, aduladores e detratores que jamais se cansarão de bajular e mitificar o que foi produzido e vendido como célebre. Este, em curto espaço de tempo, será deletado e condenado ao esquecimento ao surgir outro nome transferencial para o qual a legião, religiosamente, converterá todas as suas forças até o limite de uma histeria coletiva.
A diferença vital é que pela autoridade as pessoas se revelam por meio do seu talento e notoriedade; pela celebridade as pessoas são impostas e invejadas pelo sucesso imediato e fugaz. O papel social destas celebridades é o de entreter e quanto mais leviano for o entretenimento, melhor. Estamos imersos numa cultura rasa de um humanismo fast: por detrás da generosidade aparente está aéleviandade assim como por detrás do desprendimento está o oportunismo.
O legado das últimas décadas para os jovens é o aumento da depressão camuflada com nomes elegantes: síndromes do pânico, bipolaridade e estresses. Estes mesmos jovens são induzidos, por medo e pela covardia de viver, a fazer do seu cotidiano um espetáculo de coragem: matam e se matam das formas mais sensacionalistas possíveis e são premiados pelas edições televisivas, ao vivo e a cores.
A vida é fragmentada como os programas de televisão são fragmentados por propagandas comerciais, políticas e religiosas que nos oferecem o que há de melhor da mediocridade cultural contemporânea. Aos jovens cabe a submissão à certeza, quase ontológica, de que tudo é passageiro e de que estão definitivamente condenados à futilidade de existir e caminhar para a fuga mundi por meio da capitulação, do desespero e do suicídio.
A onda religiosa esotérica e de descrença, que progressivamente invade o mundo, faz com que os avós cristãos, politizados e contestadores de 68, se espantem com a falência das igrejas tão empobrecidas na sua dimensão espiritual. Estas igrejas têm, no máximo, conseguido dar uma roupagem nova aos antigos símbolos de consumo religioso para a sedução da massa cristã confinada às palmas e aos saracoteios. Neste “vale tudo”, a inventidade grassa: “carnavais de Jesus”, “cristotecas”, drinks batizados com o nome de santos e santas e até uma Eucaristia Fest patrocinada por uma diocese católica. O teólogo e cardeal von Balthasar aponta “para o perigo da tentativa de se fazer a experiência de Deus direta e “carismaticamente” que, na maioria das vezes, se torna uma auto sugestão psico-lógico-religiosa seja ela alcançada por uma dinâmica de grupo ou por qualquer outra maneira”.[10]
E Paulo já havia precavido sobre os excessos da Igreja de Corinto: “Tudo é permitido, dizeis. Mas, nem tudo convém. Tudo é permitido. Porém, nem tudo edifica” (1 Cor 10, 23).
Em todos os tempos, os jovens se identificaram com as atitudes de Jesus e de seu Evangelho. Buscam e falam a verdade, denunciam as hipocrisias, as dissimulações e as incoerências de uma vida em sociedade. Vivem a dimensão profética do Evangelho. Os jovens buscam uma vida comunitária, vivem em bandos com a criação de normas, símbolos, gestos, lealdades e, por isso, ao se sentirem ameaçados, tornam-se agressivos e violentos. Não temos o direito de estigmatizar esta maneira de viver como se fossem todos pertencentes a gangues marginais.
A carta de um jovem escrita nos anos 60 ainda ressoa a sua lucidez: “Gostaríamos de acreditar em Deus, em alguém que é forte, bom, verdadeiro, compreensivo, que nos quer fortes, autênticos, alguém que merece fé e amor. Vocês nos ensinaram e nos formularam um deus com definições abstratas e vazias, um deus que vocês projetaram e inventaram para justificar o seu comodismo, egoísmo, sistemas, dogmas, suas guerras, brigas, injustiças e explorações. E isto vocês chamaram de religião e com esta religião vocês ganharam muito dinheiro, inventando devoções, fazendo promessas. Vocês recitaram resultados de loterias e campanhas de caridade como se fossem piedosas orações”.[11]
Os jovens têm um forte senso de justiça social e se comprometem com lutas e aspirações de liberdade, em causas de ecologia e meio ambiente, em movimentos de superação do preconceito. Em sua interioridade, não temem transgredir tudo o que lhes parece hipócrita e sem convicção, sem temer a proscrição social, familiar e religiosa. Vivem em estado nascente e, muitas vezes, são abafados, amainados, ajustados ao tamanho e pequenez de uma vacilante e temerosa capacidade de amar e de débeis convicções e oportunistas lealdades.
Não há “crise da juventude”, mas a realidade de uma aguda crise social, política e religiosa que muitos quiseram um dia transformar, mas que acabaram concedendo e se ajustando a ela, traindo seus sonhos em nome da sua segurança e bem-estar. Perderam o ser e se apavoram com a possibilidade de perder o pouco do ter que amealharam por meio das concessões e submissões aos pequenos poderes que lhes garantiram uma ascensão no carreirismo profissional e religioso.
Na carta, o jovem continua a denunciar: “E vocês, nobre vereador, excelentíssimo deputado, deem uma prova de verdadeiro humanismo. Provem seu interesse pelo bem-estar da massa de famintos, dos analfabetos, dos marginalizados. Provem que são capazes dos seus cargos não pelo que dizem, pelo que lucram materialmente, mas pelo que são como homens e seres humanos. O que está realizando sem ninguém ver, sem interesse individual, partidário e sem motivos de manutenção do poder pessoal”.
E, contestatário, termina com um grito: “Vocês são hipócritas, nós meio fortes, transviados. Por favor, rezem por nós porque os hipócritas, os fracos têm pistolas!”.
A Juventude de Medellín: 1968
Do final dos anos sessenta à época contemporânea, os documentos das Igrejas Latino Americanas e do Caribe refletiram sobre a juventude. Percebe-se que, ao passar das décadas, em meio ao agravamento da situação econômica e social dos países da região e da degenerescência de suas instituições políticas, a juventude migrou de uma postura inicial ativa e utópica para um comportamento passivo e desencantado do mundo. Vejamos.
O documento da Conferência Episcopal Latino Americana (CELAM), reunida em Medellín no ano de 1968, reflete a juventude contestatária do mundo. “Os jovens esforçam-se por construir um mundo mais comunitário, que vislumbram, talvez, com mais clareza do que os antepassados. Estão mais abertos a uma sociedade pluralista e a uma dimensão mais universal da fraternidade. A atitude religiosa da juventude se caracteriza por recusar uma imagem desfigurada de Deus, que, às vezes, lhe tem sido apresentada, e pela busca de autênticos valores evangélicos” (5.4).
Os bispos estão atentos pelo fato dos jovens identificarem “a Igreja com os bispos e sacerdotes” e “por não terem sido chamados a uma plena participação na comunidade eclesial, não se consideram como integrantes da Igreja. A linguagem comum da transmissão das palavras (pregação, documentos pastorais, etc), é-lhes muitas vezes estranha e por isso não tem influência em suas vidas” (5.5). O documento recorda a citação de Paulo VI: “O mundo nos observa hoje de modo particular com relação à pobreza e à simplicidade de vida”.
Uma das características dessa juventude é “a sua rejeição de organizações demasiado institucionalizadas, as estruturas rígidas e as formas de agrupamentos massificados” (5.6). Para os bispos, a hierarquia confere um excessivo valor às ações de massa e aos resultados de importância numérica o que pode dificultar a presença do fermento e da irradiação dos grupos atuantes nos vários segmentos sociais, políticos e religiosos.
O documento final recomenda “que se apresente cada vez mais nítido na América Latina o rosto da Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo poder temporal e corajosamente comprometida com a libertação do homem todo e de todos os homens... Que se viva na Igreja, em todos os níveis, com caráter de serviço, um sentido de autoridade isento de autoritarismo” (5.15).
A Juventude de Puebla: 1979
O documento de Puebla declara a sua “opção preferencial pelos jovens”. E traça um perfil desta juventude: “Inconformismo que a tudo questiona; espírito de aventura que a leva a compromissos e situações radicais; capacidade criadora com respostas novas para o mundo em transformação, que aspira sempre melhorar em sinal de esperança. Sua aspiração pessoal mais espontânea e forte é a liberdade, emancipada de qualquer tutela exterior. É sinal de alegria e felicidade. Muito sensível aos problemas sociais. Exige autenticidade e simplicidade, rejeitando com rebeldia uma sociedade invadida por hipocrisias e contravalores” (1168).
Os bispos alertam para o processo ad intra na relação entre a juventude e a Igreja: “Atualmente, contudo, os jovens consideram a Igreja de diversas maneiras: uns a amam espontaneamente como ela é, sacramento de Cristo; outros a questionam para que seja autêntica; e não faltam os que procuram um Cristo vivo separado do seu corpo que é a Igreja. Há uma massa indiferente, passivamente acomodada à civilização de consumo ou outros sucedâneos, desinteressada da exigência evangélica” (1179).
Progressivamente, este divórcio irá se aprofundando e responderá pela despolitização e pela falta de consciência social da juventude cristã ainda que o documento aponte, incisivamente: “a pastoral da juventude deve ajudar também a formar os jovens de maneira gradual para a ação sócio-política e para as mudanças de estruturas, de menos humanas em mais humanas, segundo a Doutrina Social da Igreja” (1197). A formação de uma consciência crítica face aos meios de comunicação social que começam a difundir os “contravalores culturais” das duas pontas ideológicas que lutam pela hegemonia: o liberalismo do sistema capitalista e a filosofia marxista.
A Juventude de Santo Domingo: 1992
Os bispos reunidos aprofundam a análise sobre a realidade da juventude da América Latina e do Caribe: “Muitos jovens são vítimas do empobrecimento e da marginalização social, do desemprego e do subemprego, de uma educação que não responde às exigências de suas vidas, do narcotráfico, da guerrilha, das gangues, da prostituição, do alcoolismo, de abusos sociais. Muitos vivem adormecidos pela propaganda dos meios de comunicação social e alienados por imposições culturais e pelo pragmatismo imediatista que tem gerado novos problemas no processo de amadurecimento afetivo dos adolescentes e dos jovens” (112).
Os bispos, a exemplo dos Padres da Igreja, produzem uma das páginas mais contundentes sobre o rosto de Senhor: “Descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor (Mt 25, 31-46) é algo que desafia todos os cristãos à profunda conversão pessoal e eclesial. Na fé encontramos os rostos desfigurados pela fome, consequência da inflação, da dívida externa e das injustiças sociais; os rostos desiludidos pelos políticos que prometem, mas não cumprem; os rostos humilhados por causa de sua própria cultura, que não é respeitada, quando não desprezada; os rostos angustiados dos menores abandonados que caminham por nossas ruas e dormem sob as nossas pontes; os rostos sofridos das mulheres humilhadas e desprezadas; os rostos cansados dos migrantes que não encontram digna acolhida; os rostos envelhecidos pelo tempo e pelo trabalho dos que não têm o mínimo para sobreviver dignamente. O amor misericordioso é também voltar-se para os que se encontram em carência espiritual, moral, social e cultural” (178).
Na Campanha da Fraternidade de 1992 – Juventude Caminho Aberto – da CNBB, uma pesquisa apontou que 75% dos 27,4 milhões de jovens brasileiros, com idade entre 15 a 24 anos, se dizem católicos, mas apenas 50% participam esporadicamente das missas ou de alguma atividade religiosa e/ou paroquial. As declarações dos jovens da Pastoral da Juventude são eloquentes até hoje: “A Igreja precisa rever a sua posição em relação aos jovens”; “Os bispos e os padres ensinam uma coisa e a gente faz outra”; “Se os jovens disserem o que fazem e pensam, os padres vão mandá-los confessar”. Temos assistido, sobretudo depois do Crisma, a um esvaziamento progressivo da participação dos jovens expresso numa rebeldia tácita ao tentar construir e seguir a sua própria moral, sobretudo a da sexualidade.
A Juventude de Aparecida: 2007
O processo de mudanças sociais e políticas estava consolidado. Acabara, definitivamente, o SOREX – Socialismo Realmente Existente – e as instituições democráticas estão fragilizadas pela corrosiva corrupção que grassa sobre os poderes e instâncias da República. A Igreja fortemente marcada pelos movimentos e novas comunidades, cujo “boom” aconteceu no pontificado de João Paulo II, busca os ajustes necessários destas “seitas católicas” que brotaram e proliferam no seu interior. O Cardeal Ratzinger, o Papa Bento XVI, alertara: “Nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez”.[12]
Os bispos apontam para o mercado e o consumismo que, como cantos de sereia, atraem e traem a juventude e os participantes das Igrejas Particulares: “A avidez do mercado descontrola o desejo de crianças, jovens e adultos. A publicidade conduz ilusoriamente a mundos distantes e maravilhosos, onde todo desejo pode ser satisfeito pelos produtos que têm caráter eficaz, efêmero e até messiânico. Legitima-se que os desejos se tornem felicidade. Como só se necessita do imediato, a felicidade se pretende alcançar por meio do bem-estar econômico e da satisfação hedonista” (50).
Um desafio é lançado para a catequese do Terceiro milênio, para a educação evangelizadora, muitas vezes, realizada com um empenho louvável por leigos e leigas sem uma formação permanente e adequada: “As novas gerações são as mais afetadas por essa cultura do consumo em suas aspirações pessoais profundas. Crescem na lógica do individualismo pragmático e narcisista, que desperta nelas mundos imaginários especiais de liberdade e igualdade. Afirmam o presente porque o passado perdeu relevância diante de tantas exclusões sociais, políticas e econômicas. Assim mesmo, participam da lógica da vida como espetáculo, considerando o corpo como ponto de referência de sua realidade presente. Têm nova atração pelas sensações e crescem na grande maioria sem referência aos valores e instâncias religiosas. Em meio à realidade de mudança cultural, emergem novos sujeitos, com novos estilos de vida, maneiras de pensar, de sentir, de perceber e com novas formas de se relacionar. São produtores e atores da nova cultura” (51).
O tema dos “rostos do que sofrem” é retomado de Puebla e avança na dura constatação da realidade. “Isso nos deveria levar a contemplar os rostos daqueles que sofrem. Entre eles, estão as comunidades indígenas e afro-americanas que, em muitas ocasiões, não são tratadas com dignidade e igualdade de condições; muitas mulheres são excluídas, em razão de seu sexo, raça ou situação sócio-econômica; jovens que recebem uma educação de baixa qualidade e não têm oportunidades de progredir em seus estudos nem de entrar no mercado de trabalho para se desenvolver e constituir uma família; muitos pobres, desempregados, migrantes, deslocados, agricultores sem terra, aqueles que procuram sobreviver na economia informal; meninos e meninas submetidos à prostituição infantil, ligada muitas vezes ao turismo sexual; também as crianças vítimas do aborto. Milhões de pessoas e famílias vivem na miséria e inclusive passam fome. Preocupam-nos também os dependentes das drogas, as pessoas com limitações físicas, os portadores e vítimas de enfermidades graves como a malária, a tuberculose e HIV-AIDS, que sofrem a solidão e se veem excluídos da convivência familiar e social. Não esquecemos também os sequestrados e os que são vítimas da violência, do terrorismo, de conflitos armados e da insegurança na cidade. Também os anciãos que, além de se sentirem excluídos do sistema produtivo, veem-se muitas vezes recusados por sua família como pessoas incômodas e inúteis. Sentimos as dores, enfim, da situação desumana em que vive a grande maioria dos presos, que também necessitam de nossa presença solidária e de nossa ajuda fraterna. Uma globalização sem solidariedade afeta negativamente os setores mais pobres. Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: a exclusão social. Com ela a pertença à sociedade na qual se vive fica afetada na raiz, pois já não está abaixo, na periferia ou sem poder, mas está fora. Os excluídos não são somente “explorados”, mas “supérfluos” e “descartáveis”(65).
Os bispos finalmente ousam apontar e assinalar o “recrudescimento da corrupção na sociedade e no Estado, envolvendo os poderes legislativos e executivos em todos os níveis, alcançando também o sistema judiciário que, muitas vezes, inclina seu juízo a favor dos poderosos e gera impunidade, o que coloca em sério risco a credibilidade das instituições públicas e aumenta a desconfiança do povo, fenômeno que se une a um profundo desprezo pela legalidade. Em amplos setores da população, e especialmente entre os jovens, cresce o desencanto pela política e particularmente pela democracia, pois as promessas de uma vida melhor e mais justa não se cumpriram ou se cumpriram só pela metade. Nesse sentido, esquece-se de que a democracia e a participação política são fruto da formação que se faz realidade somente quando os cidadãos são conscientes de seus direitos fundamentais e de seus deveres correspondentes” (77).
Por uma Filosofia da Juventude
A intuição do papa João Paulo II de organizar a Jornada Mundial da Juventude foi uma maneira de fazer com que ventos novos soprassem numa Igreja que estava e está se tornando vetusta aos olhos do mundo. As mudanças culturais são céleres e neste redemoinho tudo parece “se desfazer no ar”. O filósofo Emmanuel Mounier (1905-1945), na sua curta vida, marcou gerações de jovens que encontraram na Ação Católica uma forma comprometida de responder às exigências do seu tempo. Para este filósofo, ser jovem é permanecer sempre disponível aos acontecimentos e aos homens, jamais envelhecer e nunca aceitar a vida como um fato consumado.
Este jovem filósofo centrou a sua ação no testemunho e não no sucesso e postulava que só há definitivamente um único dever para a inteligência: a coragem da verdade. Os jovens deviam testemunhar as suas relações fraternas pela acolhida, pelo rigor e pela generosidade. Mounier escrevia: “Dele [o cristão] é exigida permanentemente a arte de transfigurar as horas mortas, as ações medíocres, a monotonia cotidiana. Seu dever é resgatar toda a sua participação na ‘náusea do mundo’”.[13]
Este homem criticou os espiritualismos desencarnados e, como a Encarnação é a viga mestra do cristianismo, opunha a estes espiritualismos um realismo integral. Ainda hoje, a maior tentação para os cristãos e, sobretudo, para os jovens, é viver em igrejas e atuar em pastorais que escamoteiam a sua situação real: a de que devem ser igrejas encarnadas num lugar, comprometidas num tempo e entre homens e mulheres concretos.
Para Mounier, “o próximo é uma hóstia, um sacramento, uma presença inédita de Deus, um templo de Jesus Cristo. Se a vocação suprema da pessoa é divinizar-se divinizando o mundo, personalizar-se sobrenaturalmente personalizando o mundo, seu Pão cotidiano não é mais sofrer ou se divertir ou acumular riquezas, mas, hora a hora, criar próximos ao redor de si”.[14]
O grande chamado cristão é que sejamos capazes de criar comunidades em que o amor e a amizade encontrem a sua razão de existir. Entretanto, corremos o risco, se ficarmos apenas no frenesi dos grandes encontros de juventude, de escamotear, desde a sua preparação, a formação de uma consciência crítica tão exigida pelo Papa e por alguns bispos para responder aos desafios atuais.
Nos grandes espetáculos, os símbolos religiosos, muitas vezes, perdem a sua sacralidade e as músicas à la mode são os atrativos para uma multidão afoita e fechada em si mesma. É uma evangelização às avessas que não atinge uma densidade cristã verdadeira por estar reduzida a um cristianismo superficialmente sacramental, mais próximo da magia e que não conduz a uma fé que nasce da escuta da Palavra.
Estas concentrações são efêmeras, transformam cada jovem em objeto de divertimento e seus agrupamentos se diluem no dia a dia paroquial, em que vivem o mundo do condicional, do se que é “o mundo da irresponsabilidade, das idéias vagas, das posições neutras, da tagarelice, do conformismo social e político e da mediocridade moral”.[15] Com esta prática pastoral, confundimos o cristianismo com uma religiosidade sorridente e fazemos dele uma pálida caricatura.
Mounier é enfático ao afirmar que cada pessoa é um “ser-de-resposta” e cada cristão não se intimida e nem se recolhe, mas se assume: “Não somente nisto ou naquilo, mas integralmente em todo e qualquer ato, posto que cada um dos seus atos, ao extremo, respondendo ao que Deus e o mundo esperam dele, deveria ser como a concentração de toda a sua vida e a sua vida deveria tender a imitar o élan de um único e mesmo ato. O cristianismo é estranho ao narcisismo do mundo moderno”.[16] Neste sentido, o compromisso cristão, sobretudo o da juventude, não pode ser reduzido a um mero recrutamento: “O engajamento comporta uma fé e um dom, mas uma fé perpetuamente em revisão. É um ato viril e nunca um entusiasmo infantil. Se seu coração é quente, sua cabeça é fria. Do contrário, não fale mais de engajamento, mas de delírio”.[17]
Temos que desmontar todo o cristianismo desfigurado, abafado e que só interessa aos que pretendem continuar manipulando e iludindo os jovens com um catolicismo pequeno burguês marcado pela imobilidade que é “o caráter essencial desta odiosa caricatura do cristianismo”. Neste tipo de cristianismo, tão a gosto nestes tempos globalizados, a segurança, a economia, a imobilidade social, a sedução do sucesso individual, a complacência com a corrupção, a lassidão ética e moral das instituições, inclusive as religiosas, substituíram a fé, a esperança e o amor e, desta maneira, nasce um cristianismo sem vida, prisioneiro do conservadorismo, crispado em suas posições de defesa e imobilizado no seu moralismo.
Engessamos nossos jovens numa falsa humildade cristã, castramos o seu ímpeto de “fazer novas todas as coisas” e os condenamos a uma vidinha calma, nos limites das paróquias com seus programas medíocres e em vidas marcadas pelo medo de viver. Mounier denuncia: “Os católicos são realmente insuportáveis na sua segurança mística. Imaginam para si mesmos que o estado natural do cristão é a paz, paz pela inteligência, paz na inteligência. Quando ao contrário, é próprio do místico uma invencível inquietude. Se acreditam que os santos eram senhores tranquilos, estão muito enganados”.[18]
Mounier vai nos reafirmar a dimensão afirmativa do amor como luta: “O amor é luta. A vida é luta contra a morte, a vida espiritual é luta contra a inércia material e o sono vital. A pessoa toma consciência de si mesma não num êxtase, mas numa luta de força. Uma pessoa não atinge sua plena maturidade senão no momento em que escolheu para si umas tantas fidelidades que valem mais do que uma vida”.[19]
Na sua lucidez profética, apontava que uma imensa parcela do mundo cristão se abandonou ao paganismo e vive o divórcio profundo entre o cristianismo e o mundo: “O mundo atual não encontra mais o cristianismo. A palavra de Deus para ele torna-se propriamente letra morta e a Igreja perdeu a chave da língua dos homens”.[20]
Mounier denunciava, ó santa atualidade, a boa consciência dos satisfeitos que sustentam um cristianismo de fachada apoiado na preguiça e na tranquilidade. Um cristianismo que encoraja “uma espécie de fatalismo devoto, degradação da ideia de Providência, um tipo de masoquismo beato, degradação do espírito de fé, um bom humor satisfatório, degradação da esperança cristã, um sentimentalismo invertebrado e também uma degradação da caridade. Não é preciso insistir. Encontraremos mais cristãos, talvez com a imagem deste cristianismo desvitalizado do que com sua autêntica fisionomia”.[21] Ainda hoje, em setores vastos das igrejas, encontramos, como valor, este subproduto largamente espalhado.
Este tipo de cristianismo, muitas vezes estimulado nos grandes encontros da juventude, acaba por difundir uma educação mal entendida da pureza cristã que acarreta graves consequências. Mounier é de uma atualidade impactante: “Jovens que detestam a realidade e virgens desenxabidas que caminham para a piedade como quem vai para uma casa de retiros. É a desvirilização do cristão que conduz aos desvios do sentido do pecado: a falsa inocência e, no extremo oposto, um senso excessivo e escrupuloso de culpabilidade”.[22]
Criamos cristãos e católicos que temem a sua liberdade de ser e o risco de existir, mas, sobretudo, o de assumir as suas responsabilidades éticas e morais. Cristãos e católicos que alimentam uma submissão passiva aos acontecimentos e desenvolvem um gosto mórbido pelo sofrimento. Produzimos cristãos medíocres e deformados desde crianças a partir de certas literaturas de entusiasmo debilitantes e falsas: “Crianças que formam sua sensibilidade piedosa na poesia tola dos cânticos – quando temos salmos e hinos, quando temos músicos e poetas vivos. Nada aprendemos com as bibliotecas cor-de-rosa da piedade. Uma religião de carolas e de piegas nada arrebata, nem mesmo o reino de Deus”.[23] Estejamos seguros de que a santidade não se mede pelo grau de palidez do rosto. Os cristãos, pela educação que recebem, não estão suficientemente formados para a decisão: “São felizes desesperados, a mais horrorosa máscara que possa haver num rosto de homem”.[24]
Mounier nos convida a renunciar a um tipo de cristianismo reduzido a uma hierarquia de sentimentalidades cômodas: “Temos que romper a puerilidade de um cristianismo que produz homens delicados e frágeis que nunca avançam para uma fé comprometida, pois vivem tremendo e murados em suas defesas”.[25]
A Juventude do Papa Bento XVI
Traçar um fio condutor da concepção de juventude que o Papa Bento XVI, desde 2005, tem desenvolvido em seus encontros com os jovens do mundo, garante-nos um porto seguro para que as ciladas de um espetáculo de massa não sejam determinantes no encontro do Rio de Janeiro em 2013. Corremos o risco de “vender” aos jovens do mundo que somos o país do carnaval e que a alegria faz parte do nosso ser tropical, “abençoado por Deus e bonito por natureza”.
Desnecessário lembrar que um encontro desta monta faz circular muito dinheiro e que “agrega valor de mercado” a todos os produtos de consumo imediato, sejam eles culturais e/ou religiosos, independentemente da sua qualidade estética e artística.
Na mensagem do Papa João Paulo II, escrita em 2004, para a XX Jornada Mundial da Juventude, realizada um ano depois, em Colônia, na Alemanha, a recomendação foi enfática: “A idolatria é uma tentação constante do homem. Infelizmente há quem procure a solução para os problemas em práticas religiosas incompatíveis com a fé cristã. É grande a tentação de pensar nos mitos de fácil sucesso e do poder; é perigoso aderir a concepções evanescentes do sagrado que apresentam Deus sob a forma de energia cósmica e de outras maneiras que não estão em sintonia com a doutrina católica. Não cedais a falsas ilusões nem a modas efêmeras que muitas vezes deixam um trágico vazio e espiritual! Recusai as soluções do dinheiro, do consumismo e da violência dissimulada que por vezes os meios de comunicação propõem”.[26]
O Papa Bento XVI segue a linha de pensamento do seu antecessor e afirma para a juventude que “liberdade não quer dizer gozar a vida, considerar-se absolutamente autônomos, mas orientar-se segundo a medida da verdade e do bem para, desta forma, nos tornamos nós próprios verdadeiros e bons”. Para Bento XVI, “a hora de Jesus é a hora em que o amor vence. Em outras palavras: foi Deus que venceu, porque Ele é Amor”. Mas, apesar de tudo, “em vastas partes do mundo existe hoje um estranho esquecimento de Deus. Parece que tudo caminha igualmente sem Ele. Mas existe, ao mesmo tempo, também um sentimento de frustração, de insatisfação de tudo e de todos. É espontâneo exclamar: ‘não é possível que esta seja a vida!’. Deveras, não.”
Ao reconhecer que, com o esquecimento de Deus, acontece um “boom” do religioso, Bento XVI alerta: “Não quero desacreditar tudo o que existe neste contexto. Pode existir nisto também a alegria sincera da descoberta. Mas para dizer a verdade, não raramente a religião se torna quase um produto de consumo. Escolhe-se aquilo do que se gosta e alguns até tiram dela proveito. Mas a religião procurada a seu ‘bel prazer’ no fim não nos ajuda. É cômoda, mas no momento da crise abandona-nos a nós próprios”. O antídoto para esta religiosidade sentimentalista é manifestado na sensibilidade pelas necessidades do próximo: “Deve manifestar-se no compromisso pelo próximo, tanto pelo que está perto como pelo que está externamente distante, mas que nos diz sempre respeito de perto”.[27]
O Papa enfatiza que o poder de Deus é diferente do poder dos poderosos do mundo: “A maneira de agir de Deus é diferente de como nós a imaginamos e de como gostaríamos de impô-la também a Ele. Neste mundo, Deus não entra em concorrência com as formas terrenas do poder... A absolutização do que não é absoluto mas relativo chama-se totalitarismo. Não liberta o homem, mas priva-o da sua dignidade e escraviza-o... São muitos os que falam de Deus e em nome de Deus prega-se também o ódio e pratica-se a violência”.[28]
No decorrer da reunião do CELAM, em 2007, o Papa conclamou a juventude reunida no Estádio Municipal do Pacaembu, em São Paulo, a ter uma consciência ecológica para enfrentar não só “os problemas que envolvem a convivência humana, mas também a efetiva preservação e conservação da natureza, da qual todos fazem parte”. E denuncia: “‘Nossos bosques têm mais vida’: não deixeis que se apague esta chama de esperança que o vosso Hino Nacional põe em vossos lábios. A devastação ambiental da Amazônia e as ameaças à dignidade humana de suas populações requerem um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação que a sociedade vem solicitando”.[29]
O Papa, talvez sem o saber, fez eco ao Samba da Benção de Vinicius e Baden ao declarar: “Diante dos olhos, meus queridos jovens, tendes uma vida que desejamos seja longa; mas é uma só, é única: não a deixeis passar em vão, não a desperdiceis. Vivei com entusiasmo, com alegria, mas, sobretudo, com senso de responsabilidade”.[30]
Bento XVI, no seu encontro com os jovens na XXIII Jornada Mundial da Juventude, 2008, em Sidney, afirmava que “o amor de Deus pode propagar a sua força somente quando lhe permitimos que nos mude a partir de dentro. Temos de O deixar penetrar na crosta dura da nossa indiferença, do nosso cansaço espiritual, do nosso cego conformismo com o espírito do nosso tempo”. E acrescenta um desafio: “Amados jovens, permiti que vos ponha agora uma questão. E vós o que é que deixareis à próxima geração? Estais a construir as vossas vidas sobre alicerces firmes, estais a construir algo que há de durar?”.
Este desafio deve estar sempre presente em qualquer trabalho com a juventude, pois é a partir da busca para respondê-lo que poderemos avançar para “águas mais profundas” e para a criação de um mundo, como sonha o Papa: “Uma nova era em que o amor não seja ambicioso nem egoísta, mas puro, fiel e sinceramente livre, aberto aos outros, respeitador da sua dignidade, um amor que promova o bem de todos e irradie alegria e beleza. Uma nova era na qual a esperança nos liberte da superficialidade, apatia e egoísmo que mortificam as nossas almas e envenenam as relações humanas”.
Este trecho do Papa devia ser o roteiro de um permanente revisão de vida, de um ver, julgar e agir que comprometa, cada vez mais, os jovens cristãos para com os homens e mulheres de boa vontade na construção de um Igreja projetada para o futuro do Reino de Deus. Bento XVI é humilde em dizer: “Também a Igreja tem necessidade desta renovação. Precisa da vossa fé, do vosso idealismo e da vossa generosidade para poder ser sempre jovem no Espírito (cf Lumen gentium, 4)”.[31]
Na sua Mensagem para a XXIV Jornada Mundial da Juventude, de 2009, o Papa reiterou a sua preocupação com a consciência política e social dos jovens do mundo: “Fazei escolhas que manifestem a vossa fé; mostrai que compreendestes as insídias da idolatria do dinheiro, dos bens materiais, da carreira e do sucesso e não vos deixeis atrair por estas quimeras falsas. Não cedais à lógica do interesse egoísta, mas cultivai o amor ao próximo e esforçai-vos por colocar a vós mesmos e as vossas capacidades humanas e profissionais ao serviço do bem comum e da verdade, sempre prontos a responder ‘a quem vos perguntar a razão da vossa esperança’ (1 Pd 3, 15)”.[32]
O Papa afirma que, na sua juventude, com seus companheiros, exercera a sua vontade política: “simplesmente não nos queríamos perder na normalidade da vida burguesa”.[33] Recorremos novamente a Mounier para compreendermos os sinais de uma vida burguesa: uma ausência de renúncia, da desapropriação e do desapego. Para o burguês a religião tem por única função assegurar a ordem social e para manter os seus privilégios recorre sempre à mentira e edifica a sua vida sobre ela e, por isso, todas as suas relações humanas são falseadas. O Papa faz parte desta geração de jovens tocada pelo pensamento de Mounier assim como muitos padres conciliares.
Mounier denuncia a desordem estabelecida pelo mundo capitalista: “O dinheiro, pela facilidade que dá, avilta os homens criando o tipo padrão, de ideias feitas: o medíocre. Cria o reino do anonimato, do homem irresponsável, transtorna profundamente a atitude de vida, mata a gratuidade e, por meio dela, o amor. Impõe uma medida matemática a toda vida, uma avareza a toda generosidade, tende a transformar as intercomunicações humanas num perfeito sistema de intercâmbio de equivalências. Bane o espírito de pobreza, esvazia todo valor espiritual, terminando por nivelar as energias num ideal de riqueza mesquinho e estreito, de mediocridade confortável, de segurança tranquila, generalizada. O reino do dinheiro produz uma dupla de tiranos: a tirania da riqueza e a tirania da miséria, ambas inimigas da vida espiritual”.[34]
Não deixemos apagar das nossas mentes e corações o desafio de Bento XVI sempre presente em todas as Jornadas passadas, presentes e futuras: “E vós, o que é que deixareis para as futuras gerações?” Mas, sobretudo, responder a este desafio com as palavras do próprio Papa: “Queridos jovens, gostaria de vos convidar para ‘ousar o amor’, isto é, a não desejar nada para a vossa vida que seja inferior a um amor forte e belo, capaz de tornar toda a existência uma jubilosa realização da doação de vós próprios a Deus e aos irmãos, à imitação d’Aquele que mediante o amor venceu para sempre o ódio e a morte (cf Ap 5, 13)”.[35]
Bento XVI afirmou na última Jornada em Madri: “Ter fé é apoiar-se na fé dos teus irmãos e fazer com que a tua fé sirva também de apoio para a fé dos outros”.[36] E recomendava para os seminaristas, futuros padres e, com certeza, bispos: “Pedi-Lhe [a Jesus], pois, que vos conceda imitá-Lo na sua caridade até ao fim para com todos, sem excluir os afastados e pecadores, de tal forma que, com vossa ajuda, se convertam e voltem ao bom caminho. Pedi-Lhe que vos ensine a aproximar-vos dos enfermos e dos pobres, com simplicidade e generosidade. Afrontai este desafio sem complexos nem mediocridade, mas antes como uma forma estupenda de realizar a vida humana na gratuidade e no serviço, sendo testemunhas de Deus feito homem, mensageiros da dignidade altíssima da pessoa humana e, consequentemente, seus defensores incondicionais”.[37]
Na Alemanha, em setembro deste ano, o Papa reafirmou aos seminaristas: “A fé não é um mundo paralelo do sentimento que possamos permitir-nos como um extra, mas é aquilo que abraça o todo, que lhe dá sentido, interpreta-o e lhe dá também as orientações éticas interiores para que seja compreendido e vivido apontando para Deus e a partir de Deus”.[38]
Finalmente, o Papa não se esquiva da realidade do mal que atinge o mundo e a Igreja e proclama na sua lucidez: “Neste ponto, não devemos calar o fato de que o mal existe. Vemo-lo em tantos lugares deste mundo; mas vemo-lo também – e isto assusta-nos – na nossa própria vida. Sim, no nosso próprio coração, existe a inclinação para o mal, o egoísmo, a inveja, a agressividade. Com uma certa autodisciplina, talvez isto se possa, em certa medida, controlar. Caso diverso e mais difícil se passa com formas de mal escondido, que podem envolver-nos como um nevoeiro indefinido, tais como a preguiça, a lentidão no querer e no praticar o bem. Repetidamente, ao longo da história, pessoas atentas fizeram notar que o dano para a Igreja não vem dos seus adversários, mas dos cristãos tíbios.”[39].
Cumpriu-se o tempo...
Nestes tempos que antecedem a Jornada Mundial da Juventude de 2013, podemos ir além das exposições midiáticas que todo evento exige e comporta. O Papa Bento XVI oferece a régua e o compasso para este esforço da nova evangelização em que deve ser formada, urgentemente, esta nova geração de jovens católicos. O encontro de Assis, no dia 27 de outubro de 2011, com os representantes das religiões do mundo e mais três humanistas ateus, numa Peregrinação para a Paz, é um marco indelével a ser considerado, apesar das reações iradas dos mais fundamentalistas católicos.
Num primeiro momento, a descoberta afirmativa, como diz o Cardeal Gianfranco Ravasi de que “nós estamos unidos por causa da nossa descendência comum de Adão, um elemento que precede o pertencimento étnico e religioso. Todo homem olha para a terra, para o seu semelhante e eleva o olhar para Deus”.[40]
Num segundo momento, a afirmação do humanismo que pode unir os crentes e os não-crentes na superação dos totalitarismos e fundamentalismos que geram a violência, muitas vezes em nome das religiões. Como afirmou o Papa Bento XVI em Assis: “É verdade que, na história, também se recorreu à violência em nome da fé cristã. Reconhecemo-lo, cheios de vergonha”. Para a psicanalista Julia Kristeva, não-crente convidada pessoal do Papa, são os humanistas que poderão combater a nova banalidade do mal expressa na automatização da espécie humana. Ela afirma que é o momento de retomar os códigos morais do passado, uma vez que a Bíblia, os Evangelhos, o Alcorão, o Rigveda, o Tao, os fundamentos das religiões ancestrais habitam o nosso presente e precisamos repensá-los e revivê-los dentro das linguagens da modernidade. A refundação do humanismo não é nem um dogma providencial, nem um jogo do espírito: é uma aposta. Pela primeira vez, o homo sapiens é capaz de destruir a terra e a si mesmo em nome de suas religiões, crenças ou ideologias.
Num terceiro momento, o testemunho da fé na prática da solidariedade para a construção de uma Igreja Samaritana que conduza os nossos jovens aos compromissos éticos necessários, expressos nos confrontos e nas denúncias da corrupção econômica, social, política e religiosa.
Num quarto momento, aprender novamente a dialogar ao aceitar as diferenças, valorizar a diversidade, superar a intolerância e se colocar, humildemente, diante do outro para se deixar tocar pela sua singularidade.
Num quinto momento, o esforço de formação para que as comunidades não sejam de simples adesão, mas também de contestação: “Lembrando que, linguisticamente, “contestação” está ligada a “atestação”. Contesta-se a autoridade para atestar o Evangelho (...) É em grupo que se podem fazer coisas importantes, e é difícil para um cristão viver isolado, sobretudo quando se pensa que o cristianismo é uma religião encarnada e comunitária, não pura filosofia”.[41]
Num sexto momento, devemos facilitar a ruptura, no nosso espírito, daquilo que o jornalista italiano Ettore Masina convencionou chamar de “racismo eclesiástico”, expresso no contraste escandaloso entre uma religião recitada, cantada, dançada e um cristianismo vivido por tantos daqueles que pensamos “distantes”, para os quais Jesus chama a nossa atenção com insistência. A maior expressão deste tipo de atitude era o formalismo de Israel em relação aos samaritanos que gostaria de ver excluídos da salvação. Não seriam os humanistas ateus os samaritanos de hoje???
O evangelista é enfático: “João lhe disse: - Mestre, vimos alguém que expulsava demônios em teu nome, e o impedíamos, pois não anda conosco. Jesus respondeu: - Não o impeçais! Alguém que faça um milagre em meu nome não pode em seguida falar mal de mim. Quem não está contra nós, está a nosso favor” (Mc 9, 38-39). Jesus rompe qualquer atitude coorporativa dos que o seguem, mesmo porque seus discípulos foram incompetentes para curar o epiléptico que sofria muito e que, por esta razão, ouviram do Senhor que faziam parte de uma geração incrédula e perversa: “Até quando terei de estar convosco e aguentar-vos?” (cf. Mt 17, 14-18).
É terrível que, para muitos de nós, a comunhão sacramental seja satisfatória e, tantas vezes, uma cômoda substituição de uma comunhão de vida com quem sofre e tem necessidade de nossa solidariedade e compaixão.
Finalmente, é necessário e urgente dar um passo na formação dos jovens para que sejam capazes – a exemplo de Jesus e seguido pelo seu Pastor de Roma – de construir comunidades cristãs em que crentes de outras religiões e humanistas não-crentes possam vir e se indagarem juntos: “O que podemos fazer?”.
Desta maneira, por meio da juventude futura, vingaremos a Igreja proposta pelos Lineamenta do próximo Sínodo da “Nova Evangelização”: “Os frutos que este processo contínuo de evangelização gera para a Igreja, como sinal da força vivificante do Evangelho, formam-se no confronto com os desafios do nosso futuro. Precisamos gerar famílias que sejam um sinal real e verdadeiro do amor e da partilha, capazes de se abrirem à esperança, porque aberta à vida; é preciso ter a força de construir comunidades dotadas de um verdadeiro espírito ecumênico e capazes de diálogo com outras religiões; urge a coragem de apoiar as iniciativas de justiça social e de solidariedade, que coloquem no centro das atenções da Igreja os pobres; espera-se alegria no dar a própria vida num projeto vocacional ou de consagração. Uma Igreja que transmite a sua fé, uma Igreja da ‘nova evangelização’, é capaz, em todos esses âmbitos, de mostrar o Espírito que a guia e que transfigura a história: a história da Igreja, dos cristãos, dos homens e das suas culturas”.[42]
Nenhuma Jornada Mundial da Juventude, nem os jovens das Igrejas poderão ser os mesmos depois desse último encontro de Assis. A juventude deve ser também peregrina da verdade e da paz e se empenhar numa constante conversão como a exigida e testemunhada pelo Papa Bento XVI. Uma conversão em que afirma a sua identidade católica que, como o nome indica, deve se abrir ao ecumenismo cristão, à ruptura da ignorância e do preconceito diante das religiões tradicionais e, sobretudo, ao compromisso comum com os humanistas do mundo para a instauração da justiça e da paz.
Desta maneira e neste empenho sem tréguas poderemos compreender a denúncia profética de Malaquias: “Não temos um só Pai? Não nos criou um mesmo Deus? Então por que trabalhamos tão perfidamente uns contra os outros?” (Ml 2, 10).
Teresópolis, Festa de Todos os Santos e Santas, novembro de 2011
Bibliografia
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[1] Carlo Maria Martini, cardeal, “Que Cristianismo no mundo Pós Moderno?”, Vida Pastoral, São Paulo, nº 266, maio/junho, 2009.
[2] Citado por Lorenzo Fazzini, em reportagem publicada no jornal dos bispos italianos, Avvenire, 27-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, apresentada no site Instituto Humanitas Unisinos (IHU), em 29.10.2011.
[3] Henri Bergson, O riso, São Paulo, Martins Fontes, 2004, pp. 32-33.
[4] Joseph Ratzinger, Fé, Verdade e Tolerância, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2007, p. 84.
[5] A Fundação Getúlio Vargas publicou um estudo, com base em 200 mil entrevistas realizadas para o Censo do Brasil de 2010, em que sugere que o secularismo fez rápidas incursões entre os jovens brasileiros. “A principal conclusão é a seguinte: o número de pessoas com menos de 20 anos que dizem não seguir nenhuma religião está crescendo três vezes mais rapidamente do que entre as pessoas com mais de 50 anos, sendo que 9% dos jovens brasileiros dizem não pertencer a nenhuma religião”. Ver John L. Allen Jr., “Secularism, a new papal contender and Catholic humor”, National Catholic Reporter, 21.10.2011, site www.ncronline.org e a tradução de Moisés Sbardelotto de parte do texto em www.ihu.unisinos.br, em 03.11.2011.
[6] Marco Tosatti, “Por que os jovens cristãos abandonam as Igrejas”, Vatican Insider, 10.10.2011, tradução do CEPAT/IHU em 14.10.2011. As observações a seguir se baseiam em parte neste artigo.
[7] Idem.
[8] Hans Urs von Balthasar, L’heure de l’Église, Paris, Fayard, 1986, p 62.
[9] Idem, p. 24.
[10] Idem, pp. 36-37.
[11] Revista Texto e Contexto, suplemento, maio de 1968.
[12] J. Ratzinger, Situação atual da fé e da teologia. Conferência pronunciada no Encontro de Presidentes de Comissões Episcopais da América Latina para a Doutrina da Fé, México, 1996.
[13] E. Mounier, “Mounier et sa generation”, in Ouvres de Mounier, Paris, du Seuil, 1961, p. 240. Ver também a ótima síntese da obra deste filósofo católico feita por Candide Moix, O pensamento de Mounier, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968.
[14] Mounier, “Liberté sous conditions”, idem, pp. 63-64.
[15] Mounier, “Le Personalisme”, idem, p. 45.
[16] Mounier, “Liberté sous conditions”, idem, p. 29.
[17] Mounier, “Suplement Litteraire du Nouvel Alsacien”, 18.02.1948.
[18] Mounier, “Le personnalisme”, idem, p. 73.
[19] Idem, pp. 67-68.
[20] Idem, p. 90.
[21] Mounier, “Espoir des désespérés”, Ouvres, p. 152.
[22] Mounier, “L’Affrontement Chrétien”, idem, p. 63.
[23] Idem, p. 69.
[24] Mounier, “Mounier et sa generation”, Ouvres, p. 251.
[25] Idem, p. 252.
[26] João Paulo II, Mensagem para a XX Jornada Mundial da Juventude, Castel Gandolfo, 6 de agosto de 2004.
[27] Bento XVI, Homilia da Missa na Esplanada de Marienfeld, Colônia, 21 agosto de 2005.
[28] Bento XVI, Vigília de Oração com os jovens na Esplanada de Marienfeld, 20 de agosto 2005.
[29] Bento XVI, Discurso no Encontro com os jovens no Estádio Municipal do Pacaembu, São Paulo, 10 de maio de 2007.
[30] “A vida é uma só. Duas ninguém me venha dizer que tem não, sem me provar muito bem provado com uma carta do cartório do céu, assinada embaixo: Deus! E com firma reconhecida. Cuidado, companheiro, a vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida” (trecho da letra do Samba da Benção).
[31] Bento XVI, Homilia no Hipódromo de Randwick, Sidney, 20 de julho de 2008.
[32] Bento XVI, Mensagem para a XXIV Jornada Mundial da Juventude, Vaticano, 22 de fevereiro de 2009. Os jovens de várias nacionalidades dão nesses últimos dias “razão de sua esperança” ao se mobilizarem criticamente em seus países contra a idolatria do dinheiro e da ganância promovida pelos grandes centros financeiros e empresas mundiais. O movimento dos “indignados” nos Estados-Unidos é intitulado “Ocupem Wall Street” (local do maior centro financeiro do país) e em muitos dos cartazes empunhados ecoa-se a mensagem radical do Evangelho: “A compaixão é revolucionária”; “Capitalismo é um estado de espírito, transcenda-o”; “Não há razão para mais violência e cobiça”; “A ganância é a nossa civilização”; “Acabe com a guerra, alimente o pobre”; “Eu estou aqui com você porque você está aqui por mim”. Eis a mensagem, no calor da hora, de uma comentarista do movimento: “É isso o que vejo acontecendo nesta praça. Na forma em que vocês se alimentam uns aos outros, se aquecem uns aos outros, compartilham informação livremente e fornecem assistência médica, aulas de meditação e treinamento na militância. O meu cartaz favorito aqui é o que diz ‘eu me importo com você’. Numa cultura que treina as pessoas para que evitem o olhar das outras, para dizer ‘deixe que morram’, esse cartaz é uma afirmação profundamente radical” (a autora é Naomi Klein, de Nova York e seu texto foi postado em 06/10/2011, em www.naomiklein.org/articles, tradução de Idelber Alvelar).
[33] Bento XVI, Mensagem para a XXVI Jornada Mundial da Juventude, Vaticano, 06 de agosto de 2010.
[34] Emmanuel Mounier, Esprit, nº 29, fevereiro 1935, p. 309.
[35] Bento XVI, Mensagem para XXII Jornada Mundial da Juventude, Vaticano 27 de janeiro de 2007.
[36] Bento XVI, Celebração Eucarística conclusiva, Madri, 21 de agosto de 2011.
[37] Bento XVI, Missa com os Seminaristas, Catedral de Santa Maria la Real, Madri, 20 de agosto de 2011.
[38] Bento XVI, Discurso aos seminaristas na capela São Carlos Borromeu do Seminário de Friburgo, Alemanha, 24 de setembro de 2011.
[39] Bento XVI, Vigília com os jovens na Feira de Freiburg, 24 de setembro de 2011.
[40] Citado por Fazzini, Avvenire, em 27.10.2011, tradução de Moisés Sbardelotto para IHU, 29.10.2011.
[41] Joseph Moingt, Croire quand même, Paris, Temps Présent, 2010, p 83.
[42] SÍNODO DOS BISPOS: XIII Assembleia Geral Ordinária “A Nova Evangelização para a Transmissão da Fé Crista”, Lineamenta, Brasília, Edições CNBB, Documentos da Igreja 6, 2011, p 74.
Enraizados e alicerçados em Cristo, confirmados na fé (Cl 2, 7)
Timothy Radcliffe, op, Taizè, 2010[1]
Muito obrigado a vocês por me convidarem a vir e a partilhar umas poucas palavras sobre a missão aos jovens da França de hoje. Como não sou nem francês e nem jovem, não estou certo de que o que eu disser será útil. Mas eu recordo de um dos meus confrades que deu uma palestra em Chicago. Quando ele sentou o aplauso não foi muito entusiástico! Então ele disse a pessoa ao seu lado, “Eu espero que isto não tenha sido ruim”. E o homem replicou: “Eu não o culpo absolutamente. Eu só culpo aquele que o convidou a vir e a falar em primeiro lugar”. Logo, culpem os organizadores!
Alguns de vocês estão cheios de entusiasmo com a ideia de se pregar o evangelho. Vocês não podem esperar mais para partilhar as boas novas de Jesus. Outros podem ficar um pouco hesitantes. O que eu posso dizer? O que eu acredito? Eu sei tão pouco. Eu tenho duas coisas a dizer a vocês. Primeiro, antes de tudo, os melhores pregadores são muitas vezes hesitantes e inseguros. O profeta Jeremias resistiu a ser enviado. Ele disse a Deus: “Eu não sei como falar, pois sou apenas um jovem” (Jr 1, 6). Quando os apóstolos foram enviados depois de Pentecostes para pregar ao mundo inteiro, eles permaneceram em casa. Eles não queriam deixar o ninho. Foi só a perseguição que fez com que eles se movessem. Logo, se vocês se sentirem relutantes, então não se preocupem. Os apóstolos também foram! Em segundo, pregar o evangelho diz mais sobre como ser do que como fazer. É sobre como vocês são em Cristo.
Vocês estão “enraizados e alicerçados em Cristo, confirmados na fé”. Vocês estão vivos em Cristo. Vocês são o corpo dele. Santa Teresa de Ávila disse: “Cristo não tem corpo agora na terra a não ser o de vocês, não tem mãos a não ser as de vocês, não tem pés a não ser os de vocês. Vocês são os olhos através dos quais transparecem a compaixão do Cristo para o mundo. Vocês são os pés com os quais ele está a ir a fazer o bem. São suas as mãos com as quais ele está a abençoar agora as pessoas”.
Assim, eu quero examinar como vocês são enviados para ser a face, os ouvidos, a boca e as mãos do Cristo presente hoje para os jovens na França.
A Face
Comecemos com a face. Quando você ama alguém, a coisa mais importante é quando sorriem para você. Eu me lembro, quando ainda tímido adolescente, ficava desesperadamente pendurado em cima de uma garota pela qual estava perdidamente apaixonado, esperando que ela apenas notasse que eu existia e me desse um sorriso. Se ela me olhasse, então eu me sentiria como se não existisse. E se ela fechasse a cara, como uma máscara, então eu estava acabado. Ela se apaixonou por um soldado e eu me tornei um Dominicano!
Assim foi Israel com Deus. Eles só queriam que Deus sorrisse para eles. “Resplandeça sua face sobre nós e nós seremos salvos” (Sl 80, 4). Quando pensamos em salvação, é talvez para nos livrarmos de punições ou termos os pecados perdoados. Mas no Velho Testamento foi mais humano. Foi Deus olhando por nós com amor. O mais antigo texto bíblico é um pedaço de couro sobre o qual estão escritas estas palavras: “O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti. O Senhor volte para ti o seu rosto e te conceda a paz” (Nm 6, 23-26). Quando alguém olha amorosamente, nós podemos então repousar sobre aquele sorriso. A face de Deus torna-se carne na face de Jesus. Ele reconheceu todas as pessoas que necessitaram daquele sorriso. Ele avistou o pequeno Zaqueu em cima da árvore e sorriu para ele. Ele viu Levi aguardando a multidão na sua loja de impostos e o chamou. Há milhões de pessoas que se sentem invisíveis e desejariam simplesmente ser vistas. Simone Weil disse: “O Amor vê o que é invisível”.
Quando sorrimos para alguém, nós revelamos o seu valor para todo o mundo. Raimund Gaiti é um filósofo australiano. Quando ele tinha dezessete anos, assumiu um emprego como assistente de enfermaria num hospital psiquiátrico da Austrália. Os pacientes haviam perdido todos os sinais de dignidade e inteligência humanas. Muitos dos doutores e enfermeiras eram profissionais, pessoas decentes que conversavam sobre a inalienável dignidade daquelas pessoas doentes. Então, uma enfermeira veio visitá-los. Ele ficou desconcertado pela forma como a qual ela se relacionava com os pacientes. Seu sorriso (e palavras) era extraordinário “pelo seu poder de revelar a plena humanidade daqueles cujas aflições haviam tornado sua humanidade invisível. Amor é o nome que damos a esse tipo de comportamento”. Ele observou que os guardas da prisão verão os prisioneiros de um jeito novo quando eles os enxergarem com pessoas que os amam.
O amor anseia que o sorriso seja retribuído. E esta é a beleza e o risco da missão. Retornará de alguma forma o sorriso? Em Oxford, onde vivo, há muitos mendigos e eles tentam captar o seu olhar. Nós olhamos de volta? Um dia fui levado a visitar um enorme depósito de lixo na periferia de Kingston, Jamaica, que era a moradia das pessoas mais despossuídas. E eu avistei uma espécie de uma cabana primitiva, quase como uma grande caixa de papelão. E quando eu estava perto, uma mãe e seu jovem filho surgiram. Eles me convidaram a entrar e ofereceram-me uma Coca-Cola que tinham, suponho que encontrada no depósito, e seu filho propôs trocar as camisetas. Eu fiquei profundamente tocado. Eu guardei aquela camiseta por anos. Parece ter encolhido um tanto e eu não posso mais entrar nela. Não foi apenas o fato de que eu os vi, mas sim de que eles me viram, eu existia em seus olhos, fui convidado para o interior de sua casa. Mesmo se por um breve momento, eles me convidaram para ser o seu irmão.
Logo, essa é a nossa primeira missão, oferecer o olhar amoroso de Deus. Deus leva prazer para dentro das pessoas. Deus se delicia nelas, pelo fato de elas existirem acima de tudo. Nós devemos aprender a ser a face do regozijo de Deus para as pessoas, sobretudo aquelas que se sentem desprezadas ou invisíveis. A seguir, nós devemos aprender a como ouvir com os ouvidos de Jesus. Nós devemos ser os seus ouvidos hoje.
Os ouvidos
Nós habitualmente imaginamos os pregadores como pessoas que falam. Eles sobem aos púlpitos e contam às pessoas tudo sobre tudo. Mas não há pregação do evangelho se não houver alguém que tenha escutado. Quando as pessoas vêm a Jesus, ele em geral as faz falar em primeiro lugar. Ele não impõe o evangelho goela abaixo e sim quer descobrir o eles querem. Quando o cego Bartimeu vem a ele, Jesus diz, “O que você quer que eu faça a ti?” Ele já deveria ter pensado que isto era óbvio. O homem não pode ver. Um rápido milagre. Zap, e se segue adiante. Mas não! Jesus quer ouvir daquele homem, por ele mesmo, o que ele quer. Ele responde aos nossos desejos. Jesus escuta.
Nós não somos vendedores vendendo Deus como uma resposta para tudo. Nós começamos onde as pessoas estão e com o que elas querem. Que é talvez apenas um pouco de companhia, ou alguém para apanhar os remédios para elas quando estão doentes, ou alguém para segurar as suas mãos. Mas se nós respondemos ao que elas querem, então lentamente elas podem vir a descobrir os seus mais profundos desejos, que são aqueles dirigidos para Deus. Deixemos que elas tenham seu tempo.
Escutar as pessoas é uma das maiores artes no mundo. Às vezes, somos medrosos para escutar porque ficamos perturbados pelo o que elas dizem. Ou poderíamos ficar com medo porque não temos nenhuma ideia do que podemos dizer em resposta às suas questões. Quando eu era um capelão universitário, muito jovem e inexperiente, uma bela jovem estudante veio a mim para ter uma conversa muito pessoal. A maior parte dela centrada sobre sua vida sexual um tanto exótica. Como um jovem inocente frade, minha imaginação estancou. Acima de tudo, eu estava tão nervoso sobre o que eu poderia dizer quando ela parasse de falar que eu praticamente parei de escutar. E então quando ela parou, eu de fato não tinha nada a dizer! Se nós realmente escutamos, com toda a nossa imaginação, com toda a nossa abertura de mente e coração, então Deus nos dará alguma coisa a dizer.
Perdoam-me se eu me gabar pela citação. Eu não posso resistir a isto. Uma vez quando tive de dar as boas-vindas ao papa João Paulo II em uma de nossas universidades, eu memorizei um pouco de polonês. Quando terminei, ele completou a frase. Então eu disse em italiano, “Eu espero que minha pronúncia em polonês seja melhor do que meu italiano”. E ele respondeu rápido como um raio: “Se o coração está aberto, as mentes compreendem”. Assim, nós temos que escutar com os corações abertos, abertos para o que alguém está vivendo, abertos às suas convicções, às suas questões.
Se nós estamos realmente absorvidos em nós mesmos, então nós não ouviremos o que a outra pessoa diz. Noel Coward, o dramaturgo inglês, uma vez encontrou um amigo depois de muitos anos e este disse a ele: “Não há tempo de falarmos sobre ambos, então vamos falar sobre mim”. Escutar é uma disciplina espiritual. Dominique Pire foi um belga dominicano que recebeu o Prêmio Nobel, após a Segunda Guerra Mundial, por seu trabalho pela paz. Ele costumava a dizer: “Deve-se estar preparado a preencher a si mesmo com a vida do outro”. Saint Exupery, o piloto francês que escreveu O Pequeno Príncipe, disse, “Se eu me diferencio de você... eu te torno maior”. Isso pode ser amedrontador. Eu ouso escutar a alguém que tem ideias diferentes das minhas?
Eu ouso escutar a alguém que tem compreensões da fé muito diferentes da minha? A Igreja está muito dividida entre tradicionalistas e progressistas. Com frequência, eles não escutam uns aos outros. Nós ousamos escutar, assim como Jesus que nunca ficou com medo de escutar a qualquer um?
Assim, nós temos sorrido e temos escutado, agora podemos estar prontos para falar. Nós somos a boca de Deus.
A Boca
Esta é onde muitos de nós ficam nervosos. O que eu tenho a dizer? Quando era um noviço dominicano, eu ficava espantado que os meus colegas noviços estavam impacientes para começar a pregar. Eu temia a hora. Eu sentia que eu não sabia de nada e que ficaria paralisado pela ansiedade. Eu tinha tantas questões e dúvidas. Vocês poderiam pensar por essa razão que eu era um estúpido por me juntar à Ordem dos Pregadores. Era como, segundo dizem, um peru votando pelo Natal [sabendo que ia ser comido]! Assumindo que eu não sou o único a ter estas preocupações, vamos encaminhá-las uma por uma.
Jesus é a Palavra de Deus. A Palavra de Deus não é principalmente sobre a comunicação de fatos. Deus fala sua Palavra e as coisas vêm a ser. Deus diz “faça-se a luz” e ela se fez. “Faça-se frei Aloïs”, “façam-se as lesmas, assim os franceses podem comê-las”, e eu também. Jesus como a Palavra de Deus fala palavras para as pessoas que as curam, que as acolhem, que as fazem crescer e algumas vezes que as confrontam.
Durante todo o dia, nós ficamos em chats, em blogs, trocando piadas, escrevendo textos, partilhando as notícias, lamentando-nos sobre professores chatos, fofocando. O falar é a atividade humana mais importante. E a maior questão moral de todas é esta: nós oferecemos às pessoas palavras de força espiritual que as elevem, que as valorizem e as acalentem; ou nós oferecemos palavras más que acusam e minam, que denigrem as pessoas? Nós oferecemos a Palavra de Deus, que é criadora? Ou oferecemos a palavra de Satã que é destrutiva e enganadora? Nós tratamos as pessoas como lixo?
É contada a estória de um rabino que estava indo à loucura por causa de uma mulher da sinagoga que estava sempre fofocando sobre todo mundo, espalhando estórias desagradáveis. E então um dia ele a levou para o topo de uma torre alta e pediu que ela esvaziasse o conteúdo de um travesseiro. E as penas flutuaram por toda a cidade. E então ele disse: “Agora vá e colete todas as penas”. E ela replicou, “Rabino, isto é impossível; elas estão em toda parte”. E ele disse, “É a mesma coisa com as suas palavras más”.
A mídia muitas vezes comunica palavras que são destrutivas e cínicas. As pessoas são criadas como celebridades pela mídia, num dia, e depois elas são destruídas. Políticos, pessoas do esporte, futebolistas franceses têm que suportar o peso de seus fracassos. Nosso mundo está cheio de palavras duras que ferem as pessoas e as enfraquecem.
Assim, se somos chamados a ser a boca de Jesus hoje, então temos primeiro que falar palavras que acarinhem e reverenciem as pessoas, especialmente as pessoas que são consideradas lixo por outras e que se sentem desprezadas e no limite, pois são estas que são as amigas de Deus.
Mas e sobre as minhas dúvidas e questões? Posso sentir que não sei muito sobre a minha fé e talvez eu me pergunte se eu acredito de qualquer maneira em tudo isto. Como eu posso sair e pregar o evangelho quando eu não estou seguro? Devo suprimir as minhas dúvidas?
Ao final do evangelho de Mateus, quando Jesus enviou os discípulos para ir e pregar até o fim do mundo, foi dito que “alguns duvidaram”. Eu amo isso. Lá estão eles sobre a montanha, diante do Senhor Ressuscitado, e alguns ainda não estavam seguros. Porém, Jesus os enviou de qualquer jeito! No evangelho de João, a primeira pregadora é a mulher do poço. Ela é uma mulher com uma má reputação. Ela tinha vivido com cinco homens. Ela era provavelmente considerada uma prostituta. E ela estava cheia de dúvidas e questões sobre este estranho homem Jesus. Mas ela é a primeira pregadora. E a primeira pessoa a confessar a divindade de Jesus é Tomé, o Incrédulo. Ele resiste a acreditar na Ressurreição. Ele quer uma prova. Ele quer colocar suas mãos no lado de Jesus. Mas é este homem, que duvida e questiona, que primeiro diz a Jesus: “Meu Senhor e meu Deus”.
Assim, quando formos falar sobre a nossa fé, alguns de nós podem ter incertezas, indagações e questões não resolvidas. E isto é bom! Porque então as pessoas verão que ser um Católico não significa que nós possuímos todas as respostas. O cardeal Kaspar do Vaticano disse que a Igreja teria muito mais autoridade se alguma vezes dissesse com mais frequência: “Eu não sei”.
O maior professor da Cristandade foi o Dominicano, São Tomás de Aquino. Eu sou, é claro, perfeitamente imparcial! Ele amava o texto, “Não chame ninguém de Mestre. Há apenas um Mestre, que está no céu”. Quando eu fui Mestre da Ordem, eu notei que as pessoas pareciam amar especialmente aquele texto. Ele aparecia com uma frequência suspeita nas leituras. Nenhum de nós é mestre. Nós acompanhamos as pessoas quando nós aprendemos, partilhando suas questões e problemas. Nós andamos uns com os outros, pensando juntos. Nós não devemos ter medo de raciocinar enquanto pesquisamos. Nós acreditamos que a nossa racionalidade é um dom de Deus e nos trará para Deus finalmente.
Eu me recordo de um dos meus irmãos, Herbert McCabe. Foi dito que quando ele tinha seis anos, sua mãe o repreendeu por alguma malcriação feita. Ela disse, “Agora você tem sido um menino muito ruim. Isto é tão mal que poderia ser mesmo um pecado mortal”. E supõe-se que o jovem Herbert tenha respondido, “Mãe, isto é impossível. Eu não posso cometer um pecado mortal até que eu tenha atingido a idade da razão. De acordo com a Igreja eu não a atingi com a idade de seis anos. Seu raciocínio é, portanto, falho”.
Mas deixem-me colocar umas boas palavras sobre doutrina. Há um vasto preconceito doutrinário contra a doutrina em nossa sociedade. É assumido que doutrinas fazem você parar de pensar. Crianças aceitam doutrinas. Pessoas crescidas pensam por elas mesmas. Doutrinas tornam as pessoas intolerantes a outras crenças. São as doutrinas em conflito que estão conduzindo as pessoas religiosas a se matarem umas as outras em Israel, Iraque e Paquistão. Muitas pessoas dizem, “Deixemos cair o dogma e vamos para algo bom e amistoso como a espiritualidade!”.
Mas a verdadeira doutrina nunca fecha a sua mente. Ela sempre nos impulsiona em direção ao mistério. A verdadeira doutrina é uma aventura sem fim para dentro do mistério de Deus. G. K. Chesterton falou sobre a aventura da ortodoxia. Nós somos batizados dentro do mistério da Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Isto é um mistério, mas isto é o mistério que explica tudo. Para nós, ser verdadeiramente vivo é partilhar a vida da Trindade na qual nós fomos batizados.
Contudo, houve um antigo e venerável Dominicano irlandês chamado Cardeal Michael Brown. Ele havia sido Mestre da Ordem e teólogo papal. Quando era uma criança, ele havia sido batizado numa emergência por uma freira anciã. Então, ele a localizou com o intuito de agradecê-la. Ela disse, “Sua Eminência, foi uma grande honra para mim batizá-lo em nome de Jesus, Maria e José”. De repente ele pensou: se eu nunca fui batizado corretamente, então eu não poderia ser ordenado e nem mesmo sou um Cardeal!
As doutrinas da Trindade, da Divindade do Cristo e da Ressurreição são absolutamente excitantes. Quando eu era um jovem Dominicano, nos loucos anos sessenta, quando tudo parecia ruir, a razão para eu ficar foi porque meus irmãos me ensinaram o absoluto excitamento, o esplendor e a maravilha da doutrina. A evangelização da Europa moderna depende, eu penso, da redescoberta da beleza e da libertação da verdadeira doutrina.
Nem todos nós temos a vocação de ser professores de doutrina. Alguns de nós serão a boca de Jesus de outras maneiras, talvez mesmo de maneiras mais fundamentais, pela emissão de palavras que curam e que dão vida. Mas nós precisamos de pessoas que passem vários anos se embrenhando na teologia a fim de manter vivas nossas grandes doutrinas.
Eu penso que o grande desafio hoje é como tocar a imaginação dos jovens. A lógica não é o bastante. E isso significa que devemos compreender os filmes que os jovens amam, as canções que vocês cantam, os romances que vocês lêem. Se ficarmos excitados pelo que excita os jovens hoje, então nós seremos capazes de falar uma palavra que está encarnada no mundo de vocês. Esta é a razão porque quando falo para as pessoas jovens da Inglaterra, eu muitas vezes começo a partir de um filme que eu penso que eles tenham visto.
Quando estava voando para Sidney no último verão, eu assisti novamente o maravilhoso filme, Os Filhos do Silêncio, (The Children of Lesser God), a estória de um homem que leciona numa escola para surdos e fica profundamente apaixonado por uma linda e atormentada mulher que está aprisionada no silêncio. Num determinado momento, ela faz um sinal para ele, “A menos que você possa me deixar ser um ‘eu’, como você é um ‘eu’, eu não deixarei você entrar em meu silêncio para me conhecer”. Eu pensei, “Sim. Que visão para o amor; isto é a encarnação”. E eu corri pelo corredor, as lágrimas correndo pelo meu rosto, implorando à comissária por um pedaço de papel para que pudesse registrar aquilo. Ela provavelmente pensou, “Outro pirado que deve ter bebido muito”.
Assim, nós já observamos como nós podemos ser a face de Deus, os ouvidos de Deus e a boca de Deus. Agora nós vamos para o sentido mais importante e humano de todos, que é o tato.
O Tato
Jesus circulou tocando as pessoas. Ele tocou os corpos dos doentes. Ele tocou os leprosos. Ele tocou até os mortos, o que o teria tornado ritualmente impuro. Ele ficava perfeitamente à vontade de ser tocado também. Lembrem-se daquela mulher que tinha sido provavelmente uma prostituta. Ele a deixa lavar seus pés e secá-los com seus cabelos. Eu acho a ideia de ter alguém lavando meus pés com seus cabelos um tanto estranha e pouco atrativa. Mas Jesus estava à vontade com seu corpo e com os corpos das outras pessoas. Por que o tato era tão importante?
São Tomás de Aquino, nosso grande professor, disse que ele era o mais humano dos sentidos. As águias vêem melhor do que nós. Comparado aos cães, mal temos narizes dignos de se falar. Os morcegos ouvem coisas que não podemos ouvir. Assim, quando vocês realmente amam as pessoas, o primeiro desejo de vocês é o de tocar nelas.
Por que isto é tão evidente no amor? Porque quando vocês amam, então o tato é sempre mútuo. Quando vocês tocam alguém que vocês amam, então eles tocam em vocês. Vocês podem ver ou ouvir sem serem vistos ou ouvidos. Vocês podem cheirar sem ser cheirados, ao menos por seres humanos. Mas vocês não podem tocar sem serem tocados. Assim, a Encarnação é quando Deus nos toca e nós somos tocados por Deus. Isto é a consumação do nosso amor mútuo.
Isso explica porque o toque abusivo ou não amoroso é tão terrível, uma vez que destrói a essência do tato, que é a mutualidade. Gandhi recusou deixar que os da casta mais baixa no hinduísmo fossem chamados de “intocáveis”. É claro, isso significava que os outros não se deixavam ser tocados por eles. A compaixão nos dá um coração de carne. Isto significa que nós desejamos alcançar e tocar as pessoas que os outros rejeitam.
No ano passado, o Dalai Lama veio visitar a minha comunidade, dos Blackfriars, para participar de uma discussão sobre a contemplação em nossas diferentes tradições. Paul Murray, o Dominicano irlandês, deu uma maravilhosa palestra e havia um Carmelita. E o Dalai Lama correspondeu. Nós não resolvemos nossas diferenças, mas nós escutávamos uns aos outros com os ouvidos abertos. Mas o que saltou aos nossos olhos não foi o que o Dalai Lama disse, mas o que ele fez. Uma amiga da comunidade estava lá numa cadeira de rodas. Ela havia ficado paralítica devido a uma terrível batida. E quando o Dalai Lama entrou ele fez uma pausa perto da sua cadeira de rodas e encostou sua face na dela em silêncio. Ele permaneceu mais tempo com ela do que com qualquer um. Aquilo foi a personificação da compaixão.
Quando eu fiquei envolvido um pouco no trabalho com pessoas com Aids, no início dos anos oitenta, eu descobri a importância do tato. Minha comunidade organizou uma conferência sobre Igreja e Aids e nós ficamos surpreendidos pela resposta. Doutores, enfermeiras, capelães, pessoas com aids e seus amigos, todos quiseram vir. Eram os dias iniciais. A maior parte da gente nunca havia encontrado alguém com aids. Nós estávamos um pouco nervosos em como lidaríamos com isso. Mas ao final da missa, um jovem homem chamado Benedito que tinha aids veio para mim para o beijo da paz. E quando o abracei, pensei, “este é o corpo do Cristo, precisando de um abraço hoje”. Em Cristo, Deus veio e nos tocou. Deus está em contato conosco mesmo neste dia. Precisamos partilhar este tato.
Porque nossa sociedade é tão preocupada com o risco e por causa dos temores do abuso sexual, nós ficamos nervosos com o toque. As preocupações são certamente justificadas. Têm havido muitos toques abusivos e destrutivos que têm machucado profundamente as pessoas. Mas nós devemos nos reerguer recuperando este modo mais humano e cristão de sermos o Corpo do Cristo. Nós nos privaremos profundamente uns dos outros, parecendo nos desfazer da Encarnação, se mantivermos o tempo todo a nossa distância, enquanto Deus se faz próximo. E, então, isto é um desafio para nós cristãos? Como podemos personificar o abraço de Cristo aos outros?
Assim, a minha esperança é a de que vocês personificarão o Cristo hoje. Vocês são chamados a ser a face do Cristo, os seus ouvidos, a sua boca, o seu tato. Isto requer coragem. Há a coragem de vocês se deixarem ser vistos pelos outros, deixar que sorriam a vocês como vocês a eles. Há a coragem de escutar, especialmente às pessoas com quem vocês divergem, confiantes de que se vocês abrem os seus corações e mentes a elas, então o Senhor dará a vocês uma palavra para lhes falar. Há a coragem de falar a Palavra de Deus. Acima de tudo, isto requer resistência ao cinismo corrosivo de nossa sociedade, que é desconfiada de tudo, especialmente da Igreja. E então há a coragem de se estender para tocar os outros com a compaixão do Cristo e sermos tocados por eles.
Bon courage!
[1] Palestra realizada para os jovens da comunidade de Taizè, França, como preparação para a Jornada Mundial da Juventude, Madrid, 2011. Fonte: http://jmj2011madrid.catholique.fr. A tradução do original em inglês para o português foi feita por Matersol, procurando-se manter o tom de oralidade comum às palestras feitas pelo autor.
Nota sobre o autor: Timothy Radcliffe nasceu em 1945, em Londres, foi educado no St. John's College, tendo-se tornado frade dominicano em 1965. Foi capelão do Imperial College London e professor no seu Convento, do qual foi igualmente prior entre 1982 e 1988. Eleito Prior Provincial da Inglaterra, exerceu o cargo entre 1988 e 1992, tendo igualmente sido presidente da Conferência dos Superiores Religiosos da Inglaterra e Gales. Foi também professor de Sagrada Escritura na Universidade de Oxford. Eleito Mestre Geral da Ordem dos Pregadores em 1992, viajou por todo o mundo em visitas às diversas províncias da sua ordem. Escritor de méritos reconhecidos, publicou diversos livros de espiritualidade e de reflexão sobre os desafios da vida contemporânea. Após deixar o cargo, em 2001, voltou a lecionar na sua universidade e é frequentemente convidado para conferências e palestras. (Fonte: Wikipedia).