segunda-feira, 25 de março de 2019

O Caminho da Beleza 19 - IV Domingo da Quaresma


Já não quero dicionários consultados em vão. Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar. Que resumiria o mundo e o substituiria. Mais sol do que o sol dentro do qual vivêssemos todos em comunhão, mudos, saboreando-a.

(Carlos Drummond de Andrade)


IV Domingo da Quaresma                  31.03.2019
Js 5, 9-12                 2 Cor 5, 17-21                    Lc 15, 1-3.11-32


ESCUTAR

O Senhor disse a Josué: “Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito” (Js 5, 9).

Irmãos, se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo (2 Cor 5, 17).

“Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e o cobriu de beijos” (Lc 15, 20).


MEDITAR

Deus não investiga com repulsa, de modo inflexível e implacável, o coração do pecador para aí verificar a “coisa” ou o “ser” que detesta. Compreende o pecador com misericórdia, todo o ser do pecador, a partir de dentro, de modo que sua realidade mais íntima não é mais a culpa, mas sua ligação filial.

(Thomas Merton, 1915-1968, França/Estados Unidos)


ORAR

            Muitas vezes, sentimos que Deus nos trai. Esperávamos isto e aquilo, rogamos, prometemos e as nossas mãos enchem-se sucessivamente de um silêncio que não conseguimos ler. É verdade que a Sagrada Escritura testemunha: “Mesmo que sejamos infiéis, Deus permanecer-nos-á fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” (2 Tm 2, 13). Mas nem sempre conseguimos abraçar com esperança os seus silêncios. A religiosidade natural do homem remete-o para o divino através da necessidade: o homem precisa de um Deus que lhe seja útil, que tenha poder no mundo, que o proteja. Rapidamente, Deus torna-se um ídolo, que serve para garantir-nos um funcionamento favorável do grande sistema do mundo. Contrariamente, a Bíblia encaminha-nos para a revelação de um Deus pessoal, e o faz de um modo cada vez mais surpreendente (por vezes, até escandalosamente surpreendente). Por exemplo, o Deus que Jesus Cristo nos anuncia ajuda-nos não por um entendimento mágico ou providencialista da sua onipotência, mas pela sua paternidade, pelo dom de seu amor. Quando o irmão mais velho, na parábola do filho pródigo, censura o pai por nunca lhe haver dado um cabrito para festejar com os seus amigos (cf. Lc 15, 29), o pai explica-lhe o que nos explica também a nós: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu (Lc 15, 31). O grande desafio da espiritualidade cristã inscreve-se precisamente nesta virada de atitude, nesta conversão: mais do que aquilo que Deus nos dá temos de aprender a valorizar a profundidade e a intensidade da sua presença: “Tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu”. Tudo se joga numa relação gratuita, e não num vaivém interesseiro. Esta é a diferença decisiva em relação ao quadro tradicional do fenômeno religioso.

(José Tolentino Mendonça, 1965-, Portugal)


CONTEMPLAR

Emoção, 2015, Londres, Kevin Mullins, Wiltshire, Inglaterra.




segunda-feira, 18 de março de 2019

O Caminho da Beleza 18 - III Domingo da Quaresma


Já não quero dicionários consultados em vão. Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar. Que resumiria o mundo e o substituiria. Mais sol do que o sol dentro do qual vivêssemos todos em comunhão, mudos, saboreando-a.

(Carlos Drummond de Andrade)


III Domingo da Quaresma                 24.03.2019
Ex 3, 1-8.13-15                  1 Cor 10, 1-6.10.12                       Lc 13, 1-9


ESCUTAR

“Eu sou aquele que sou” (Ex 3, 14).

Quem julga estar de pé tome cuidado para não cair (1 Cor 10, 12).

“Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a!” (Lc 13, 7).


MEDITAR

Para obter com Deus um encontro-abraço é necessário seguir uma rota, a conversão, um dos pontos nodais da pregação de Jesus. É necessário seguir a estrada do encontro e não aquela oposta do confronto. É necessário frutificar. A mensagem cristã não é um apelo brando à espiritualidade, mas é um rigoroso empenho moral, humano e religioso.

(Cardeal Gianfranco Ravasi, 1942-, Itália)


ORAR

            Não se pode afirmar de nenhum modo que neste Evangelho não é possível perceber o amor de Deus. Aparece inclusive de múltiplas formas, mesmo que em certo modo como um amor que está cansado dos homens, que parece ter chegado ao final de sua paciência e que tem que adotar a forma da advertência. Em primeiro lugar, Jesus diz que Deus não retribui aos pecadores apenas por suas ações, que no sofrimento que os acomete de nenhum modo pode se ver a magnitude de sua culpabilidade. Outros podem haver cometido um pecado maior e, apesar de tudo, se lhes respeitou a vida. Em segundo lugar, deixa aberta uma possibilidade aos que o interrogam. Se, considerando a desgraça dos outros, devem se considerar advertidos, devem entendê-la como um sinal de Deus e devem mudar a orientação de sua vida. Em terceiro lugar, segundo as palavras de Jesus, é próprio da natureza da figueira que deva dar fruto. Deus colocou em seu interior esta possibilidade para o bem e para a utilidade. Logo, o homem só tem que seguir um impulso natural para responder à exigência de produzir frutos. Em quarto lugar, há um intercessor bom, que pede um último prazo e que, cavando e adubando, quer fazer todo o possível para conseguir fruto do recalcitrante. E, em quinto lugar, está a condescendência do senhor, que concorda com este último prazo. Assim, pois, o amor está aí absolutamente presente, brilha por todas as brechas; mas, pela tibieza e insensibilidade dos homens e por sua obsessão de considerar os demais suspeitos de pecado, desculpando-se a si mesmos, ele tem que apresentar os caracteres de uma força necessariamente enérgica. “O amor é forte como a morte, a paixão é cruel como o abismo” (Ct 8, 6). Há, sem dúvida alguma, um ponto em que a longanimidade de Deus se esgota, se o homem não utiliza o prazo que lhe é dado. Então, o amor de Deus tem que recorrer a outros meios. Entendamos bem: o amor de Deus. Não digo que o amor de Deus esteja limitado internamente, por exemplo por sua justiça. Muitos o imaginam assim. Mas nenhum dos atributos de Deus está limitado, muito menos o seu amor. Nem sua justiça e tampouco sua misericórdia. A justiça e o amor coincidem em Deus de tal modo que, desde um ponto de vista concreto, o amor de Deus, para lograr seus fins, tem que empregar meios duros. O juízo pelo qual tem que passar todos os pecadores e que não os deixará passar se não forem purificados, a curto ou a longo prazo, este juízo deve ser inflexível. Absolutamente sem perdão, precisamente porque nele se ventila a possibilidade do perdão definitivo.

(Hans Urs Von Balthasar, 1905-1988, Suíça)


CONTEMPLAR

Greta Thunberg, 2018, Skolstrejk för Klimatet (Greve pelo Clima), Anders Hellberg, Effekt Magazin, Estocolmo, Suécia.




segunda-feira, 11 de março de 2019

O Caminho da Beleza 17 - II Domingo da Quaresma


Já não quero dicionários consultados em vão. Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar. Que resumiria o mundo e o substituiria. Mais sol do que o sol dentro do qual vivêssemos todos em comunhão, mudos, saboreando-a.

(Carlos Drummond de Andrade)


II Domingo da Quaresma                   17.03.2019
Gn 15, 5-12.17-18             Fl 3, 17-4,1              Lc 9, 28-36


ESCUTAR

O Senhor conduziu Abrão para fora e disse-lhe: “Olha para o céu e conta as estrelas se fores capaz!” E acrescentou: “Assim será a tua descendência” (Gn 15, 5).

Há muitos por aí que se comportam como inimigos da cruz de Cristo (Fl 3, 18).

Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o escolhido. Escutai o que ele diz!” (Lc 9, 35).


MEDITAR

Ah sim, o jasmim! Como é possível, meu Deus, ele está ali exprimido entre o muro corroído dos vizinhos dos fundos e a garagem. Ele paira sobre o teto raso, escuro e enlameado da garagem. No meio de todo esse cinza e dessa penumbra enlameada, ele é tão radioso, tão puro, tão exuberante e tão terno, uma jovem noiva audaciosa perdida em meio a uma vizinhança infame. Não compreendo nada desse jasmim. Mas não há nada mais a compreender... ainda é possível se acreditar em milagres.

(Etty Hillesum, 1914-1943, Holanda)


ORAR

            A luz da transfiguração de Cristo significa que já, hoje mesmo, a obra da ressurreição começa em nós. Estamos em plena noite. No meio dessas trevas brilha uma chamazinha. Basta-nos fixar os olhos nessa luz “até o raiar da aurora, até o levantar da estrela matutina em nossos corações”. Para que procurar tão longe o que está perto de nós? Por vezes, economizando a fé e a paciência, exigimos prodígios e milagres, sinais imediatamente visíveis. E o que nos cumpria fazer, era olhar com perseverança a chamazinha, até que a estrela da manhã se levantasse. Conservando-nos diante de Deus, devemos ver tudo à luz do Cristo. Considerar assim o próximo, o cristão, nossa pessoa, a vida inteira. Ver o próximo na luz do Cristo. Saber que que em cada homem, mesmo naquele que não confessa o Cristo, brilha o reflexo da imagem do Criador. Nosso próximo não é estritamente o que nos é simpático, mas o homem ferido pela existência, colocado à beira de nosso caminho. Nosso próximo não é aquele ao qual consagramos amizade, mas precisamente aquele que, por nos ser indiferente, merece, mais que outro, ser olhado com o olhar do Cristo. Considerar-nos também, a nós mesmos, na luz de Cristo. Não perder ânimo ante o mal que descobrimos em nós; ante as fraquezas, as trevas, as sombras que sempre existirão, pois nos é impossível viver de nossa culpa ou do sentimento de nossa culpabilidade. Só devemos viver do Cristo que brilha em nós, qual chama acesa no meio das sombras. Considerar e olhar toda a vida e toda a criação à luz de Deus, porque, em sua origem, toda a criação foi desejada por Deus, em sua plenitude. A planta que não se volta para a luz, estiola-se. Assim, o cristão que não fita a luz divina, querendo, pelo contrário, ver apenas as sombras, condena-se à morte lenta. Não pode crescer, nem edificar-se no Cristo.

(Roger Schutz, 1915-2015, Suíça)


CONTEMPLAR

S. Título (sombras e areia), 1995, Christian Cravo (1974-), Ensaio “Roma Negra”, Salvador, Bahia, Brasil.



segunda-feira, 4 de março de 2019

O Caminho da Beleza 16 - I Domingo da Quaresma


Já não quero dicionários consultados em vão. Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar. Que resumiria o mundo e o substituiria. Mais sol do que o sol dentro do qual vivêssemos todos em comunhão, mudos, saboreando-a.

(Carlos Drummond de Andrade)


I Domingo da Quaresma                     10.03.2109
Dt 26, 4-10              Rm 10, 8-13                       Lc 4, 1-13


ESCUTAR

O Senhor ouviu a nossa voz e viu a nossa opressão, a nossa miséria e a nossa angústia (Dt 26, 7).

É crendo no coração que se alcança a justiça e é confessando a fé com a boca que se consegue a salvação (Rm 10, 10).

Terminada toda tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno (Lc 4, 13).



MEDITAR
A tentação consiste em propor um falso bem no lugar de um verdadeiro, mas com a aparência desse verdadeiro. Aprende-se, então, a mentir, a si mesmo ou ao outro. Quanto mais próximo de Deus, mais o demônio se esforça por mentir. Essa a tentação do cristão. É por ser cristão que ele é tentado. Assim como Jesus, para nós é após o batismo que as tentações começam. A vida cristã é um combate, um combate no deserto, um combate contra um adversário inteligente e rancoroso.

(Thierry-Dominique Humbrecht, 1962-, França)


ORAR

            A página do evangelho nos apresenta o relato das tentações de Jesus no deserto. O demônio pretende desviar, separar Cristo do desígnio do Pai.  Em vez do caminho da humilhação, do abaixamento, do amor, da cruz, eis aí o atalho para um triunfo fácil, de popularidade, de gestos espetaculares, do poder, da força, da liberação parcial do homem (interessar-se pelo pão, ou seja, limitar-se aos problemas econômicos em vez de empreender a salvação total). Jesus rejeita cada uma das sugestões do “Divisor”, citando as palavras da Escritura e, consequentemente, ratificando sua determinação de fazer unicamente, e até o fundo, a vontade do Pai. Também para nós o tempo da quaresma pode ser a ocasião propícia para verificar se nosso projeto corresponde ao de Deus. Para limpar nosso cristianismo de todas as incrustações de superstição, facilidade, aparência, exterioridade. Para rejeitar os compromissos, os acordos, as traições à mensagem evangélica. Para voltar a descobrir as exigências mais radicais do Cristo. Para rejeitar uma religiosidade construída à nossa medida, e “vestir-se” com o desígnio de Deus. Para varrer os equívocos e adotar escolhas precisas, caras, que nos conduzam a um caminho de coerência e visibilidade. Naturalmente, essas verificações essenciais são possíveis apenas se tivermos a coragem de nos confrontarmos com a palavra de Deus. Uma palavra que deve encontrar lugar em nossa vida fazendo calar as excessivas palavras que nos envolvem e nos deixam aturdidos (eis aí o verdadeiro jejum quaresmal). Um pouco de deserto, pois, um pouco de silêncio, um pouco de coragem para frequentar as profundidades, um pouco de gosto pela interioridade. A conversão a que somos convidados não é outra coisa senão dar as costas aos nossos projetos miseráveis e confusos para nos colocar em direção ao desígnio original. A penitência, no fundo, é a nostalgia de nossa autêntica grandeza.

(Alessandro Pronzato, 1932-, Itália)


CONTEMPLAR

Somewhere, 1957, Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, do musical West Side Story, New York, Estados Unidos. Intérpretes: Gladys Knight e Be One Choir (2018).  


There's a place for us, somewhere a place for us
Peace and quiet and open air, wait for us somewhere

There's a time for us, someday a time for us

Time together with time to spare, time to learn, time to care

Someday, somewhere, we'll find a new way of living
We'll find a way of forgiving, somewhere

There's a place for us, a time and place for us
Hold my hand and we're half-way there, hold my hand and I'll take you there

Somehow, someday, somewhere