segunda-feira, 25 de maio de 2020

O Caminho da Beleza 28 - Pentecostes


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

Pentecostes            31.05.2020
At 2, 1-11                  1 Cor 12, 3-7.12-13           Jo 20, 19-23


ESCUTAR

Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava (At 2, 4).

A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum (1 Cor 12, 7).

Soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20, 22).


MEDITAR

Senhor Jesus, que teu Espírito me ajude a não ficar fechado sobre mim mesmo ou sobre interesses pessoais; que ele me leve a me abrir aos outros, a escutá-los, a compreendê-los; que ele me leve a me abrir “àqueles que estão longe” e a discernir todas as ocasiões para encontrá-los. Senhor Jesus, envie-me teu Espírito de luz e de fogo. Que ele faça de mim um apaixonado por teu Evangelho e um apaixonado por teu Reino, como tu és apaixonado por teu Pai. Senhor Jesus, envie teu Espírito a tua Igreja, para que ela se torne a Igreja serva e pobre evocada pelo Vaticano II.

(Bernard Prévost, 1913-, França)


ORAR

     Quando a lua se reflete na água, ela não se molha. Quando o sol se reflete na água, ele não se apaga. Rumi: “um raio de sol entrando pela fenda de um respiradouro e irradiando de luz uma multidão de grãos de poeira que continuam a dançar girando sobre eles mesmos em pinceladas de luz que os transformam em mil pequenos sóis arrancados à sombra da caverna. Acontece assim com a luz de Deus: a grande luz cede o lugar para deixar inteiramente livre a dança desses pequenos grãos girando iluminados por ela e transformados em mil pequenos sóis”. Os símbolos do espírito são elementos em movimento. Chega um momento em que é o homem por inteiro que deve se colocar em movimento, que deve entrar como símbolo vivo do Espírito, à maneira de Maria partindo depressa para a primeira Visitação da Igreja. O Espírito nos coloca em movimento em direção ao outro e nos arrebata pelo Filho em direção ao Pai. Uma celebração da Vida em construção na harmonia invisível da criação e na sinfonia necessária dos seres e das coisas. A possessão do Espírito a partir do Pai, gerando a kénose do Pai pelo Filho. O Pai que doa o Espírito ao Cristo “sem medida”. O sacrifício de Jerusalém, um sacrifício de pneumatização, de VIVIFICAÇÃO (e não de mortificação!). Ele oferece a humanidade a seu Pai para que este a vivifique no Espírito Santo. A Igreja, em um momento de sua história, se fechou no temor da vida e da liberdade pessoal, como uma máquina por demais ritualista no Oriente e por demais jurídica no Ocidente. E as tempestades do Espírito sopraram sobre a periferia da Igreja, e às vezes contra ela, como uma imensa exigência de vida criadora de justiça, de comunhão e de beleza. Quando se tem o Santo Espírito, o coração se dilata, banha-se de amor divino. O peixe não se queixa nunca de ter mais água... (Cura d’Ars). Descobrir em tudo a respiração do Espírito (Paulino de Nola). O Espírito Santo é o Revelador de Deus. Em Pentecostes, ele se fixa de alguma maneira no Revelado. Desde então, o homem habitado no Espírito pode tornar-se Revelador. O Espírito é missionário porque cada um tem uma capacidade reveladora e isso lhe é dado pelo Espírito. É tão verdadeiro que sem os apóstolos, o Cristo não teria tido forma de existência. Eles são reveladores porque nos transmitiram como testemunhas, por seus seres que estão identificados com Aquele do qual deram testemunho. Nossa Igreja é a Igreja do Espírito Santo. Do Espírito Santo também se pode dizer: “cada um tem sua parte e todos têm tudo, pois sua generosidade é inesgotável” (João Paulo II). “Ó fogo cuja vinda é palavra, cujo silêncio é luz” (Santo Efrém). O Espírito está em casa e ainda mais em nós do que nunca.

(Christian de Chergé, 1937-1996, França)


CONTEMPLAR

S. Título, 2016, Alessandra Tarantino (1974-), Associated Press Images, Roma, Itália.




segunda-feira, 18 de maio de 2020

O Caminho da Beleza 27 - Ascensão do Senhor


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

Ascensão do Senhor                  24.05.2020
At 1, 1-11                  Ef 1, 17-23               Mt 28, 16-20


ESCUTAR

“Homens da Galileia, por que ficais aqui parados, olhando para o céu?” (At 1, 11).

O Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer (Ef 1, 17).

Quando viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram (Mt 28, 17).


MEDITAR

Quando Jesus enviou os discípulos para ir e pregar até os confins do mundo, no final do evangelho de Mateus foi dito que “alguns duvidaram”. Eu amo isso. Lá estão eles sobre a montanha, frente ao Senhor Ressuscitado, e alguns ainda não tinham certeza. Mas Jesus os enviou de qualquer maneira. Logo, quando formos falar de nossa fé, alguns de nós podem ter incertezas, indagações e questões não resolvidas. E isso é bom! Porque então as pessoas verão que ser um Católico não significa que nós temos todas as respostas. O Cardeal Kasper do Vaticano disse que a Igreja teria mais autoridade se às vezes dissesse com mais frequência: “Eu não sei”.

(Timothy Radcliffe, 1945-, Reino Unido)


ORAR

   Na verdade, a ascensão de Jesus ao céu, esse acontecimento inenarrável com nossas palavras capazes somente de contar fatos humanos, não foi uma supressão nem a conclusão de uma aventura: a da vida de Jesus. Com efeito, quando se lê com inteligência os relatos da Ascensão, não se encontra ali o relato de um “adeus”, mas antes um envio dos discípulos, uma missão desde Jerusalém até as extremidades do mundo. Os discípulos, indo para o mundo, proclamarão o Evangelho a toda criatura (ver Mc 16, 15) e farão antes de tudo a experiência da proximidade, da presença de Jesus. Terão mesmo a consciência de ser apenas homens e mulheres a serviço da missão de Jesus, o enviado do Pai. O Cristo é elevado para junto de Deus para conduzir seu trabalho a termo, para poder interceder a favor dos homens, entre os quais e com os quais ele habitou sobre a terra, como verdadeiro homem, durante aproximadamente trinta e sete anos. Assim, doravante, uma nova relação liga Deus e a humanidade: esta separação entre o céu e a terra, entre o Criador e a criatura torna-se comunhão graças a Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. “Os céus são os céus do Senhor, a terra, ele a deu aos homens”, cantava o salmista (Sl 115, 16).; mas essas duas realidades são agora conjuntas em Jesus Cristo: ele, com efeito,  desceu do céu sobre a terra; ele era “da condição de Deus” (Fl 2, 6) e se revestiu de carne humana e mortal (ver Jo 1, 14): com esta realidade humana, compreendendo o corpo, a alma e o espírito, ele sofreu até a morte; ele ressuscitou e, como carne, subiu ao céu. Doravante, “à direita do Pai”, quer dizer na intimidade da vida de Deus, há um corpo de homem, uma vez que em Cristo os céus desceram sobre a terra e a terra subiu ao céu. Na verdade, Jesus é ao mesmo tempo Filho de Deus e Filho de homem, capaz de ser para nós, homens, o Emmanuel, o Deus conosco. Presença real na ausência física, relação na distância: eis o significado da Ascensão, que chama os cristãos a caminhar “à luz da fé e não da visão” (2 Cor 5, 7), aprimorando a sensibilidade da fé, os “sentidos espirituais”, a saber a capacidade do coração humano de ver, escutar, tocar, gozar, sentir. O Cristo está junto de Deus e ao mesmo tempo presente entre os homens e na história; confessar este mistério nos ensina a alteridade do outro: a face do outro, irredutivelmente a sua, nos evoca um mistério de transcendência; ela convida ao respeito assim como à comunhão. A Ascensão contesta toda voracidade e todo desejo de possessão, tanto nas relações com Deus como nas relações humanas: na verdade, é um grande magistério de liberdade!

(Enzo Bianchi, 1943-, Itália)


CONTEMPLAR

S. Título, 1990, hospital psiquiátrico de Sichuan, da Série “As Pessoas Esquecidas: a condição dos pacientes psiquiátricos chineses, 1989-1990”, Lu Nan (1962-), Magnum Photos, Beijing, China.




terça-feira, 12 de maio de 2020

O Caminho da Beleza 26 - VI Domingo da Páscoa


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

VI Domingo da Páscoa             17.05.2020
At 8, 5-8.14-17                  1 Pd 3, 15-18                      Jo 14, 15-21


ESCUTAR

De muitos possessos saíam os espíritos maus, dando grandes gritos. Numerosos paralíticos e aleijados também foram curados (At 8, 7).

Estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pedir (1 Pd 3, 15).

“Quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (Jo 14, 21).


MEDITAR

Cada um de nós é chamado a ser diante de Deus, de si mesmo, de seus irmãos, um autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é Igreja. No seio da comunidade apostólica, como no meio do mundo, o que conta de fato é a fidelidade à Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive autenticamente como homem, que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma, faz parte da Igreja, está conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua carne a Paixão de Cristo e será reconhecido como Filho do Pai do Céu.

(Francisco Catão, 1927-2020, Brasil)


ORAR

   O Espírito Santo reveste-se, segundo a promessa de Jesus registrada no evangelho de João, de uma dupla função: no interior da comunidade o Espírito mantém viva e interpreta a mensagem de Cristo (Jo 14, 26), no exterior dá segurança ao fiel em seu confronto com o mundo, ajudando-o a decifrar o sentido da história não obstante as aparências desarmantes. O Espírito alimenta, assim, a fé e a esperança. O Espírito é o sinal da presença do Cristo em sua Igreja. É indispensável abrir a porta da comunidade e dos corações à ação do Espírito dado pelo Cristo pascal. Com o pecado o homem “mata o Espírito” (1 Ts 5, 19), cala a fonte da sua vida. Com o Espírito, princípio de conteúdo da Igreja, a comunidade cristã se expande na pluralidade esplêndida de seus dons. Cristo, o Espírito, o Pai e o fiel estão vinculados por uma ligação de amor. É o tema do evangelho de hoje. Na Bíblia predomina a categoria do encontro, da aliança, da comunhão. Ela é como um sêmen fecundo que cresce perfurando a crosta da solidão, do silêncio, do ódio. “As promessas escatológicas da tradição bíblica – liberdade, paz, justiça, reconciliação – não podem ser privatizadas. Elas pressionam sempre para uma responsabilidade social. Estas promessas, porém, não podem estar nunca identificadas com algum status social. A história do cristianismo conhece suficientemente bastante as identificações ou politizações diretas da promessa” (J. B. Metz, Sobre a teologia do mundo, Brescia, 1969, p. 114). A virtude cristã que exala do amor são a esperança que vence o pessimismo; a doçura e o respeito, que dobram o ódio e o fanatismo; a coerência, que permite responder a quem nos pede a dar “a razão da nossa esperança”; a constância, que sabe sustentar o espírito mesmo na obscuridade da prova.

(Gianfranco Ravasi, 1942-, Itália)


CONTEMPLAR

Resistência, 2019, jovens em ação nas ruas em Paris, França, Stanislav Sitnikov, Federação Russa, Monochrome Photography Awards 2019.




quinta-feira, 7 de maio de 2020

Francisco Catão (1927-2020)



Manas e Manos, hoje, o nosso pai espiritual e teológico, Francisco Catão, foi acolhido na eternidade da Trindade Amorosa. "Sua vida está escondida com Cristo em Deus" (Cl 3, 3).


"Cada um de nós é chamado a ser diante de Deus, de si mesmo, de seus irmãos, um autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é Igreja. No seio da comunidade apostólica, como no meio do mundo, o que conta de fato é a fidelidade à Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive autenticamente como homem, que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma, faz parte da Igreja, está conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua carne a Paixão de Cristo e será reconhecido como Filho do Pai do Céu" (Francisco Catão, A igreja sem fronteiras).

Seguem um vídeo e um texto em sua memória.



    

REVISITANDO IGREJA SEM FRONTEIRAS[1]


                                                                       Paulo Botas,mts

                        "Um dia que Deus estava a dormir
                        E o Espírito Santo andava a voar
                        Ele (Jesus) foi à caixa dos milagres e roubou três.
                        Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido
                        Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
                        Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
                        E deixou-o pregado na cruz que há no céu
                        E serve de modelo às outras.
                        Depois fugiu para o sol
                        E desceu pelo primeiro raio que apanhou".
                        (Fernando Pessoa/Antonio Caieiro, O Guardador de Rebanhos)


                        Neste quase terceiro milênio, é mister constatarmos o fracasso das nossas igrejas em suas missões evangelizadoras. O "mundo ocidental e cristão" carece de valores humanos que as igrejas nestes quase dois mil anos quiseram ser portadoras privilegiadas. O fato indiscutível é que fracassaram na criação e construção de homens e mulheres humanizados e moldaram à sua imagem e semelhança pessoas com um superlativo grau de preconceito, de dogmatismo e de autoritarismo. Os aparelhos burocráticos destas instituições se expandiram abafando e se sobrepondo ao espírito eclesial que deveria reinar no kerigma do Cristo Morto e Ressuscitado.
           
            "A Igreja não é uma instituição abstrata, a cuja forma rígida se devem dobrar as instituições humanas. A Igreja não é a depositária inerte de uma verdade intemporal para sempre formulada, que deverá ser imposta às             inteligências e às vidas dos homens, com exclusão de      tudo quanto possam descobrir ou sentir em contato com a realidade das coisas, reveladoras de Deus. Na realidade a Igreja é antes de tudo uma comunidade fiel à Verdade transcendente do Pai de Misericórdia, cuja Palavra de             Vida ouvimos, vimos com os nossos olhos, percebemos e             tocamos com as nossas mãos (Cf.1 Jo 1,1) (CATÃO: 7-8).

           
                        Superarmos a concepção pastoral de uma igreja monolítica, onde o direito à diferença tem sido negado em todas os grandes projetos de evangelização, é condição sine qua non jamais poderemos compreender a Redenção de Jesus de Nazaré.
           
"Historicamente, o "amai-vos uns aos outros "não se impôs pelo exemplo de doçura, bondade e entrega de Jesus de Nazaré, de alguns de seus discípulos ou primeiros mártires. Aprendemos a ver no outro "um próximo" pela força das armas; pelas fogueiras da Inquisição ; pela perseguição aos inimigos políticos; pelo degredo, prisão, assassinato ou extermínio em massa dos infiéis, hereges, dissidentes e desviantes".[2]

                        A história de nossas igrejas foi marcada pela intransigência cultural e política e pela obsessão de "proclamar a salvação aos gentios", impondo, custasse o que custasse, o modelo ocidental como única via ética e moral que deveria nortear e sulear nossas práticas pastorais. Parafraseando Catão, a atitude fundamental das igrejas diante do mundo não é a de excomungar os que não lhe reconhecem os direitos e a liberdade, nem de condenar os que pensam a seu contrapelo, mas a de procurar eliminar todos os obstáculos que se opõem ao reconhecimento universal da Palavra de Verdade e reunir todos os homens e mulheres contando principalmente com a força do testemunho de fidelidade à mensagem de paz e de salvação que é a sua.( cf. CATÃO: 8)
                        Em outras palavras, "não é a Igreja que conquista os homens, mas Jesus Cristo que os salva" (CATÃO: l2).
                        A Igreja Romana aniquilou pelas Cruzadas os "infiéis e os hereges" que ameaçavam o mundo cristão. Na descoberta do Novo Mundo, abençoou os canhões e as armas que ajudaram a aniquilar culturas e civilizações e a impor a Cruz e a Espada num processo de "conversão" à Igreja e aos reinos de Espanha e Portugal. Atualmente, utiliza o termo "inculturação"para se apropriar das culturas que não tendo conseguido aniquilar resistem, nestes dois mil anos, a sua ousadia e arrogância missionária...

                        Catão, ao formular, inspirado no Vaticano II, uma Igreja Sem Fronteiras, reafirma o dinamismo da graça cristã e eclesial, "germinando no coração de todos os homens que, fiéis à verdade, à justiça e ao amor, mesmo sem o saber, estão a edificar por toda a parte o reino d'Aquele que é Verdade, Paz e Amor(...) Igreja Sem Fronteiras enfim, é o tema que deve estar obrigatoriamente presente a quem se preocupa com a edificação de um mundo verdadeiramente cristão, e não apenas decorativamente em paz com a Igreja, pois o que conta não são os entendimentos e os compromissos humanos entre autoridades políticas e religiosas, mas uma vida realmente alimentada com a seiva do Evangelho e posta a serviço dos homens, à imitação de Jesus Cristo" (CATÃO: l3).

                        O mundo do ecumenismo encontra nesta formulação a sua razão de ser e de estabelecer com as realidades humanas – e, portanto, culturais, diversas e plurais – um diálogo espiritual capaz de superar todos os anátemas e cismas religiosos. Mas como efetivar este projeto ecumênico se nestes últimos trinta anos assistimos estarrecidos uma sucessão de acontecimentos que negaram a dimensão da humanidade e de humanização, tão querida pelos homens e mulheres de Boa Vontade e tão amplamente desejada pelos que lutaram e lutam pela paz na terra?

"Substituímos a prática da reflexão ética pelo treinamento nos cálculos econômicos; brindamos alegremente o "enterro" das utopias socialistas; reduzimos virtude e excelência pessoais a sucesso midiático; transformamos nossas universidades em máquinas de produção padronizada de diplomas e teses; multiplicamos nossos "pátios dos milagres", esgotos a céu aberto, analfabetos, delinquentes, e, por fim, aderimos à lei do mercado com a volúpia de quem aperta a corda do próprio pescoço, na pressa de encurtar o inelutável fim" (FREIRE COSTA).

                        Retomar "velhos" escritos onde a lucidez evangélica nos arrebata é imperativo para alimentar nossos espíritos e almas tão carentes de profundidade e de pensamentos densos. O pragmatismo das nossas "igrejas populares" esvaziou a dimensão teológica e espiritual que responde pelos diálogos profundos e ousados na construção do Reino de Deus e empobreceu o Espírito que "transcende todas as fronteiras, fala todas as línguas, enche o universo e mantém em vida todas as coisas (...) A Igreja não constitui de modo algum um grupo particular, fechado e delimitado pela língua, pela mentalidade, pela maneira de sentir ou de pensar. Por sua própria natureza a Igreja é uma comunidade real de homens, mas aberta a todos os homens, a todo o mundo" (CATÃO: l6-l7).
            Existiria a possibilidade de construirmos um mundo onde a afirmação da originalidade espiritual e da vivência do Transcendente não fosse motivo de divisões e guerras? Como nossas gerações futuras poderão acreditar no Transcendente se os nossos deuses são construídos do tamanho e estatura das nossas intolerâncias e medos? O desafio ecumênico exige a superação dos nossos limites eclesiásticos que criaram burocratas que se escondem nos organismos "ecumênicos", onde se armam redes rígidas e bem sustentadas por polpudos dólares, marcos, libras, coroas e que não sabem fazer mais nada do que Consultas, Assembleias e Sínodos para mostrarem "ao mundo" a sua "quase hegemonia" na condução "missiológica" e elitista.

"Por acaso um mundo mais justo seria aquele em que todos pudessem ter acesso ao que as elites têm? Mas o que têm as elites a oferecer? Consumo, tédio, insatisfação e ostentação(...) Em vez de utopias, manuais de auto-ajuda, psicofármicos, cocaína e terapêuticas diversas para os que têm dinheiro; banditismo, vagabundagem, mendicância ou religiosismo fanático para os que apenas sobrevivem" (FREIRE COSTA).

                        Como afirmar, segundo Catão, em alto e bom som, que "o Povo de Deus não é delimitado por nenhuma fronteira”? E "o que é absolutamente necessário para se salvar não é o pertencimento pleno e reconhecido à Igreja, senão o laço íntimo de fé e de amor com o Senhor Jesus, a graça interior, que é a riqueza da Igreja, em outras palavras, a fidelidade total e transparente de cada um, à Verdade, à Justiça e ao Amor"? (CATÃO: 36).
                        É necessário reafirmarmos que a essência da Igreja não está no quadro institucional e burocrático, nem nos seus ministérios criados a partir de necessidades dogmáticas e históricas, mas na vida em comunhão com Deus e na afirmação do sacerdócio dos seus fiéis. Mas este sacerdócio existe em todas as religiões, que apesar das suas institucionalizações, procuram superar os seus limites e criar condições para a sua universalidade. É preciso falar da generosidade e lealdade que devem pautar a vida dos homens e mulheres que ainda acreditam na" humanização da Humanidade". E este é o mistério profundo de Jesus de Nazaré, sua profunda humanidade e seu testemunho de ser "humano, profundamente humano".
                        Catão nos alerta que o fato do cristianismo ter sido trazido para a América Latina e de ter transplantado uma cristandade em suas estruturas sem nenhuma preocupação com a cultura, religião e espiritualidade dos povos que aqui encontrou, criou para a instituição - habitualmente identificada com os bispos, padres, pastores, uma série de problemas e de compromissos de que nós não nos libertaremos tão facilmente. "A Igreja, nesse sentido, é a religião que conserva as nossas tradições e deve se opor a todas as renovações" (CATÃO: 88).

"O que se espera do missionário (...) não é que pregue sobre a Igreja e a torne atraente por uma exaltação humana do seu poder, de seu prestígio, de sua prudência, de sua ciência, de todas as suas riquezas, enfim. A Igreja deve desaparecer diante de Jesus para quem aponta, como João Batista" (CATÃO: 86-87).

                        Será que teríamos, novamente, esta inspiração que poderia garantir a retomada do diálogo ecumênico e do diálogo inter-religioso? Será que teríamos, uma vez mais, a lucidez de Catão e do Vaticano II para acreditarmos que "cada um de nós é chamado a ser diante de Deus, de si mesmo, de seus irmãos, um autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é Igreja. No seio da comunidade apostólica, como no meio do mundo, o que conta de fato é a fidelidade à Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive autenticamente como homem, que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma, faz parte da Igreja, está conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua carne a Paixão de Cristo e será reconhecido como Filho do Pai do Céu" (CATÃO: 92).
                        Ou como nos desafia Freire Costa:

"Seria muito propor que, em vez de ruminar o fracasso, pensássemos juntos em refazer a amizade, a lealdade, a fidelidade e a honra na vida pública e privada, o gosto pela ética no pensamento político ou visões de mundo capazes de contornar a lassidão moral decorrentes de nossos hábitos sentimentais e sexuais, etc? (...) Um grão de loucura e devaneio, quem sabe, é desta falta que padecem nossas almas mortas, famintas de encantamento e razão de viver".

                        O desafio ecumênico, para quem ainda acredita e decidiu investir a sua vida nesta utopia, está presente nesta nossa atitude de, ao assumir as situações-limites, superarmos nossas miopias institucionais e seus dogmatismos historicamente produzidos. De sermos livres para sonharmos os novos mundos e as novas religiões, onde Deus não seja apenas uma palavra vazia e vã mas seja, tão somente, a expressão da comunhão solidária, na Verdade, na Justiça e no Amor, dos homens e mulheres, que "como se vissem o Invisível" permanecem firmes e lutando toda a sua vida.
                        São estes os benditos e benditas do Pai, os felizes, as bem-aventuradas, e, mais que nunca, são estes que, apesar da Morte, recomeçam sempre e cada vez mais se tornam imprescindíveis porque fulminados pela Esperança e pelo Amor que tudo transforma e que aproxima homens e mulheres de todas as raças, credos e religiões, porque Deus é Mais e Liberdade é o nome do seu Espírito....



Comunidade dos Manos da Terna Solidão, 29 de setembro de 1996, primeiro domingo de oxalá.


           
                       




[1]Título do livro que marcou a década de 60 e toda uma geração de Ação Católica, mas sobretudo o diálogo ecumênico no Brasil, abrindo novas perspectivas para ações comuns entre os cristãos. Seu autor foi provincial da Ordem dos Frades Pregadores (Dominicanos) no Brasil e responsável pelas posições teológicas de ponta assumidas por esta ordem religiosa que tanto marcou a Igreja brasileira e seus compromissos políticos e sociais. CATÃO, Bernardo, A igreja sem fronteiras, São Paulo, Livraria Duas Cidades, l965, 92 p.
[2] FREIRE COSTA, Jurandir, “A devoração da esperança no próximo”, Folha de São Paulo, 22.09.96, Caderno MAIS, p 8.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

O Caminho da Beleza 25 - V Domingo da Páscoa


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

V Domingo da Páscoa               10.05.2020
At 6, 1-7                   1 Pd 2, 4-9               Jo 14, 1-12


ESCUTAR

O número dos discípulos tinha aumentado, e os fiéis de origem grega começaram a queixar-se dos fiéis de origem hebraica (At 6, 1).

Aproximai-vos do Senhor, pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e honrosa aos olhos de Deus (1 Pd 2, 4-9).

“Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14, 9).


MEDITAR

Dentro de nós está o Amor atraindo-nos até Ele, ao centro de nós mesmos, que é Ele. Porque o amor busca sempre a união, a identificação do amado com a amada. Existe alguém dentro de mim que não sou eu mesmo. Estamos construídos de tal maneira que o centro de nosso ser é Deus. De tal modo que concentrar-nos em nós mesmos é aproximar-nos de Deus. Ainda que não possamos chegar até Ele, porque também a distância que há entre Ele e nós é infinita: porque está infinitamente perto de nós (infinitamente dentro).

(Ernesto Cardenal, 1925-2020, Nicarágua)


ORAR

           Desde que Deus deixou o mundo estremecido pelo medo, ele empregou seu amor para fazê-lo voltar a ele, sua graça para convidá-lo, sua afeição para abraçá-lo. Quando do dilúvio, sua vingança purifica a terra de um mal inveterado; ele chama Noé a construir um mundo novo, encoraja-o com doces palavras, dá-lhe sua confiança familiar, o instrui com bondade sobre o presente e o consola por sua graça a respeito do futuro. Em seguida, Deus chama Abraão do meio das nações, magnifica seu nome e o faz pai dos crentes. Ele o acompanha no caminho, protege-o do estrangeiro, cumula-o de riquezas, honra-o com vitórias, assegura-o de suas promessas, arranca-o das injustiças, consola-o com sua hospitalidade, e o encanta por um nascimento inesperado a fim de que, cumulado de todos os bens, atraído pela grande doçura do amor divino, ele aprende a amar Deus e a não mais temê-lo, a adorá-lo amando-o e não mais temendo-o. Mais tarde, Deus consola Jacó na fuga por meio de sonhos. Ao seu retorno, ele o provoca ao combate e, durante a luta, ele o aperta em seus braços a fim de que ele ame o pai dos combates e não o tema mais. Depois ele chama Moisés e lhe fala com um amor de pai para convidá-lo a libertar seu povo. Em todos esses acontecimentos, a chama da caridade divina abraçou o coração humano, a embriaguez do amor de Deus se derramou sobre a sensibilidade dos homens; e estes, com a alma rendida, começaram a desejar ver Deus com seus olhos de carne. Deus, que o mundo não pode abarcar, como o olhar limitado de um homem o abarcaria? Mas o que deve ser e o que é possível não é a regra do amor. O amor ignora esta justiça. Ele não tem regra e não conhece medida. O amor não admite o pretexto da impossibilidade, não aceita tampouco o da dificuldade. O amor, se ele não realiza os seus desejos, ele mata aquele que ama. Ele vai onde ele se sente atraído e não onde há a força. O amor engendra o desejo, ele se desenvolve com ardor e almeja o impossível. E o que mais? O amor não admite não ver aquele que ele ama. Os santos não consideravam como pouca coisa tudo o que obtinham para ver a Deus? É assim que Moisés ousa dizer: “Se eu encontrar graça diante de ti, mostra-me tua face” (Ex 33, 13). E o salmista: “Mostra-nos tua face” (Sl 80, 4). Não é por isso que os pagãos se cercam de ídolos? Mesmo no meio do erro, eles viam com seus olhos o que adoravam. Deus conhecia, portanto, os mortais atormentados pelo desejo de o ver. O que ele escolheu para se mostrar era grande sobre a terra e não menos no céu. Porque o que, sobre a terra, Deus fez semelhante a ele não podia ficar sem honra no céu: “Façamos, disse ele, o homem à nossa imagem e à nossa semelhança (Gn 1, 26). Que ninguém, portanto, pense que Deus não tivesse razão de vir aos homens por um homem. Ele se fez carne entre nós para ser visto por nós.

(Pedro Crisólogo, 380-450, Itália)


CONTEMPLAR

S. Título, 2015, Nedim Chaabene (1968-), Flickr/CC BY, Tunísia/França.