Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2019
Terça-feira, 26 de fevereiro de 2019
Terça-feira, 26 de fevereiro de 2019
«A criação encontra-se em
expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19)
Queridos irmãos e irmãs!
Todos os anos, por meio da
Mãe Igreja, Deus «concede aos seus fiéis a graça de se prepararem, na alegria
do coração purificado, para celebrar as festas pascais, a fim de que (…),
participando nos mistérios da renovação cristã, alcancem a plenitude da
filiação divina» (Prefácio I da Quaresma). Assim, de Páscoa em Páscoa, podemos
caminhar para a realização da salvação que já recebemos, graças ao mistério
pascal de Cristo: «De facto, foi na esperança que fomos salvos» (Rm 8, 24).
Este mistério de salvação, já operante em nós durante a vida terrena, é um
processo dinâmico que abrange também a história e toda a criação. São Paulo
chega a dizer: «Até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a
revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Nesta perspectiva, gostaria de
oferecer algumas propostas de reflexão, que acompanhem o nosso caminho de
conversão na próxima Quaresma.
1. A redenção da criação
A celebração do Tríduo Pascal
da paixão, morte e ressurreição de Cristo, ponto culminante do Ano Litúrgico,
sempre nos chama a viver um itinerário de preparação, cientes de que tornar-nos
semelhantes a Cristo (cf. Rm 8, 29) é um dom inestimável da misericórdia de Deus.
Se o homem vive como filho de
Deus, se vive como pessoa redimida, que se deixa guiar pelo Espírito Santo (cf.
Rm 8, 14), e sabe reconhecer e praticar a lei de Deus, a começar pela lei
gravada no seu coração e na natureza, beneficia também a criação, cooperando
para a sua redenção. Por isso, a criação – diz São Paulo – deseja de modo
intensíssimo que se manifestem os filhos de Deus, isto é, que a vida daqueles
que gozam da graça do mistério pascal de Jesus se cubra plenamente dos seus
frutos, destinados a alcançar o seu completo amadurecimento na redenção do
próprio corpo humano. Quando a caridade de Cristo transfigura a vida dos santos
– espírito, alma e corpo –, estes rendem louvor a Deus e, com a oração, a
contemplação e a arte, envolvem nisto também as criaturas, como demonstra
admiravelmente o «Cântico do irmão sol», de São Francisco de Assis (cf.
Encíclica Laudato si’, 87). Neste mundo, porém, a harmonia gerada pela redenção
continua ainda – e sempre estará – ameaçada pela força negativa do pecado e da
morte.
2. A força destruidora do
pecado
Com efeito, quando não
vivemos como filhos de Deus, muitas vezes adotamos comportamentos destruidores
do próximo e das outras criaturas – mas também de nós próprios –, considerando,
de forma mais ou menos consciente, que podemos usá-los como bem nos apraz.
Então sobrepõe-se a intemperança, levando a um estilo de vida que viola os
limites que a nossa condição humana e a natureza nos pedem para respeitar,
seguindo aqueles desejos incontrolados que, no livro da Sabedoria, se atribuem
aos ímpios, ou seja, a quantos não têm Deus como ponto de referência das suas
ações, nem uma esperança para o futuro (cf. 2, 1-11). Se não estivermos
voltados continuamente para a Páscoa, para o horizonte da Ressurreição, é claro
que acaba por se impor a lógica do tudo e imediatamente, do possuir cada vez
mais.
Como sabemos, a causa de todo
o mal é o pecado, que, desde a sua aparição no meio dos homens, interrompeu a
comunhão com Deus, com os outros e com a criação, à qual nos encontramos ligados
antes de mais nada através do nosso corpo. Rompendo-se a comunhão com Deus,
acabou por falir também a relação harmoniosa dos seres humanos com o meio
ambiente, onde estão chamados a viver, a ponto de o jardim se transformar num
deserto (cf. Gn 3, 17-18). Trata-se daquele pecado que leva o homem a
considerar-se como deus da criação, a sentir-se o seu senhor absoluto e a
usá-la, não para o fim querido pelo Criador, mas para interesse próprio em
detrimento das criaturas e dos outros.
Quando se abandona a lei de
Deus, a lei do amor, acaba por se afirmar a lei do mais forte sobre o mais
fraco. O pecado – que habita no coração do homem (cf. Mc 7, 20-23),
manifestando-se como avidez, ambição desmedida de bem-estar, desinteresse pelo
bem dos outros e muitas vezes também do próprio – leva à exploração da criação
(pessoas e meio ambiente), movidos por aquela ganância insaciável que considera
todo o desejo um direito e que, mais cedo ou mais tarde, acabará por destruir
inclusive quem está dominado por ela.
3. A força sanadora do
arrependimento e do perdão
Por isso, a criação tem
impelente necessidade que se revelem os filhos de Deus, aqueles que se tornaram
«nova criação»: «Se alguém está em Cristo, é uma nova criação. O que era antigo
passou; eis que surgiram coisas novas» (2 Cor 5, 17). Com efeito, com a sua
manifestação, a própria criação pode também «fazer páscoa»: abrir-se para o
novo céu e a nova terra (cf. Ap 21, 1). E o caminho rumo à Páscoa chama-nos
precisamente a restaurar a nossa fisionomia e o nosso coração de cristãos,
através do arrependimento, a conversão e o perdão, para podermos viver toda a
riqueza da graça do mistério pascal.
Esta «impaciência», esta
expectativa da criação ver-se-á satisfeita quando se manifestarem os filhos de
Deus, isto é, quando os cristãos e todos os homens entrarem decididamente neste
«parto» que é a conversão. Juntamente connosco, toda a criação é chamada a sair
«da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de
Deus» (Rm 8, 21). A Quaresma é sinal sacramental desta conversão. Ela chama os
cristãos a encarnarem, de forma mais intensa e concreta, o mistério pascal na
sua vida pessoal, familiar e social, particularmente através do jejum, da
oração e da esmola.
Jejuar, isto é, aprender a
modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação
de «devorar» tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer
por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração. Orar, para saber
renunciar à idolatria e à autossuficiência do nosso eu, e nos declararmos
necessitados do Senhor e da sua misericórdia. Dar esmola, para sair da
insensatez de viver e acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de
assegurarmos um futuro que não nos pertence. E, assim, reencontrar a alegria do
projeto que Deus colocou na criação e no nosso coração: o projeto de amá-Lo a
Ele, aos nossos irmãos e ao mundo inteiro, encontrando neste amor a verdadeira
felicidade.
Queridos irmãos e irmãs, a
«quaresma» do Filho de Deus consistiu em entrar no deserto da criação para
fazê-la voltar a ser aquele jardim da comunhão com Deus que era antes do pecado
das origens (cf. Mc 1,12-13; Is 51,3). Que a nossa Quaresma seja percorrer o
mesmo caminho, para levar a esperança de Cristo também à criação, que «será
libertada da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos
filhos de Deus» (Rm 8, 21). Não deixemos que passe em vão este tempo favorável!
Peçamos a Deus que nos ajude a realizar um caminho de verdadeira conversão.
Abandonemos o egoísmo, o olhar fixo em nós mesmos, e voltemo-nos para a Páscoa
de Jesus; façamo-nos próximo dos irmãos e irmãs em dificuldade, partilhando com
eles os nossos bens espirituais e materiais. Assim, acolhendo na nossa vida
concreta a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, atrairemos também sobre
a criação a sua força transformadora.
Vaticano, Festa de São
Francisco de Assis,
4 de outubro de 2018.
FRANCISCO
4 de outubro de 2018.
FRANCISCO
A Virada Profética de Francisco: um Deus que surpreende.
Artigo de Raniero La Valle
O artigo foi publicado no blog
pessoal de La Valle, 08-11-2017. A tradução é de Moisés
Sbardelotto e foi publicada no sítio do IHU-Unisinos.
"O artigo é composto por cinco
teses, uma conclusão e um apêndice mais dramático", segundo o autor.
Eis o texto.
1. A novidade do Papa Francisco
O Deus que surpreende é o Deus anunciado pelo Papa
Francisco. Ainda na quarta-feira passada, na sua catequese, o papa falou do
Deus que cria novidade, porque é o Deus das surpresas. Certamente, não é esse o
único Deus em circulação. Há o Deus pregado por inércia por toda a Igreja, o
Deus pregado na Igreja italiana. Mas não é um Deus que surpreende, não desperta
maravilha, é o Deus que jaz no Catecismo, que, há muito tempo, não desperta mais ninguém.
Eis que, há quatro anos, apareceu um Deus que
surpreende
Depois, há o estereótipo do Deus demiurgo,
todo-poderoso, depositado na cultura comum, compartilhado seja por aqueles que
o afirmam, seja por aqueles que o negam, seja por aqueles que o ignoram.
O Deus que irrompe na Igreja de Francisco é
diferente. Em um mundo curvado e exposto às piores surpresas, ninguém pensava
que pudesse haver uma surpresa por parte de Deus. Ou, pelo menos, não se
pensava mais nisso, desde que o Concílio foi calado. Por isso, a Igreja tinha se
tornado tão tétrica, e a fé estava indo embora como a água do balde de uma
fonte ressecada.
O Deus que irrompe na Igreja de Francisco é
diferente. Em um mundo curvado e exposto às piores surpresas, ninguém pensava
que pudesse haver uma surpresa por parte de Deus
Mas eis que, há quatro anos, apareceu um Deus que
surpreende. Para o mundo, foi um resplendor repentino, uma extraordinária
novidade; para os arqueólogos do sagrado, em vez disso, foi uma surpresa
ingrata, um incidente imprevisto, uma ruptura nos regulamentos. Por isso, os
mais papistas do que o papa se tornaram, justamente eles, antipapistas.
Isso explica a solidão institucional do Papa
Francisco e a hostilidade com a qual ele
é combatido, e é por isso, porque queremos ficar ao seu lado, que estamos
reunidos aqui em Assis.
2. Não é a primeira vez de um Deus que surpreende
Não é a primeira vez que Deus nos surpreende, que
há o impacto com um Deus como antes não se havia pensado. Portanto, acima de
tudo, devemos fazer um esforço de memória, para não esquecer que há uma
história atrás de nós.
Então, no princípio, há o Deus que surpreende Adão no
ato mesmo de criá-lo, colocando ao seu lado a mulher, depois que ele a sonhara,
como diz Francisco, e ambos fazendo-os à sua imagem, ou seja,
dando-lhes o dom da liberdade, a responsabilidade de escolha entre o bem e o
mal.
Para o mundo, foi um resplendor repentino, uma
extraordinária novidade; para os arqueólogos do sagrado, em vez disso, foi uma
surpresa ingrata, um incidente imprevisto, uma ruptura nos regulamentos. Por
isso, os mais papistas do que o papa se tornaram, justamente eles, antipapistas
Depois, há o Deus que surpreende Noé,
salvando-o com os filhos e todos os animais, desde o menor até o maior, mas
salvando também a terra que nunca mais, em virtude da sua aliança, como
prometeu, será devastada pelo dilúvio, isto é, não será destruída, mas sobre a
qual, ao homem, se pedirá contas do sangue do homem.
Depois, há o Deus que surpreende Abraão,
prometendo-lhe um filho e um povo; mas depois salva a sua própria promessa,
rompendo a ideologia sacrificial de Abraão e tirando das suas mãos o filho já
preparado para ser oferecido em holocausto no Monte Moriá.
Depois, há o Deus que surpreende Moisés,
fazendo-o levar o povo com os pés secos para fora do Egito e
caminhando com ele por 40 anos no deserto; certamente, a Páscoa foi uma bela
surpresa, que, não por acaso, é recordada ao longo dos séculos.
Depois, há o Deus que surpreende Jonas,
arrependendo-se do mal que lhe havia feito anunciar a Nínive e,
com um golpe de cena, desmente a sua profecia, salvando a grande cidade estrangeira
com os 120.000 habitantes e uma grande quantidade de animais.
Depois, há Jesus, que surpreende a
todos na sinagoga de Nazaré quando desmonta a profecia
de Isaías; de fato, ele confirma a profecia da misericórdia e da
graça, mas silencia e abandona a profecia do dia de vingança de Deus, que
deveria vir para alegrar os aflitos de Sião. E os judeus nazarenos
ficaram tão surpresos e irritados com isso que, já na época, queriam matá-lo.
Depois, há Jesus que surpreende
a Samaritana no poço de Jacó, fazendo-se
reconhecer como Messias e dizendo-lhe que chegou a hora, e é esta, em que não
se adorará nos santuários ou em Jerusalém, mas adorarão o Pai em
espírito e verdade.
Muda Deus e muda o mundo, Deus aparece na história
como nunca havia aparecido ou como nunca havia sido compreendido antes, e muda
a história dos homens
E depois há o Deus que se revela à Igreja
primitiva, que, no hino da Carta aos Filipenses, canta as mais
incríveis das surpresas, que Cristo Jesus, embora existindo na
forma de Deus, não manteve para si como uma usurpação o ser igual a Deus, mas
despojou a si mesmo, assumindo a condição de escravo e fazendo reconhecer como
homem, até a morte e morte de cruz.
Por isso, esse é um Deus que nos faz passar de
surpresa em surpresa; e, na verdade, a cada uma dessas surpresas corresponde o
início de uma fase nova da história da salvação. Muda Deus e muda o mundo, Deus
aparece na história como nunca havia aparecido ou como nunca havia sido
compreendido antes, e muda a história dos homens.
3. O Deus inédito
Como isso pode acontecer, se Deus é sempre o mesmo,
e nele não há sombra de variação (Tiago 1, 17)? Acontece porque é
inesgotável o conhecimento de Deus, e sempre há um Deus inédito, que espera ser
publicado. Sempre há novas edições do único Deus, e, à medida que o Deus
inédito torna-se “editado”, os homens progridem no face a face com ele. De
edição em edição, não é Deus quem muda, mas, como dizia o Papa João XXIII sobre o Evangelho, somos nós que começamos a
compreendê-lo melhor. Deus cresce com o crescer da Palavra que o diz, mas, na
realidade, quem cresce, quem muda é a nossa percepção de Deus, a nossa
capacidade de acolher a sua oferta de vida. Nova é a edição em que, de um tempo
ao outro, ele é conhecido, representado, anunciado e recebido na humanidade e
na Igreja.
A tarefa do Vaticano II era de investigar e
enunciar o tesouro da fé “daquele modo que os nossos tempos exigem” (ea ratione
quam tempora postulant nostra); e essa é a razão mesma do pontificado de
Francisco
É por isso que, não só como metáfora, é possível
falar de um Deus que surpreende, de um novo anúncio ou de uma nova descoberta
de Deus. Aliás, foi precisamente essa a tarefa atribuída pelo Papa João ao Concílio,
que nós interpretamos, em vez disso, como um Concílio de reforma da Igreja; a
tarefa era de investigar e enunciar o tesouro da fé “daquele modo que os nossos
tempos exigem” (ea ratione quam tempora postulant nostra); e essa é a
razão mesma do pontificado de Francisco.
Porém, pode-se objetar (e, por isso, os doutores da
lei e os escribas estão hoje em pé de guerra) que o ciclo das edições acabou,
porque já houve a edição definitiva de Deus, que é a que foi publicada
por Jesus. E isso é muito verdade, aqui está toda a nossa fé; aqui,
a partir do prólogo do Evangelho de João, está todo o cristianismo,
está o seu Filho único que mostrou o Pai, que o deu a conhecer, que o editou,
que dele “fez a exegese”.
Mas é verdade aquilo que foi dito por um grande
jornalista, Mario Missiroli, que foi diretor do Messaggero e
do Corriere della Sera, em uma sentença que se tornou de uso comum:
“Não há nada de mais inédito do que o editado”.
Assim também o Deus publicado por Jesus,
mesmo depois de 2.000 anos, está em grande parte inédito. E o está desde então,
tanto é verdade que, na conclusão dos Evangelhos, João diz
que, se colocássemos por escrito todas as coisas manifestadas por Jesus, o
mundo inteiro não bastaria para conter os livros que se deveria escrever.
Se isso era verdade no início, também o foi depois;
ou, melhor, deve-se dizer que, encerrada a temporada fulgurante dos primeiros
quatro grandes Concílios, a Igreja passou por uma atormentada recepção do Deus
de Jesus, da Idade Média até o segundo milênio. E
não só por tudo o que de Deus havia permanecido inédito, mas também porque o
editado foi, pouco a pouco, enterrado e encoberto por glosas que nem sempre
contribuíram para tornar o original mais inteligível e fruível.
Por isso, em um certo ponto, um cristianismo
apaixonado invocou que não se acrescentassem glosas sobre glosas, mas se
retomasse nas mãos o texto editado livre das glosas, sine glossa,
como dizia São Francisco. E é justamente a partir desse voltar ao
texto original transmitido por Jesus que o inédito emerge e
que, de novo, irrompe no mundo o Deus da surpresa, o Deus que fascina.
Na minha opinião, é isso que o Papa
Francisco está fazendo, essa é a verdadeira reforma e o carisma do seu
pontificado; esse é o porte da sua escolha estratégica de sair do palácio e de
viver em Santa Marta para abrir, a cada dia, o Evangelho,
trazer novamente à tona o Deus que havia sido obscurecido, publicar uma edição
d’Ele não censurada pelos escribas e transmiti-la a todo o povo.
Trata-se de “forçar a aurora a nascer”, porque o
advento deste tempo novo é uma questão de vida ou de morte. De fato, o mundo
não pode continuar assim. Basta ver o cemitério do Mediterrâneo, já vigiado por
navios e homens armados, para entender em que ponto estamos
Mas, se é isso que está acontecendo, é legítimo ler
o tempo de virada que estamos vivendo como o início de uma nova fase da
história da salvação. Aliás, a linguagem secular também diz isso, que hoje
estamos não tanto em uma época de mudanças, mas sim em uma mudança de época.
Porém, não se trata apenas de ficar olhando, mas,
como dizia o padre Balducci, de “forçar a aurora a nascer”, porque
o advento deste tempo novo é uma questão de vida ou de morte. De fato, o mundo
não pode continuar assim. Basta ver o cemitério do Mediterrâneo, já
vigiado por navios e homens armados, para entender em que ponto estamos.
E isso acontece porque a profecia do padre Balducci não
se tornou realidade ou ainda não se tornou realidade. A profecia – ou a
esperança – era de que quem tomaria nas mãos essa passagem de época seria um
homem novo, o homem planetário, um “homem inédito”, como o escolápio florentino
o chamava.
Essa esperança não se realizou, e, ao contrário, o
homem já editado, que bem conhecemos, está caindo novamente no obscurantismo,
na guerra, nas formas discriminatórias e esmagadoras do passado. As ideologias
acabaram ou foram mortas, mas a política está morta, e o Espírito está no
exílio.
4. A edição que os nossos tempos requerem
Por que não apareceu o homem inédito? Porque,
antes, devia se manifestar o Deus inédito. O homem é imagem de Deus; não há
homem novo, não há homem inédito, se não houver um Deus ainda mais
compreendido, um Deus para se assemelhar novamente, um Deus que surpreende.
Mas de que edição de Deus precisamos hoje? Cada
edição de Deus corresponde a uma exigência nova, a uma pergunta urgente que
irrompe do coração da humanidade ferida, em um dado momento da sua história.
Por exemplo, neste 500º
aniversário da Reforma, pudemos revisitar
os impulsos que deram origem à iniciativa de Lutero. Falamos a respeito disso também em um colóquio
com os protestantes nos últimos dias em Camaldoli. Demo-nos conta
de como, hoje, as exigências e os problemas mudaram de tal modo que custamos
até a entender o porquê daquele confronto tão duro sobre a doutrina da
justificação, que surgiu de uma obsessão antipelagiana e de uma leitura radical
de Agostinho e de Paulo.
A pergunta de hoje não é aquela que Heidegger
formulou no seu tempo, mas que desatentamente foi ignorada, se apenas um Deus
pode nos salvar; a dolorosa pergunta de hoje é se nós podemos nos salvar,
quando não temos respostas para o gemido do mundo que nós mesmos desfiguramos,
quando não temos nem projeto, nem coração para parar a corrida ao suicídio
empreendida pelos chefes dos povos
Aquela edição luterana de Deus, com efeito,
respondia ao tormento da cristandade da época, uma vez afirmado que fora da
Igreja não há salvação, estava angustiada com o problema de quem e como poderia
se salvar, com que obras, ou graças a qual capricho de Deus. E também a questão
deles era de vida ou de morte, ou, melhor, de uma morte eterna.
Hoje, a sensibilidade mudou totalmente e, como
o Papa Emérito Bento XVI escreveu recentemente, as pessoas não pensam,
de fato, em ser justificadas por Deus, mas pensam que é Deus que deve se
justificar por todo o mal que permite sobre a Terra. De fato, a pergunta de
hoje não é aquela que Heidegger formulou no seu tempo, mas que desatentamente
foi ignorada, se apenas um Deus pode nos salvar; a dolorosa pergunta de hoje é
se nós podemos nos salvar, quando não temos respostas para o gemido do mundo
que nós mesmos desfiguramos, quando não temos nem projeto, nem coração para
parar a corrida ao suicídio empreendida pelos chefes dos povos.
E é precisamente nesse buraco negro existencial e
político que irrompe a surpresa do Deus da misericórdia. Não é que Deus se
tornou misericordioso hoje, mas é que muitas sombras cobriam o seu rosto. E eis
que aquele Deus que permanecera inédito para muitos é hoje publicado, enquanto
se prefere manter nas prateleiras o “Rex tremendae maiestatis” cantado
no “Dies irae”, tenta-se manter na surdina o Deus da vingança
invocado por Isaías, obscurece-se o Juiz inapelável dos infernos
dantescos e dos condenados da Sistina.
E isso porque, como escreveu o Papa
Francisco na bula de convocação do ano da misericórdia, Misericordiae
vultus, um Deus que parasse na justiça não seria nem mesmo um Deus. Ou,
com respeito a esse Deus, nós somos ateus.
“Sou ateu por amor de Deus” – Ernst Bloch
Como Ernst Bloch respondeu a Jürgen Moltmann, que, depois de uma conferência dele,
perguntara-lhe perplexo: “Sr. Bloch, o senhor é ateu, não é verdade?”. E Blochrespondeu:
sou ateu por amor de Deus.
O Deus editado pelo Papa Francisco é
um Deus que “primeireia”, que é sempre primeiro no amor, é um Deus que
perdoa sempre; é um Deus que “se troca” com o homem (Paulo) ao carregar
o seu pecado e a cruz; é um Deus que não escolhe entre eleitos e não eleitos,
mas elege a todos para além de toda religião e cultura, não fica atrás da porta
do santuário vigiada pelo guardião, mas sai para ser encontrado em espírito e
verdade, não é o Deus da casuística, mas da verdade, não da equação de uma
pesagem igual, mas do dom sem comércio, não o Deus da guerra – que, diz Francisco,
não existe – mas o Deus da paz, um Deus não violento, um Deus que não está com
a cidade reluzente, mas com o mendigo que morre na Via Ottaviano,
não está nas lanchas que se aferram às presas, mas nos botes que afundam e nos
navios das ONGs que, contra as regras, correm para salvá-los.
5. É o Deus anunciado por Francisco, mas não é o Deus de Francisco
Nós dizemos que esse é o Deus surpreendente pregado
por Francisco. Mas não é o Deus de Francisco, é o Deus da edição
extraordinária do século XX. Essa leitura de Deus cresceu no tempo junto com a
fé do povo de Deus e irrompeu depois da grande tragédia dos totalitarismos,
da Guerra Mundial, da Shoá, da bomba atômica.
O Deus surpreendente pregado por Francisco não é o
Deus de Francisco, é o Deus da edição extraordinária do século XX. Essa leitura
de Deus cresceu no tempo junto com a fé do povo de Deus e irrompeu depois da
grande tragédia dos totalitarismos, da Guerra Mundial, da Shoá, da bomba
atômica
O próprio Papa Francisco não
poderia publicá-la hoje se essa nova edição de Deus não tivesse sido preparada
em uma Igreja que passou pela grande tribulação da modernidade, da apostasia
das massas e da ansiedade pela sua agonia, expressada na carta do cardeal Suhard,
traduzida para a Itália pela Corsia dei Servi [“família
espiritual” tradicionalista italiana] e pelo Mons. Montini.
Essa nova figura de Deus, depois, veio à tona com
o Concílio Vaticano II, com o qual o Papa Francisco é
um só, de modo que o Concílio e o seu pontificado devem ser vistos não como
dois eventos à distância de 50 anos um do outro, mas como um único evento. O
trajeto é da Gaudet Mater Ecclesia à Evangelii
gaudium, da Lumen Christi, Lumen Gentium à Misericordiae
vultus, e a data-símbolo que os une é o dia 8 de dezembro, fim do
Concílio e início do ano da misericórdia.
Por isso, o Deus inédito do Papa Francisco não
é um Deus extemporâneo, importado para São Pedro do fim do
mundo, como em uma viagem atrasada das caravelas de Colombo. E
Francisco não é um papa excêntrico, apátrida, é um papa muito romano. O Deus
que ele anuncia é um Deus bem plantado na tradição e que passou por todos os
crivos da Igreja Romana. Ou seja, esta nova edição de Deus não
carece de imprimatur.
O próprio Papa Francisco não poderia publicá-la
hoje se essa nova edição de Deus não tivesse sido preparada em uma Igreja que
passou pela grande tribulação da modernidade, da apostasia das massas e da
ansiedade pela sua agonia
Comecemos pela Pacem in terris.
É aí que foi “aggiornato” o magistério dos papas do século
XIX, que opuseram uma interdição divina à liberdade política e à liberdade de
consciência, definidas como “um delírio”; é na encíclica do Papa João
XXIII que a liberdade se torna a própria dignidade do homem e não pode
ser constrangida em nome da verdade. Contra toda censura exigida ao papa pelos
revisores, verdade, liberdade, justiça e caridade não são postas na encíclica
em escala hierárquica, mas no mesmo plano, como mestras e guias para levar os
homens à paz. Por isso, Deus é o Deus da liberdade, não é o Deus nem de Constantino,
nem de Teodósio, nem dos chamados príncipes ou partidos cristãos.
Depois, veio o Concílio que, como Jesus na
sinagoga de Nazaré, calou uma vingança de Deus pelo pecado do
homem, não falou de um homem decaído, privado dos dons divinos e condenado ao
trabalho como pena e aos partos dolorosos. Deus, de acordo com o Concílio, é o
Deus da eleição, que não se arrepende de ter escolhido todos os homens como
seus filhos, não os abandonou depois da queda e não expulsou ninguém do jardim.
E ele também não deixou o homem à baila de si mesmo, como dizia uma péssima
tradução do Eclesiástico, mas o “deixou entregue à sua própria
decisão”, como diz a Gaudium et Spes no número 17,
fazendo uma tradução melhor dessa passagem bíblica.
E, depois, houve a virada ecumênica do Concílio,
pela qual as outras Igrejas são verdadeiras Igrejas, as sementes do Verbo estão
espalhadas por toda parte, e “não há dúvida de que o Espírito Santo já agia no
mundo antes de Cristo ser glorificado”, como diz o
decreto Ad Gentes, n. 4.
Depois, foi a vez de Albino Luciani,
que foi papa exatamente pelo tempo para dizer que Deus é pai, mas também mãe,
isto é, figura de todas as relações de verdadeiro amor entre os homens. Deus é
um beijo, como dizia o padre Benedetto Calati.
O Concílio Vaticano II e o pontificado de Francisco
devem ser vistos não como dois eventos à distância de 50 anos um do outro, mas
como um único evento
Depois, foi a vez de Bento XVI com
a Comissão Teológica Internacional, que disse que as crianças
mortas sem o batismo também podem se salvar. Assim, terminou o Limbo, e Deus
não é mais concebível como aquele que mantém as crianças em “banho-maria” por
toda a eternidade porque não houve ninguém que encontrasse a água para
batizá-las, como dizia São Tomás, e só assim fazê-las entrar na
Igreja como que por uma porta. E, se Deus ama e acolhe as crianças que não
entraram na Igreja, é plausível que ele também faça isso com os adultos, de
modo que a Igreja não é mais representável como a casa de Raab,
fora da qual estamos entregues ao extermínio.
Bento XVI reconheceu
ainda uma descontinuidade da Igreja na sua relação à modernidade, abandonou uma
leitura histórica do mito do pecado original e, depois, como papa emérito,
reconheceu a evolução do dogma e repudiou como “totalmente errada” a doutrina
anselmiana da reparação devida ao Pai pelo Filho na cruz, enquanto que, na
cruz, estava o Pai não menos do que o Filho; de modo que o teólogo ex-papa
aposentou, com o seu fundamento, todo o andaime da ideologia sacrificial que,
durante séculos, enrijeceu o cristianismo da misericórdia.
Por fim, foi a vez da Comissão Teológica
Internacional, que argumentou a maior surpresa, a do Deus não violento;
esta, com a assinatura do cardeal Müller, explicou que, também na
Bíblia, há mal entendidos de Deus, de modo que uma leitura fundamentalista da
Bíblia é um suicídio do pensamento e, na irreversível despedida do cristianismo
das ambiguidades da violência religiosa, reconheceu o traço uma virada epocal,
a graça de um discernimento que inaugura uma nova fase da história da salvação
e uma oportunidade real para se repensar a própria ideia de religião.
E foi tudo isso que confluiu no Deus inédito
anunciado por Francisco, cujo magistério, por isso, tem um
altíssimo conteúdo doutrinal; e é muito estranho que o porte doutrinal da
reforma iniciada pelo Papa Francisco, que está bem presente para
aqueles que acusam o papa de heresia, não seja reconhecida e compreendida, ao
contrário, por muitos que se dizem defensores do Papa Francisco.
6. Como dar um futuro à virada profética de Francisco
O que fazer agora para dar um futuro à virada
profética de Francisco?
Detenho-me apenas a três propostas concretas.
1. Enquanto
o ex-Papa Bento admite que, no Catecismo da Igreja Católica,
há coisas já superadas, como a doutrina errada da reparação, o Pe.
Carlo Molari escreveu, na sua contribuição a
este congresso, que o Catecismo deveria ser mudado para fazer com que ele
corresponda à nova perspectiva evolutiva.
Portanto, há na Igreja de hoje um grande problema
que é o Catecismo. Mas eu não acredito que a proposta deva ser a de
mudá-lo, é perigosa demais; penso, em vez disso, que é hora de colocar os
catecismos nas prateleiras, pois as novas edições dos catecismos nunca poderão
aferrar o vento que sopra a partir das sucessivas edições de Deus. Depois do
Concílio, nós, com Dossetti e Alberigo, de Bolonha,
reunindo vozes de todo o mundo, conseguimos evitar que a Igreja se desse
uma Lex Ecclesiae Fundamentalis, que teria sido uma espécie de
constituição eclesiástica no lugar do Evangelho. Mas ninguém evitou que se
publicasse um novo Catecismo da Igreja Católica, e, também nesse
caso, trata-se de pôr o Evangelho novamente no seu lugar.
2. A
segunda coisa a se fazer, na minha opinião, é de pôr a mão novamente nos livros
litúrgicos. Se a lex orandi é também a lex credendi,
hoje esse equilíbrio deve ser reconstruído, não só porque há leituras e orações
que, não interpretadas criticamente pelo povo no momento mesmo em que são
proclamadas, são um suicídio da fé, mas também porque deve ser ressignificado toda
a estrutura sacrificial e expiatória da liturgia e da vida.
3. A
terceira coisa a se fazer diz respeito não apenas ao futuro da Igreja, mas
também ao futuro do homem, mas é uma coisa tão grande que não pode ser esgotada
em poucas palavras. É a questão dos migrantes e da unidade
humana.
A discussão está aberta. Não se trata apenas de
romper as regras para socorrer os migrantes, o que, para o cristão, não é só o
exercício de um direito, mas é um dever. Trata-se de mudar as regras e de
afirmar e sancionar o direito humano universal de migrar, de viver no lugar
onde cada um possa não só salvar a sua vida, a “vida nua”, mas também de
realizar melhor a própria humanidade.
Ao julgar a interdição que a Europa e
agora também a Itália opõem ao povo dos migrantes, nós, no
site Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, pronunciamos a grave
palavra “genocídio”. A razão é que o povo dos migrantes é um povo de muitas
nações, identificado pela tragédia comum da fuga da guerra, da violência, da
fome, da seca, da exploração colonial, da miséria endêmica vigiada pelo Banco
Mundial. Fazer com que eles não existam para nós, barrá-los nas jangadas e
nos botes antes de chegarem, obstaculizar o seu desembarque com as armas e os
“códigos” ministeriais, enviá-los de volta para terras de prisão que não são a
pátria deles, inventar-se álibis de ajudá-los na casa deles, isto é, continuar
morrendo nos infernos deles é um genocídio. É melhor condenar o genocídio
antes, em vez de comemorá-lo ou negá-lo depois.
Se, junto com o Deus da misericórdia, a
misericórdia entra novamente no mundo, podemos evitar esse genocídio; então, os
povos se misturarão e se tornarão uma só humanidade: e, por isso, as reformas
deverão ser feitas, o dinheiro não poderá mais estar sozinho no comando, o
direito retomará o seu primado sobre a economia e sobre o poder, e nada mais
será como antes. Assim, o tempo novo pode vir e ser este.
Raniero La Valle
Assis, 25 de agosto de 2017
Assis, 25 de agosto de 2017
Apêndice
Francisco, ostium ou katékon?
Se assim for, é legítimo dizer que a virada
profética do pontificado franciscano pode ser a fenda que abre para uma nova
fase da história da salvação e, por isso, da história do mundo; pode ser aquela
porta através da qual se possa – todos juntos, começando pelos pobres – entrar
na era nova; poderíamos chamá-la, recordando o Evangelho, de a “porta das
ovelhas”, o ostium ovium.
Mas esse discurso pode parecer gratificante demais,
e esta conclusão pode ser criticada como otimista demais e cair sob a
advertência dirigida aos profetas que contam os seus sonhos (Jeremias 23, 27),
que profetizam de acordo com os seus desejos, que dizem paz, e a paz não existe
(Ezequiel 13, 10).
É claro, eu me distanciaria com esforço dessa
interpretação do pontificado de Francisco, que faz com que ele
pareça para mim um pontificado messiânico, que anuncia um tempo novo, e um
tempo que é este. É a hipótese que eu mantive firmemente, e que alimentou minha
esperança até aqui. Mas eu também tenho medo de que isso possa não ser verdade,
não hoje.
Então, me arriscaria a dizer que pode haver uma
segunda interpretação do pontificado de Francisco, embora mais
dramática. A segunda interpretação é que ele representa, em vez disso, uma
força frenante, a última defesa antes da catástrofe, o evento-surpresa que
impede que a catástrofe ocorra. Há uma passagem messiânica da Segunda
Carta aos Tessalonicenses, em que Paulo diz que está em
curso um “mistério da anomia”, que Jerônimo traduz como “misterium
iniquitatis”. Mas Paulo fala justamente de um mistério da anomia, que é, ao
mesmo tempo, ausência de lei, destruição, apostasia.
Pois bem, esse mistério da anomia é
contido por uma força que o contrasta, que Paulo chama
de katékon, “aquele que contém, detém”. É essa força que ser de
barreira ao mistério da anomia e detém aquilo que Paulo chama de “anomos”:
trata-se do homem sem lei que pretende se colocar no lugar de Deus, de um poder
que se faz poder para si mesmo, desvinculado de toda lei, “legibus
solutus”, portanto, o poder absoluto; alguns o chamaram de anticristo. Em
uma leitura feita no presente, essa figura do anomos, do “sem lei”,
poderia ser identificada no atual poder global, o poder que domina no sistema
da globalização selvagem; ele é sem lei, porque nenhuma lei o prevê, opera em
um nível, o internacional, onde o direito só obriga os condescendentes, e os
pactos são rasgados um depois do outro, do Protocolo de Kyoto ao tratado antimísseis, passando pelo pacto
para instaurar dois Estados na Palestina, às convenções sobre a liberdade dos mares e sobre
o direito dos requerentes de asilo; é um poder que governa revogando as leis,
desregulando as relações, garantindo imunidade e segurança apenas ao dinheiro e
tornando a guerra o árbitro.
Ora, de acordo com essa passagem da carta de Paulo,
deveria se levantar uma força que o detém, que deveria impedi-lo de levar a
história ao colapso, um katékon, precisamente. Mas qual é essa
força? Segundo Tertuliano, era o Império Romano, que,
com o direito, freava as forças da destruição. De acordo com Carl Schmitt,
trata-se de “uma força frenante capaz de deter o fim do mundo”, que, segundo
ele, foi o império cristão, a cristandade constantiniana. Nenhum dos dois tinha
razão, e hoje é a própria Igreja de Francisco que declara
encerrada a era da cristandade e decide sair dela.
Em vez disso, poderia ser o pontificado do Papa
Francisco o verdadeiro ponto de resistência, a porta corta-fogo que
intercepta e detém as forças que obedecem à sedução do fim. Antes que o amor
acabe, antes que a fé acabe, antes que desapareça a proteção da criação, o
mundo ainda jogaria, assim, a sua carta, confiando na misericórdia de Deus.
Esse poderia ser o sentido deste pontificado.
Além disso, viram-se sinais evidentes disso. Ele
era papa há pouco tempo e, de Lampedusa, Francisco detinha
a Itália e a Europa de darem livre curso aos
massacres no Mediterrâneo e as advertia contra o genocídio
iminente em relação ao povo dos migrantes. O pontificado acabara de começar, e,
com uma iniciativa inédita de oração global, Francisco conseguia parar a
corrida rumo à guerra contra a Síria, que teria levado ao extremo o
desastre já feito no Oriente Médio. Por fim, recusando-se a
reconhecer que o extremismo terrorista pode ser remetido ao Islã,
tirou lenha da fogueira e impediu que precipitássemos em uma guerra religiosa,
que teria sido a guerra do fim.
Nesse sentido, a Igreja de Roma, em
diálogo com as outras religiões e Igrejas, se pôs como força frenante em
relação à catástrofe anunciada, como um katékon semelhante ao
mencionado por Paulo. E, ao exercer essa ação frenante, o Papa
Francisco fez com que fossem entrevistas as linhas da terra nova, que
podemos hoje prefigurar, mas na qual ainda não podemos entrar.
Por isso, o pontificado Francisco,
embora permanecendo messiânico para esse olhar lançado sobre o tempo novo,
poderia ser lido como katekônico ou agônico, pela luta
engajada contra as forças da destruição, para salvar o futuro histórico da
humanidade amada por Deus.
Se isso for verdade, e se São Paulo tiver
razão, tudo isso explica o furor com que o Papa Francisco é
combatido. Porque o katékon deve ser removido do caminho pelas
forças de destruição, que pretendem realizar a sua obra até o fim. Então, a
reforma da Igreja não é só para uma Igreja em saída; inesperadamente, a Igreja
Católica torna-se o katékonque, como dizia Carl Schmitt,
“detém o fim do mundo”.
Mas, se essa é a parte que cabe à Igreja romana,
ela não deve ser sofrida como um fato, como um destino, mas deve ser
explicitamente assumida por uma cristandade consciente. Se o papel histórico é
de parar o fim, então ele deve ser assumido como uma tarefa. Neste caso, nós, o
que fazemos?
bom programa de vida para essa quaresma.
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