segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O Caminho da Beleza 15 - III Domingo do Tempo Comum


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

III Domingo da Quaresma                 04.03.2018
Ex 20, 1-17              1 Cor 1, 22-25                    Jo 2, 13-25


ESCUTAR

“Eu sou o Senhor teu Deus que te tirou do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20, 2).

O que é dito insensatez de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é dito fraqueza de Deus é mais forte do que os homens (1 Cor 1, 25).

Não precisava do testemunho de ninguém acerca do ser humano, porque ele conhecia o homem por dentro (Jo 2, 25).


MEDITAR

Ó Tu, além de tudo...
Nenhuma palavra te exprime
Tu ultrapassas toda inteligência.
Só tu és indizível,
Pois tudo que se diz sai de ti.
Só tu és incognoscível,
Pois tudo que se pensa sai de ti.
Todos os seres,
Os que falam e os que são mudos,
Te proclamam.
Todos os seres, os que pensam
E os que não tem o pensar,
Te rendem homenagem...
Tudo o que é te louva,
Em direção a ti todo ser que pensa teu universo
Faz elevar um hino de silêncio
Tudo o que permanece, permanece em Ti;
Por ti subsiste o movimento universal.
De todos os seres tu és o fim;
Tu és todo ser...
Ó Tu, além de tudo...

(São Gregório de Nazianzo, 329-390, Poema dogmático)


ORAR

            O templo no qual Deus, seguindo sua vontade, quer poderosamente reinar, é a alma do homem. Deus a formou e criou justamente bem igual a si mesmo, como lemos ter Nosso Senhor dito: “Façamos o homem segundo nossa imagem e semelhança!” (Gn 1, 26). E foi também o que Ele fez. Tão igual a si fez a alma do homem que, dentre todas as esplêndidas criaturas por Ele maravilhosamente criadas, não há, nem no reino do céu nem sobre a terra, nenhuma que se iguale tanto a Ele, a não ser unicamente a alma humana. Por isso Deus quer ter esse templo vazio, a ponto de ali não haver nada mais do que ele só... Pois atenção! Quem eram as pessoas que lá compravam e vendiam, e quem são elas ainda?...Vede, mercadores são todos eles, todos que se guardam contra pecados grosseiros, que gostariam de ser boas pessoas e que praticam suas boas obras para a honra de Deus, como jejuar, vigiar, rezar e toda a sorte de semelhantes boas obras, e o fazem, no entanto, a fim de que Nosso Senhor lhes dê algo em troca ou que Deus lhes faça algo que seja do agrado deles: todos esses são mercadores... De fato, são gente inteiramente insensata, os que querem negociar com Nosso Senhor. Da verdade, eles conhecem pouco ou nada. Por isso Nosso Senhor enxotou-os e expulsou-os para fora do templo. Luz e trevas não podem subsistir mutuamente... Se queres ser totalmente solto, desprendido do mercantilismo, de modo que Deus te deixe nesse templo, então deves fazer tudo o que podes em todas as tuas obras puramente para o louvor de Deus... Se operas assim, tuas obras são então espirituais e divinas, e os mercadores foram de uma vez por todas expulsos do templo e Deus está só ali dentro; pois este homem tem em mente apenas Deus... e não busca o que é seu, assim como Deus é solto e livre em todas as suas obras e não busca o que é seu... Que Jesus possa vir também em nós e lançar fora todos os impedimentos, e abrir espaço livre e fazer-nos Um, assim como Ele, Um com o Pai e com o Espírito Santo, é um só Deus, para que nós assim nos tornemos Um com Ele e permaneçamos eternamente. Que Deus para isso nos ajude. Amém.

(Mestre Eckhart, 1260-1328, Alemanha)


CONTEMPLAR

Saara, Sul de Djanet, Algéria (Homem orando), Sebastião Salgado (1944-) do livro “Gênesis”, Brasil.




segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O Caminho da Beleza 14 - II Domingo da Quaresma


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).




II Domingo da Quaresma                   25.02.2018
Gn 22, 1-2.9-13.15-18                 Rm 8, 31-34                       Mc 9, 2-10


ESCUTAR

“Eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar” (Gn 22, 17).

Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rm 8, 31-34).

Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles (Mc 9, 2).


MEDITAR

A igreja não oferece ao mundo um sistema de regras morais, mas uma sociedade santificada, um fermento que faz fermentar a criação, não através da imposição de suas ordens morais, mas por meio de sua presença santificadora. É uma presença testemunhante, que não amarra fardos pesados aos homens para conquistá-los, vinculados moralmente, para a salvação, mas os chama à liberdade de filhos de Deus, numa comunhão com ele que conduz à renovação do mundo.

(Ioannis Zizioulas, 1931-, Metropolita Ortodoxo de Pérgamo)


ORAR

            “Eu vi uma grande luz!”, exclama uma jovem mãe japonesa, que morava a uma centena de quilômetros de Hiroshima, entrando correndo na casa, na manhã de 6 de agosto de 1945, e abraçando seu filho de dez anos, Kenzaburo Oé, futuro prêmio Nobel de literatura. A bomba atômica fez sua trágica aparição no horizonte da humanidade, como luz de morte e de devastação. No entanto, o cristão não pode não deixar de ligar esta data (6 de agosto) e esta experiência (“uma grande luz”) com a festa da transfiguração do Senhor, que se celebra precisamente neste dia a partir do século IV no Oriente e do XI no Ocidente... Nesses mesmos dias [de agosto], cai o 9 do mês de Av, segundo o calendário judeu um dia de jejum e de luto onde o povo de Israel faz a memória da destruição do primeiro e do segundo Templo (respectivamente em 586 e 70 antes de nossa era) e, a partir daí, de todas as outras tragédias que marcaram sua história, desde a expulsão de Espanha, em 1492, até a “catástrofe” máxima da Shoah do último século... Enquanto que os cristãos, em suas igrejas inundadas de luz, celebram a glória de Deus que resplandece sobre a face do Cristo, os judeus, em suas sinagogas mergulhadas na penumbra de um único e modesto candeeiro, leem o livro das Lamentações. E sobre todos pesa a sombra lúgubre e inquietante de um clarão de morte, a nuvem luminosa de uma luz exterminadora. Paradoxo perturbador: a luz da vida da Transfiguração, que provém de Deus e anuncia o futuro do mundo em Cristo, contrasta com a luz da morte produzida pelo homem, que ameaça o presente do mundo, comprometendo seu futuro. A Transfiguração lembra a beleza para a qual a humanidade e o universo inteiro estão destinados; Hiroshima e a Shoah testemunham o embrutecimento de que o homem é capaz. A Transfiguração evoca, concentrando-se sobre o Cristo, a glória à qual estão destinados o corpo humano e mesmo o cosmos; Hiroshima e a Shoah revelam a capacidade do homem de desfigurar a carne humana, de deteriorar o corpo e o espírito, de devastar o cosmos. Para um cristão, celebrar a Transfiguração representa assim um apelo à responsabilidade e uma exortação à compaixão, à dilatação do coração em consideração ao homem que sofre. Não é um acaso se, para os evangelhos, o Cristo que conhece a transfiguração é aquele que vem anunciar pela primeira vez o destino da paixão e morte que o espera, a desfiguração que sofrerá por parte dos homens (ver Mt 16, 21-23): face ao mal, Jesus escolheu ser vítima de preferência a ser ministro. A Transfiguração torna-se desse modo o “sim” de Deus ao Filho que aceita a via da solidariedade radical com os oprimidos e as vítimas da história... Se o 9 de Av evoca os sofrimentos dos judeus e se Hiroshima lembra as penas de todos os homens, o Cristo é aquele que reúne em seu corpo de homem e em sua carne de judeu as dores da humanidade inteira. A Transfiguração torna-se esperança universal, para todos aqueles que sofrem e mesmo para a criação inteira que geme pela espera da redenção.

(Enzo Bianchi, 1943-, comunidade de Bose, Itália)


CONTEMPLAR

Lanternas flutuantes no rio Motoyasugawa, Hiroshima, Japão, 6 de agosto de 2017, as lanternas marcam o aniversário do bombardeio de Hiroshima. Cada uma representa uma vida perdida, publicada no jornal Asahi Shimbun, Getty Images, Japão.




segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O Caminho da Beleza 13 - I Domingo da Quaresma


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).




I Domingo da Quaresma                     18.02.2018
Gn 9, 8-15               1 Pd 3, 18-22                      Mc 1, 12-15


ESCUTAR

“Eis que vou estabelecer minha aliança convosco e com vossa descendência, com todos os seres vivos” (Gn 9, 9).

[Cristo] sofreu a morte na sua existência humana, mas recebeu nova vida pelo Espírito (1 Pd 3, 18).

O Espírito levou Jesus para o deserto (Mc 1, 12).


MEDITAR

O Pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas trasmalharam-se pela encosta...
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu...
Ninguém o tinha amado, afinal.

Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.

(Fernando Pessoa, 1888-1935)


ORAR

            Convém lembrar como o primeiro Adão foi expulso do paraíso para o deserto, para que tua atenção seja atraída à maneira pela qual o segundo Adão voltou do deserto ao paraíso. Veja, com efeito, como as primeiras sentenças, que haviam sido estabelecidas, são negadas e como as boas ações divinas são restabelecidas, retomando seus próprios traços. Adão vem de uma terra virgem, o Cristo da Virgem; aquele foi feito à imagem de Deus, Este é a Imagem de Deus; aquele foi colocado acima de todos os animais irracionais, Este acima de todos os seres animados; por uma mulher veio o desatino, por uma virgem a sabedoria; a morte por uma árvore, a vida pela Cruz. Um, desnudado do espiritual, é coberto pelo desfolhar de uma árvore; o outro, despojado dos hábitos desse século, não tem mais desejo de uma vestimenta corporal. Adão é expulso para o deserto, o Cristo vem para o deserto. É porque Ele sabia onde encontrar o condenado que reconduziria ao paraíso livre de sua falta; mas como ele não podia retornar para lá coberto pelos hábitos deste mundo, uma vez que não se pode ser habitante do céu sem estar despojado de toda falta, o homem velho retira-se, revestido do novo. Como aquele que, desorientado, havia perdido no paraíso a rota que seguia, pode, sem guia, encontrar no deserto a rota perdida? Sigamos, portanto, o Cristo, conforme o que é escrito: “tu marcharás em seguida ao Senhor teu Deus, a ele estarás ligado”. A quem me ligar senão ao Cristo, como diz Paulo: “aquele que se liga ao Senhor é só um espírito com Ele”. Sigamos, então, seus rastros e nós poderemos retornar do deserto ao paraíso... É, portanto, de propósito, que Jesus, cheio do Espírito Santo, é conduzido ao deserto para provocar o diabo. Pois se não tivesse combatido, o Senhor não teria triunfado por mim. Ele o fez no mistério para livrar este Adão do exílio; ele o faz como exemplo para nos mostrar que o diabo odeia aqueles que se esforçam em fazer o melhor e que, nesse caso, acima de tudo, é necessário cuidar que a fraqueza da alma não traia a graça do mistério.

(Ambrósio de Milão, aprox. 334-397)


CONTEMPLAR

Muro da Separação em El Paso, 2011, Texas, Estados Unidos, Paolo Pellegrin (1964-), Magnum Photos, Roma, Itália.




segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

O Caminho da Beleza 12 - VI Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


VI Domingo do Tempo Comum                   11.02.2018
2 Rs 5, 9-14             1 Cor 10, 31-11,1               Mc 1, 40-45


ESCUTAR

“Vai, lava-te sete vezes no Jordão, e tua carne será curada e ficarás limpo” (2 Rs 5, 10).

Irmãos, quer comais, quer bebais, quer façais qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus (1 Cor 10, 31).

Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos (Mc 1, 45).


MEDITAR

“As mãos que ajudam são mais sagradas que os lábios que rezam”.

(Madre Teresa de Calcutá, 1910-1997)


ORAR

            O texto de hoje nos apresenta o encontro de Jesus com um doente de lepra. É preciso lembrar que no Israel antigo o leproso representava a pessoa proscrita por excelência: ferido por uma doença não somente considerada como repugnante, mas também devido a uma punição divina pelos pecados que havia cometido, o leproso vivia a condição a mais desesperante e a mais vergonhosa em Israel. Aos sofrimentos físicos se somavam os sofrimentos ligados à separação da família e da sociedade, e também o julgamento religioso que fazia dele um pecador e, portanto, alguém punido por Deus (cf. Nm 12, 14; Lv 13, 45-46). Não devemos, todavia, nos escandalizar diante desta injustiça, porque ainda a cometemos hoje em dia, quando somos tentados a julgar a doença do outro como a consequência de um comportamento imoral; ou quando, face a nossa doença, nos colocamos a questão: “Que pecado cometi? Por que é que sou punido por Deus?... Jesus aceita encontrar uma pessoa que todo mundo evitava, que era constrangida a viver em lugares desertos e a revelar a sua própria condição a qualquer um que se aproximasse dele. E, então... o leproso disse a Jesus: “Se queres, tu podes me purificar”, palavras que testemunham um imenso e profundo ato de fé: “Eu conto contigo, sei que tu me amas e consequentemente sei que é possível me curar”. A purificação que nós, homens, podemos conhecer está ligada à nossa confiança em Jesus que, por sua santidade, pode nos comunicar a pureza e uma saúde perfeita; mais geralmente, em nossa vida cotidiana, a cura começa quando sabemos poder contar com alguém que deseja nosso bem, que se coloca ao nosso lado, disposto a suportar nosso mal, quer se trate de doença ou de pecado... Assim, a compaixão radical vivida por Jesus demanda a cada um de nós a se interrogar sobre sua própria capacidade de se colocar ao lado daquele que se sente impuro ou doente. Como esquecer que justamente no dia em que decidiu beijar um leproso, Francisco de Assis comprometeu de um só golpe todo o cristianismo e iniciou seu caminho de discípulo até se tornar “o mais semelhante possível a Jesus”? Jesus é a santidade que queima todo nosso pecado, ele é a vida que cura a nossa enfermidade, mas ele paga caro esse serviço feito aos homens. Ele não pode mais entrar abertamente nas cidades, ele é constrangido a permanecer nos lugares desertos, isto é, a viver a situação que antes era vivida pelo leproso: Jesus cuida e cura os outros à custa de assumir o seu mal sobre ele... Sim, Jesus, o Servo, o Messias, o Salvador, fez-se por nós um leproso para curar a lepra do nosso corpo e do nosso espírito! Dessa maneira, sobre a cruz ele será ferido como um leproso: mas nós podemos fixar sobre ele nosso olhar na esperança da cura, certos da compaixão daquele do qual se diz: “Ele, que suportou nossos sofrimentos e carregou nossas dores” (Is 53, 4a).

(Enzo Bianchi, 1943-, fundador da comunidade monástica de Bose, Itália)


CONTEMPLAR


S. Título, 2013, Mário Macilau (1984-), da série “O Preço do Cimento”, Maputo, Moçambique.