Manas e Manos, hoje, o nosso pai espiritual e teológico, Francisco Catão, foi acolhido na eternidade da Trindade Amorosa. "Sua vida está escondida com Cristo em Deus" (Cl 3, 3).
"Cada um de nós é chamado a ser diante de Deus,
de si mesmo, de seus irmãos, um autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é
Igreja. No seio da comunidade apostólica, como no meio do mundo, o que conta de
fato é a fidelidade à Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive
autenticamente como homem, que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma,
faz parte da Igreja, está conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua
carne a Paixão de Cristo e será reconhecido como Filho do Pai do Céu" (Francisco Catão, A igreja sem fronteiras).
Seguem um vídeo e um texto em sua memória.
REVISITANDO IGREJA SEM FRONTEIRAS[1]
Paulo Botas,mts
"Um dia que Deus
estava a dormir
E o Espírito Santo
andava a voar
Ele (Jesus) foi à caixa
dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que
ninguém soubesse que ele tinha fugido
Com o segundo criou-se
eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um
Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na
cruz que há no céu
E serve de modelo às
outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro
raio que apanhou".
(Fernando Pessoa/Antonio
Caieiro, O Guardador de Rebanhos)
Neste
quase terceiro milênio, é mister constatarmos o fracasso das nossas igrejas em
suas missões evangelizadoras. O "mundo ocidental e cristão" carece de
valores humanos que as igrejas nestes quase dois mil anos quiseram ser
portadoras privilegiadas. O fato indiscutível é que fracassaram na criação e
construção de homens e mulheres humanizados
e moldaram à sua imagem e semelhança pessoas com um superlativo grau de
preconceito, de dogmatismo e de autoritarismo. Os aparelhos burocráticos destas
instituições se expandiram abafando e se sobrepondo ao espírito eclesial que
deveria reinar no kerigma do Cristo
Morto e Ressuscitado.
"A Igreja não é uma instituição
abstrata, a cuja forma rígida se devem dobrar as instituições humanas. A Igreja
não é a depositária inerte de uma verdade intemporal para sempre formulada, que
deverá ser imposta às inteligências
e às vidas dos homens, com exclusão de tudo
quanto possam descobrir ou sentir em contato com a realidade das coisas, reveladoras
de Deus. Na realidade a Igreja é antes de tudo uma comunidade fiel à Verdade transcendente
do Pai de Misericórdia, cuja Palavra de Vida
ouvimos, vimos com os nossos olhos, percebemos e tocamos com as nossas mãos (Cf.1 Jo 1,1) (CATÃO: 7-8).
Superarmos
a concepção pastoral de uma igreja monolítica, onde o direito à diferença tem
sido negado em todas os grandes projetos de
evangelização, é condição sine qua
non jamais poderemos compreender a Redenção de Jesus de Nazaré.
"Historicamente,
o "amai-vos uns aos outros "não se impôs pelo exemplo de doçura,
bondade e entrega de Jesus de Nazaré, de alguns de seus discípulos ou primeiros
mártires. Aprendemos a ver no outro "um próximo" pela força das
armas; pelas fogueiras da Inquisição ; pela perseguição aos inimigos políticos;
pelo degredo, prisão, assassinato ou extermínio em massa dos infiéis, hereges,
dissidentes e desviantes".[2]
A
história de nossas igrejas foi marcada pela intransigência cultural e política
e pela obsessão de "proclamar a salvação aos gentios", impondo,
custasse o que custasse, o modelo ocidental como única via ética e moral que
deveria nortear e sulear nossas práticas pastorais. Parafraseando Catão, a
atitude fundamental das igrejas diante do mundo não é a de excomungar os que
não lhe reconhecem os direitos e a liberdade, nem de condenar os que pensam a
seu contrapelo, mas a de procurar eliminar todos os obstáculos que se opõem ao
reconhecimento universal da Palavra de Verdade e reunir todos os homens e
mulheres contando principalmente com a força do testemunho de fidelidade à
mensagem de paz e de salvação que é a sua.( cf. CATÃO: 8)
Em
outras palavras, "não é a Igreja que conquista os homens, mas Jesus Cristo
que os salva" (CATÃO: l2).
A
Igreja Romana aniquilou pelas Cruzadas os "infiéis e os hereges" que
ameaçavam o mundo cristão. Na descoberta do Novo Mundo, abençoou os canhões e
as armas que ajudaram a aniquilar culturas e civilizações e a impor a Cruz e a
Espada num processo de "conversão" à Igreja e aos reinos de Espanha e
Portugal. Atualmente, utiliza o termo "inculturação"para se apropriar
das culturas que não tendo conseguido aniquilar resistem, nestes dois mil anos,
a sua ousadia e arrogância missionária...
Catão,
ao formular, inspirado no Vaticano II, uma Igreja
Sem Fronteiras, reafirma o dinamismo da graça cristã e eclesial,
"germinando no coração de todos os homens que, fiéis à verdade, à justiça
e ao amor, mesmo sem o saber, estão a edificar por toda a parte o reino
d'Aquele que é Verdade, Paz e Amor(...) Igreja
Sem Fronteiras enfim, é o tema que deve estar obrigatoriamente presente
a quem se preocupa com a edificação de um mundo verdadeiramente cristão, e não
apenas decorativamente em paz com a Igreja, pois o que conta não são os
entendimentos e os compromissos humanos entre autoridades políticas e
religiosas, mas uma vida realmente alimentada com a seiva do Evangelho e posta
a serviço dos homens, à imitação de Jesus Cristo" (CATÃO: l3).
O
mundo do ecumenismo encontra nesta formulação a sua razão de ser e de
estabelecer com as realidades humanas – e, portanto, culturais, diversas e
plurais – um diálogo espiritual capaz de superar todos os anátemas e cismas
religiosos. Mas como efetivar este projeto ecumênico se nestes últimos trinta
anos assistimos estarrecidos uma sucessão de acontecimentos que negaram a
dimensão da humanidade e de humanização, tão querida pelos homens e mulheres de
Boa Vontade e tão amplamente desejada pelos que lutaram e lutam pela paz na
terra?
"Substituímos a
prática da reflexão ética pelo treinamento nos cálculos econômicos; brindamos
alegremente o "enterro" das utopias socialistas; reduzimos virtude e
excelência pessoais a sucesso midiático; transformamos nossas universidades em
máquinas de produção padronizada de diplomas e teses; multiplicamos nossos
"pátios dos milagres", esgotos a céu aberto, analfabetos,
delinquentes, e, por fim, aderimos à lei do mercado com a volúpia de quem
aperta a corda do próprio pescoço, na pressa de encurtar o inelutável fim"
(FREIRE COSTA).
Retomar
"velhos" escritos onde a lucidez evangélica nos arrebata é imperativo
para alimentar nossos espíritos e almas tão carentes de profundidade e de
pensamentos densos. O pragmatismo das nossas "igrejas populares"
esvaziou a dimensão teológica e espiritual que responde pelos diálogos
profundos e ousados na construção do Reino de Deus e empobreceu o Espírito que
"transcende todas as fronteiras, fala todas as línguas, enche o universo e
mantém em vida todas as coisas (...) A Igreja não constitui de modo algum um
grupo particular, fechado e delimitado pela língua, pela mentalidade, pela
maneira de sentir ou de pensar. Por sua própria natureza a Igreja é uma
comunidade real de homens, mas aberta a todos os homens, a todo o mundo" (CATÃO:
l6-l7).
Existiria
a possibilidade de construirmos um mundo onde a afirmação da originalidade
espiritual e da vivência do Transcendente não fosse motivo de divisões e
guerras? Como nossas gerações futuras poderão acreditar no Transcendente se os
nossos deuses são construídos do tamanho e estatura das nossas intolerâncias e
medos? O desafio ecumênico exige a superação dos nossos limites eclesiásticos
que criaram burocratas que se escondem nos organismos "ecumênicos",
onde se armam redes rígidas e bem sustentadas por polpudos dólares, marcos,
libras, coroas e que não sabem fazer mais nada do que Consultas, Assembleias e
Sínodos para mostrarem "ao mundo" a sua "quase hegemonia" na
condução "missiológica" e elitista.
"Por acaso um
mundo mais justo seria aquele em que todos pudessem ter acesso ao que as elites
têm? Mas o que têm as elites a oferecer? Consumo, tédio, insatisfação e
ostentação(...) Em vez de utopias, manuais de auto-ajuda, psicofármicos,
cocaína e terapêuticas diversas para os que têm dinheiro; banditismo,
vagabundagem, mendicância ou religiosismo fanático para os que apenas
sobrevivem" (FREIRE COSTA).
Como
afirmar, segundo Catão, em alto e bom som, que "o Povo de Deus não é
delimitado por nenhuma fronteira”? E "o que é absolutamente necessário
para se salvar não é o pertencimento pleno e reconhecido à Igreja, senão o laço
íntimo de fé e de amor com o Senhor Jesus, a graça interior, que é a riqueza da
Igreja, em outras palavras, a fidelidade total e transparente de cada um, à
Verdade, à Justiça e ao Amor"? (CATÃO: 36).
É
necessário reafirmarmos que a essência da Igreja não está no quadro
institucional e burocrático, nem nos seus ministérios criados a partir de
necessidades dogmáticas e históricas, mas na vida em comunhão com Deus e na
afirmação do sacerdócio dos seus fiéis. Mas este sacerdócio existe em todas as
religiões, que apesar das suas institucionalizações, procuram superar os seus
limites e criar condições para a sua universalidade. É preciso falar da
generosidade e lealdade que devem pautar a vida dos homens e mulheres que ainda
acreditam na" humanização da Humanidade". E este é o mistério
profundo de Jesus de Nazaré, sua profunda humanidade e seu testemunho de ser
"humano, profundamente humano".
Catão
nos alerta que o fato do cristianismo ter sido trazido para a América Latina e
de ter transplantado uma cristandade em suas estruturas sem nenhuma preocupação
com a cultura, religião e espiritualidade dos povos que aqui encontrou, criou
para a instituição - habitualmente identificada com os bispos, padres,
pastores, uma série de problemas e de compromissos de que nós não nos
libertaremos tão facilmente. "A Igreja, nesse sentido, é a religião que
conserva as nossas tradições e deve se opor a todas as renovações" (CATÃO:
88).
"O que se espera
do missionário (...) não é que pregue sobre a Igreja e a torne atraente por uma
exaltação humana do seu poder, de seu prestígio, de sua prudência, de sua
ciência, de todas as suas riquezas, enfim. A Igreja deve desaparecer diante de
Jesus para quem aponta, como João Batista" (CATÃO: 86-87).
Será
que teríamos, novamente, esta inspiração que poderia garantir a retomada do
diálogo ecumênico e do diálogo inter-religioso? Será que teríamos, uma vez
mais, a lucidez de Catão e do Vaticano II para acreditarmos que "cada um
de nós é chamado a ser diante de Deus, de si mesmo, de seus irmãos, um
autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é Igreja. No seio da comunidade
apostólica, como no meio do mundo, o que conta de fato é a fidelidade à
Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive autenticamente como homem,
que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma, faz parte da Igreja, está
conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua carne a Paixão de Cristo e
será reconhecido como Filho do Pai do Céu" (CATÃO: 92).
Ou
como nos desafia Freire Costa:
"Seria muito
propor que, em vez de ruminar o fracasso, pensássemos juntos em refazer a
amizade, a lealdade, a fidelidade e a honra na vida pública e privada, o gosto
pela ética no pensamento político ou visões de mundo capazes de contornar a
lassidão moral decorrentes de nossos hábitos sentimentais e sexuais, etc? (...)
Um grão de loucura e devaneio, quem sabe, é desta falta que padecem nossas
almas mortas, famintas de encantamento e razão de viver".
O
desafio ecumênico, para quem ainda acredita e decidiu investir a sua vida nesta
utopia, está presente nesta nossa atitude de, ao assumir as situações-limites,
superarmos nossas miopias institucionais e seus dogmatismos historicamente
produzidos. De sermos livres para sonharmos os novos mundos e as novas religiões,
onde Deus não seja apenas uma palavra vazia e vã mas seja, tão somente, a
expressão da comunhão solidária, na Verdade, na Justiça e no Amor, dos homens e
mulheres, que "como se vissem o Invisível" permanecem firmes e
lutando toda a sua vida.
São
estes os benditos e benditas do Pai, os felizes, as bem-aventuradas, e, mais
que nunca, são estes que, apesar da Morte, recomeçam sempre e cada vez mais se
tornam imprescindíveis porque fulminados pela Esperança e pelo Amor que tudo
transforma e que aproxima homens e mulheres de todas as raças, credos e
religiões, porque Deus é Mais e Liberdade é o nome do seu Espírito....
Comunidade dos Manos da Terna Solidão, 29 de
setembro de 1996, primeiro domingo de oxalá.
[1]Título
do livro que marcou a década de 60 e toda uma geração de Ação Católica, mas
sobretudo o diálogo ecumênico no Brasil, abrindo novas perspectivas para ações
comuns entre os cristãos. Seu autor foi provincial da Ordem dos Frades
Pregadores (Dominicanos) no Brasil e responsável pelas posições teológicas de
ponta assumidas por esta ordem religiosa que tanto marcou a Igreja brasileira e
seus compromissos políticos e sociais. CATÃO, Bernardo, A igreja sem fronteiras, São
Paulo, Livraria Duas Cidades,
l965, 92 p.
[2] FREIRE
COSTA, Jurandir, “A devoração da
esperança no próximo”, Folha de São Paulo, 22.09.96,
Caderno MAIS, p 8.
Belo texto. Catão foi mesmo um pai espiritual e teológico.
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