quinta-feira, 7 de maio de 2020

Francisco Catão (1927-2020)



Manas e Manos, hoje, o nosso pai espiritual e teológico, Francisco Catão, foi acolhido na eternidade da Trindade Amorosa. "Sua vida está escondida com Cristo em Deus" (Cl 3, 3).


"Cada um de nós é chamado a ser diante de Deus, de si mesmo, de seus irmãos, um autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é Igreja. No seio da comunidade apostólica, como no meio do mundo, o que conta de fato é a fidelidade à Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive autenticamente como homem, que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma, faz parte da Igreja, está conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua carne a Paixão de Cristo e será reconhecido como Filho do Pai do Céu" (Francisco Catão, A igreja sem fronteiras).

Seguem um vídeo e um texto em sua memória.



    

REVISITANDO IGREJA SEM FRONTEIRAS[1]


                                                                       Paulo Botas,mts

                        "Um dia que Deus estava a dormir
                        E o Espírito Santo andava a voar
                        Ele (Jesus) foi à caixa dos milagres e roubou três.
                        Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido
                        Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
                        Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
                        E deixou-o pregado na cruz que há no céu
                        E serve de modelo às outras.
                        Depois fugiu para o sol
                        E desceu pelo primeiro raio que apanhou".
                        (Fernando Pessoa/Antonio Caieiro, O Guardador de Rebanhos)


                        Neste quase terceiro milênio, é mister constatarmos o fracasso das nossas igrejas em suas missões evangelizadoras. O "mundo ocidental e cristão" carece de valores humanos que as igrejas nestes quase dois mil anos quiseram ser portadoras privilegiadas. O fato indiscutível é que fracassaram na criação e construção de homens e mulheres humanizados e moldaram à sua imagem e semelhança pessoas com um superlativo grau de preconceito, de dogmatismo e de autoritarismo. Os aparelhos burocráticos destas instituições se expandiram abafando e se sobrepondo ao espírito eclesial que deveria reinar no kerigma do Cristo Morto e Ressuscitado.
           
            "A Igreja não é uma instituição abstrata, a cuja forma rígida se devem dobrar as instituições humanas. A Igreja não é a depositária inerte de uma verdade intemporal para sempre formulada, que deverá ser imposta às             inteligências e às vidas dos homens, com exclusão de      tudo quanto possam descobrir ou sentir em contato com a realidade das coisas, reveladoras de Deus. Na realidade a Igreja é antes de tudo uma comunidade fiel à Verdade transcendente do Pai de Misericórdia, cuja Palavra de             Vida ouvimos, vimos com os nossos olhos, percebemos e             tocamos com as nossas mãos (Cf.1 Jo 1,1) (CATÃO: 7-8).

           
                        Superarmos a concepção pastoral de uma igreja monolítica, onde o direito à diferença tem sido negado em todas os grandes projetos de evangelização, é condição sine qua non jamais poderemos compreender a Redenção de Jesus de Nazaré.
           
"Historicamente, o "amai-vos uns aos outros "não se impôs pelo exemplo de doçura, bondade e entrega de Jesus de Nazaré, de alguns de seus discípulos ou primeiros mártires. Aprendemos a ver no outro "um próximo" pela força das armas; pelas fogueiras da Inquisição ; pela perseguição aos inimigos políticos; pelo degredo, prisão, assassinato ou extermínio em massa dos infiéis, hereges, dissidentes e desviantes".[2]

                        A história de nossas igrejas foi marcada pela intransigência cultural e política e pela obsessão de "proclamar a salvação aos gentios", impondo, custasse o que custasse, o modelo ocidental como única via ética e moral que deveria nortear e sulear nossas práticas pastorais. Parafraseando Catão, a atitude fundamental das igrejas diante do mundo não é a de excomungar os que não lhe reconhecem os direitos e a liberdade, nem de condenar os que pensam a seu contrapelo, mas a de procurar eliminar todos os obstáculos que se opõem ao reconhecimento universal da Palavra de Verdade e reunir todos os homens e mulheres contando principalmente com a força do testemunho de fidelidade à mensagem de paz e de salvação que é a sua.( cf. CATÃO: 8)
                        Em outras palavras, "não é a Igreja que conquista os homens, mas Jesus Cristo que os salva" (CATÃO: l2).
                        A Igreja Romana aniquilou pelas Cruzadas os "infiéis e os hereges" que ameaçavam o mundo cristão. Na descoberta do Novo Mundo, abençoou os canhões e as armas que ajudaram a aniquilar culturas e civilizações e a impor a Cruz e a Espada num processo de "conversão" à Igreja e aos reinos de Espanha e Portugal. Atualmente, utiliza o termo "inculturação"para se apropriar das culturas que não tendo conseguido aniquilar resistem, nestes dois mil anos, a sua ousadia e arrogância missionária...

                        Catão, ao formular, inspirado no Vaticano II, uma Igreja Sem Fronteiras, reafirma o dinamismo da graça cristã e eclesial, "germinando no coração de todos os homens que, fiéis à verdade, à justiça e ao amor, mesmo sem o saber, estão a edificar por toda a parte o reino d'Aquele que é Verdade, Paz e Amor(...) Igreja Sem Fronteiras enfim, é o tema que deve estar obrigatoriamente presente a quem se preocupa com a edificação de um mundo verdadeiramente cristão, e não apenas decorativamente em paz com a Igreja, pois o que conta não são os entendimentos e os compromissos humanos entre autoridades políticas e religiosas, mas uma vida realmente alimentada com a seiva do Evangelho e posta a serviço dos homens, à imitação de Jesus Cristo" (CATÃO: l3).

                        O mundo do ecumenismo encontra nesta formulação a sua razão de ser e de estabelecer com as realidades humanas – e, portanto, culturais, diversas e plurais – um diálogo espiritual capaz de superar todos os anátemas e cismas religiosos. Mas como efetivar este projeto ecumênico se nestes últimos trinta anos assistimos estarrecidos uma sucessão de acontecimentos que negaram a dimensão da humanidade e de humanização, tão querida pelos homens e mulheres de Boa Vontade e tão amplamente desejada pelos que lutaram e lutam pela paz na terra?

"Substituímos a prática da reflexão ética pelo treinamento nos cálculos econômicos; brindamos alegremente o "enterro" das utopias socialistas; reduzimos virtude e excelência pessoais a sucesso midiático; transformamos nossas universidades em máquinas de produção padronizada de diplomas e teses; multiplicamos nossos "pátios dos milagres", esgotos a céu aberto, analfabetos, delinquentes, e, por fim, aderimos à lei do mercado com a volúpia de quem aperta a corda do próprio pescoço, na pressa de encurtar o inelutável fim" (FREIRE COSTA).

                        Retomar "velhos" escritos onde a lucidez evangélica nos arrebata é imperativo para alimentar nossos espíritos e almas tão carentes de profundidade e de pensamentos densos. O pragmatismo das nossas "igrejas populares" esvaziou a dimensão teológica e espiritual que responde pelos diálogos profundos e ousados na construção do Reino de Deus e empobreceu o Espírito que "transcende todas as fronteiras, fala todas as línguas, enche o universo e mantém em vida todas as coisas (...) A Igreja não constitui de modo algum um grupo particular, fechado e delimitado pela língua, pela mentalidade, pela maneira de sentir ou de pensar. Por sua própria natureza a Igreja é uma comunidade real de homens, mas aberta a todos os homens, a todo o mundo" (CATÃO: l6-l7).
            Existiria a possibilidade de construirmos um mundo onde a afirmação da originalidade espiritual e da vivência do Transcendente não fosse motivo de divisões e guerras? Como nossas gerações futuras poderão acreditar no Transcendente se os nossos deuses são construídos do tamanho e estatura das nossas intolerâncias e medos? O desafio ecumênico exige a superação dos nossos limites eclesiásticos que criaram burocratas que se escondem nos organismos "ecumênicos", onde se armam redes rígidas e bem sustentadas por polpudos dólares, marcos, libras, coroas e que não sabem fazer mais nada do que Consultas, Assembleias e Sínodos para mostrarem "ao mundo" a sua "quase hegemonia" na condução "missiológica" e elitista.

"Por acaso um mundo mais justo seria aquele em que todos pudessem ter acesso ao que as elites têm? Mas o que têm as elites a oferecer? Consumo, tédio, insatisfação e ostentação(...) Em vez de utopias, manuais de auto-ajuda, psicofármicos, cocaína e terapêuticas diversas para os que têm dinheiro; banditismo, vagabundagem, mendicância ou religiosismo fanático para os que apenas sobrevivem" (FREIRE COSTA).

                        Como afirmar, segundo Catão, em alto e bom som, que "o Povo de Deus não é delimitado por nenhuma fronteira”? E "o que é absolutamente necessário para se salvar não é o pertencimento pleno e reconhecido à Igreja, senão o laço íntimo de fé e de amor com o Senhor Jesus, a graça interior, que é a riqueza da Igreja, em outras palavras, a fidelidade total e transparente de cada um, à Verdade, à Justiça e ao Amor"? (CATÃO: 36).
                        É necessário reafirmarmos que a essência da Igreja não está no quadro institucional e burocrático, nem nos seus ministérios criados a partir de necessidades dogmáticas e históricas, mas na vida em comunhão com Deus e na afirmação do sacerdócio dos seus fiéis. Mas este sacerdócio existe em todas as religiões, que apesar das suas institucionalizações, procuram superar os seus limites e criar condições para a sua universalidade. É preciso falar da generosidade e lealdade que devem pautar a vida dos homens e mulheres que ainda acreditam na" humanização da Humanidade". E este é o mistério profundo de Jesus de Nazaré, sua profunda humanidade e seu testemunho de ser "humano, profundamente humano".
                        Catão nos alerta que o fato do cristianismo ter sido trazido para a América Latina e de ter transplantado uma cristandade em suas estruturas sem nenhuma preocupação com a cultura, religião e espiritualidade dos povos que aqui encontrou, criou para a instituição - habitualmente identificada com os bispos, padres, pastores, uma série de problemas e de compromissos de que nós não nos libertaremos tão facilmente. "A Igreja, nesse sentido, é a religião que conserva as nossas tradições e deve se opor a todas as renovações" (CATÃO: 88).

"O que se espera do missionário (...) não é que pregue sobre a Igreja e a torne atraente por uma exaltação humana do seu poder, de seu prestígio, de sua prudência, de sua ciência, de todas as suas riquezas, enfim. A Igreja deve desaparecer diante de Jesus para quem aponta, como João Batista" (CATÃO: 86-87).

                        Será que teríamos, novamente, esta inspiração que poderia garantir a retomada do diálogo ecumênico e do diálogo inter-religioso? Será que teríamos, uma vez mais, a lucidez de Catão e do Vaticano II para acreditarmos que "cada um de nós é chamado a ser diante de Deus, de si mesmo, de seus irmãos, um autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é Igreja. No seio da comunidade apostólica, como no meio do mundo, o que conta de fato é a fidelidade à Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive autenticamente como homem, que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma, faz parte da Igreja, está conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua carne a Paixão de Cristo e será reconhecido como Filho do Pai do Céu" (CATÃO: 92).
                        Ou como nos desafia Freire Costa:

"Seria muito propor que, em vez de ruminar o fracasso, pensássemos juntos em refazer a amizade, a lealdade, a fidelidade e a honra na vida pública e privada, o gosto pela ética no pensamento político ou visões de mundo capazes de contornar a lassidão moral decorrentes de nossos hábitos sentimentais e sexuais, etc? (...) Um grão de loucura e devaneio, quem sabe, é desta falta que padecem nossas almas mortas, famintas de encantamento e razão de viver".

                        O desafio ecumênico, para quem ainda acredita e decidiu investir a sua vida nesta utopia, está presente nesta nossa atitude de, ao assumir as situações-limites, superarmos nossas miopias institucionais e seus dogmatismos historicamente produzidos. De sermos livres para sonharmos os novos mundos e as novas religiões, onde Deus não seja apenas uma palavra vazia e vã mas seja, tão somente, a expressão da comunhão solidária, na Verdade, na Justiça e no Amor, dos homens e mulheres, que "como se vissem o Invisível" permanecem firmes e lutando toda a sua vida.
                        São estes os benditos e benditas do Pai, os felizes, as bem-aventuradas, e, mais que nunca, são estes que, apesar da Morte, recomeçam sempre e cada vez mais se tornam imprescindíveis porque fulminados pela Esperança e pelo Amor que tudo transforma e que aproxima homens e mulheres de todas as raças, credos e religiões, porque Deus é Mais e Liberdade é o nome do seu Espírito....



Comunidade dos Manos da Terna Solidão, 29 de setembro de 1996, primeiro domingo de oxalá.


           
                       




[1]Título do livro que marcou a década de 60 e toda uma geração de Ação Católica, mas sobretudo o diálogo ecumênico no Brasil, abrindo novas perspectivas para ações comuns entre os cristãos. Seu autor foi provincial da Ordem dos Frades Pregadores (Dominicanos) no Brasil e responsável pelas posições teológicas de ponta assumidas por esta ordem religiosa que tanto marcou a Igreja brasileira e seus compromissos políticos e sociais. CATÃO, Bernardo, A igreja sem fronteiras, São Paulo, Livraria Duas Cidades, l965, 92 p.
[2] FREIRE COSTA, Jurandir, “A devoração da esperança no próximo”, Folha de São Paulo, 22.09.96, Caderno MAIS, p 8.

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