A palavra de
Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).
Pentecostes31.05.2020
At 2, 1-111
Cor 12, 3-7.12-13Jo 20, 19-23
ESCUTAR
Todos
ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas,
conforme o Espírito os inspirava (At 2, 4).
A cada um
é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum (1 Cor 12, 7).
Soprou
sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20, 22).
MEDITAR
Senhor
Jesus, que teu Espírito me ajude a não ficar fechado sobre mim mesmo ou sobre
interesses pessoais; que ele me leve a me abrir aos outros, a escutá-los, a
compreendê-los; que ele me leve a me abrir “àqueles que estão longe” e a
discernir todas as ocasiões para encontrá-los. Senhor Jesus, envie-me teu
Espírito de luz e de fogo. Que ele faça de mim um apaixonado por teu Evangelho
e um apaixonado por teu Reino, como tu és apaixonado por teu Pai. Senhor Jesus,
envie teu Espírito a tua Igreja, para que ela se torne a Igreja serva e pobre
evocada pelo Vaticano II.
(Bernard
Prévost, 1913-, França)
ORAR
Quando a lua se reflete na
água, ela não se molha. Quando o sol se reflete na água, ele não se apaga.
Rumi: “um raio de sol entrando pela fenda de um respiradouro e irradiando de
luz uma multidão de grãos de poeira que continuam a dançar girando sobre eles
mesmos em pinceladas de luz que os transformam em mil pequenos sóis arrancados
à sombra da caverna. Acontece assim com a luz de Deus: a grande luz cede o
lugar para deixar inteiramente livre a dança desses pequenos grãos girando
iluminados por ela e transformados em mil pequenos sóis”. Os símbolos do espírito
são elementos em movimento. Chega um momento em que é o homem por inteiro que
deve se colocar em movimento, que deve entrar como símbolo vivo do Espírito, à
maneira de Maria partindo depressa para a primeira Visitação da Igreja. O
Espírito nos coloca em movimento em direção ao outro e nos arrebata pelo Filho
em direção ao Pai. Uma celebração da Vida em construção na harmonia invisível
da criação e na sinfonia necessária dos seres e das coisas. A possessão do
Espírito a partir do Pai, gerando a kénose do Pai pelo Filho. O Pai que
doa o Espírito ao Cristo “sem medida”. O sacrifício de Jerusalém, um sacrifício
de pneumatização, de VIVIFICAÇÃO (e não de mortificação!). Ele oferece a
humanidade a seu Pai para que este a vivifique no Espírito Santo. A Igreja, em
um momento de sua história, se fechou no temor da vida e da liberdade pessoal,
como uma máquina por demais ritualista no Oriente e por demais jurídica no
Ocidente. E as tempestades do Espírito sopraram sobre a periferia da Igreja, e
às vezes contra ela, como uma imensa exigência de vida criadora de justiça, de
comunhão e de beleza. Quando se tem o Santo Espírito, o coração se dilata,
banha-se de amor divino. O peixe não se queixa nunca de ter mais água... (Cura
d’Ars). Descobrir em tudo a respiração do Espírito (Paulino de Nola). O
Espírito Santo é o Revelador de Deus. Em Pentecostes, ele se fixa de alguma
maneira no Revelado. Desde então, o homem habitado no Espírito pode tornar-se
Revelador. O Espírito é missionário porque cada um tem uma capacidade
reveladora e isso lhe é dado pelo Espírito. É tão verdadeiro que sem os
apóstolos, o Cristo não teria tido forma de existência. Eles são reveladores
porque nos transmitiram como testemunhas, por seus seres que estão
identificados com Aquele do qual deram testemunho. Nossa Igreja é a Igreja do
Espírito Santo. Do Espírito Santo também se pode dizer: “cada um tem sua parte
e todos têm tudo, pois sua generosidade é inesgotável” (João Paulo II). “Ó fogo
cuja vinda é palavra, cujo silêncio é luz” (Santo Efrém). O Espírito está em
casa e ainda mais em nós do que nunca.
A palavra de
Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).
Ascensão do Senhor24.05.2020
At 1, 1-11Ef
1, 17-23Mt 28, 16-20
ESCUTAR
“Homens
da Galileia, por que ficais aqui parados, olhando para o céu?” (At 1, 11).
O Deus de
nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito
de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer (Ef 1, 17).
Quando
viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram (Mt 28,
17).
MEDITAR
Quando
Jesus enviou os discípulos para ir e pregar até os confins do mundo, no final
do evangelho de Mateus foi dito que “alguns duvidaram”. Eu amo isso. Lá estão
eles sobre a montanha, frente ao Senhor Ressuscitado, e alguns ainda não tinham
certeza. Mas Jesus os enviou de qualquer maneira. Logo, quando formos falar de
nossa fé, alguns de nós podem ter incertezas, indagações e questões não
resolvidas. E isso é bom! Porque então as pessoas verão que ser um Católico não
significa que nós temos todas as respostas. O Cardeal Kasper do Vaticano disse
que a Igreja teria mais autoridade se às vezes dissesse com mais frequência:
“Eu não sei”.
(Timothy
Radcliffe, 1945-, Reino Unido)
ORAR
Na verdade, a ascensão de Jesus ao
céu, esse acontecimento inenarrável com nossas palavras capazes somente de
contar fatos humanos, não foi uma supressão nem a conclusão de uma aventura: a
da vida de Jesus. Com efeito, quando se lê com inteligência os relatos da
Ascensão, não se encontra ali o relato de um “adeus”, mas antes um envio dos
discípulos, uma missão desde Jerusalém até as extremidades do mundo. Os
discípulos, indo para o mundo, proclamarão o Evangelho a toda criatura (ver Mc
16, 15) e farão antes de tudo a experiência da proximidade, da presença de
Jesus. Terão mesmo a consciência de ser apenas homens e mulheres a serviço da
missão de Jesus, o enviado do Pai. O Cristo é elevado para junto de Deus para
conduzir seu trabalho a termo, para poder interceder a favor dos homens, entre
os quais e com os quais ele habitou sobre a terra, como verdadeiro homem, durante
aproximadamente trinta e sete anos. Assim, doravante, uma nova relação liga
Deus e a humanidade: esta separação entre o céu e a terra, entre o Criador e a
criatura torna-se comunhão graças a Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. “Os céus
são os céus do Senhor, a terra, ele a deu aos homens”, cantava o salmista (Sl
115, 16).; mas essas duas realidades são agora conjuntas em Jesus Cristo: ele,
com efeito,desceu do céu sobre a terra;
ele era “da condição de Deus” (Fl 2, 6) e se revestiu de carne humana e mortal
(ver Jo 1, 14): com esta realidade humana, compreendendo o corpo, a alma e o
espírito, ele sofreu até a morte; ele ressuscitou e, como carne, subiu ao céu.
Doravante, “à direita do Pai”, quer dizer na intimidade da vida de Deus, há um
corpo de homem, uma vez que em Cristo os céus desceram sobre a terra e a terra
subiu ao céu. Na verdade, Jesus é ao mesmo tempo Filho de Deus e Filho de
homem, capaz de ser para nós, homens, o Emmanuel, o Deus conosco. Presença real
na ausência física, relação na distância: eis o significado da Ascensão, que
chama os cristãos a caminhar “à luz da fé e não da visão” (2 Cor 5, 7),
aprimorando a sensibilidade da fé, os “sentidos espirituais”, a saber a
capacidade do coração humano de ver, escutar, tocar, gozar, sentir. O Cristo
está junto de Deus e ao mesmo tempo presente entre os homens e na história;
confessar este mistério nos ensina a alteridade do outro: a face do outro,
irredutivelmente a sua, nos evoca um mistério de transcendência; ela convida ao
respeito assim como à comunhão. A Ascensão contesta toda voracidade e todo
desejo de possessão, tanto nas relações com Deus como nas relações humanas: na
verdade, é um grande magistério de liberdade!
(Enzo
Bianchi, 1943-, Itália)
CONTEMPLAR
S. Título, 1990,
hospital psiquiátrico de Sichuan, da Série “As Pessoas Esquecidas: a condição
dos pacientes psiquiátricos chineses, 1989-1990”, Lu Nan (1962-), Magnum
Photos, Beijing, China.
A palavra de
Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).
VI Domingo da Páscoa17.05.2020
At 8, 5-8.14-171
Pd 3, 15-18Jo 14,
15-21
ESCUTAR
De muitos
possessos saíam os espíritos maus, dando grandes gritos. Numerosos paralíticos
e aleijados também foram curados (At 8, 7).
Estai
sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pedir (1
Pd 3, 15).
“Quem me
ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (Jo 14, 21).
MEDITAR
Cada um
de nós é chamado a ser diante de Deus, de si mesmo, de seus irmãos, um
autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é Igreja. No seio da comunidade
apostólica, como no meio do mundo, o que conta de fato é a fidelidade à
Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive autenticamente como
homem, que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma, faz parte da Igreja,
está conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua carne a Paixão de Cristo
e será reconhecido como Filho do Pai do Céu.
(Francisco
Catão, 1927-2020, Brasil)
ORAR
O Espírito Santo
reveste-se, segundo a promessa de Jesus registrada no evangelho de João, de uma
dupla função: no interior da comunidade o Espírito mantém viva e interpreta a
mensagem de Cristo (Jo 14, 26), no exterior dá segurança ao fiel em seu
confronto com o mundo, ajudando-o a decifrar o sentido da história não obstante
as aparências desarmantes. O Espírito alimenta, assim, a fé e a esperança. O
Espírito é o sinal da presença do Cristo em sua Igreja. É indispensável abrir a
porta da comunidade e dos corações à ação do Espírito dado pelo Cristo pascal.
Com o pecado o homem “mata o Espírito” (1 Ts 5, 19), cala a fonte da sua vida.
Com o Espírito, princípio de conteúdo da Igreja, a comunidade cristã se expande
na pluralidade esplêndida de seus dons. Cristo, o Espírito, o Pai e o fiel
estão vinculados por uma ligação de amor. É o tema do evangelho de hoje.
Na Bíblia predomina a categoria do encontro, da aliança, da comunhão. Ela é
como um sêmen fecundo que cresce perfurando a crosta da solidão, do silêncio,
do ódio. “As promessas escatológicas da tradição bíblica – liberdade, paz,
justiça, reconciliação – não podem ser privatizadas. Elas pressionam sempre
para uma responsabilidade social. Estas promessas, porém, não podem estar nunca
identificadas com algum status social. A história do cristianismo conhece
suficientemente bastante as identificações ou politizações diretas da promessa”
(J. B. Metz, Sobre a teologia do mundo, Brescia, 1969, p. 114). A virtude
cristã que exala do amor são a esperança que vence o pessimismo; a doçura e
o respeito, que dobram o ódio e o fanatismo; a coerência, que permite responder
a quem nos pede a dar “a razão da nossa esperança”; a constância, que sabe
sustentar o espírito mesmo na obscuridade da prova.
(Gianfranco
Ravasi, 1942-, Itália)
CONTEMPLAR
Resistência, 2019,
jovens em ação nas ruas em Paris, França, Stanislav Sitnikov, Federação Russa,
Monochrome Photography Awards 2019.
Manas e Manos, hoje, o nosso pai espiritual e teológico, Francisco Catão, foi acolhido na eternidade da Trindade Amorosa. "Sua vida está escondida com Cristo em Deus" (Cl 3, 3).
"Cada um de nós é chamado a ser diante de Deus,
de si mesmo, de seus irmãos, um autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é
Igreja. No seio da comunidade apostólica, como no meio do mundo, o que conta de
fato é a fidelidade à Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive
autenticamente como homem, que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma,
faz parte da Igreja, está conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua
carne a Paixão de Cristo e será reconhecido como Filho do Pai do Céu" (Francisco Catão, A igreja sem fronteiras).
Ele (Jesus) foi à caixa
dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que
ninguém soubesse que ele tinha fugido
Com o segundo criou-se
eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um
Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na
cruz que há no céu
E serve de modelo às
outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro
raio que apanhou".
(Fernando Pessoa/Antonio
Caieiro, O Guardador de Rebanhos)
Neste
quase terceiro milênio, é mister constatarmos o fracasso das nossas igrejas em
suas missões evangelizadoras. O "mundo ocidental e cristão" carece de
valores humanos que as igrejas nestes quase dois mil anos quiseram ser
portadoras privilegiadas. O fato indiscutível é que fracassaram na criação e
construção de homens e mulheres humanizados
e moldaram à sua imagem e semelhança pessoas com um superlativo grau de
preconceito, de dogmatismo e de autoritarismo. Os aparelhos burocráticos destas
instituições se expandiram abafando e se sobrepondo ao espírito eclesial que
deveria reinar no kerigma do Cristo
Morto e Ressuscitado.
"A Igreja não é uma instituição
abstrata, a cuja forma rígida se devem dobrar as instituições humanas. A Igreja
não é a depositária inerte de uma verdade intemporal para sempre formulada, que
deverá ser imposta às inteligências
e às vidas dos homens, com exclusão de tudo
quanto possam descobrir ou sentir em contato com a realidade das coisas, reveladoras
de Deus. Na realidade a Igreja é antes de tudo uma comunidade fiel à Verdade transcendente
do Pai de Misericórdia, cuja Palavra de Vida
ouvimos, vimos com os nossos olhos, percebemos e tocamos com as nossas mãos (Cf.1 Jo 1,1) (CATÃO: 7-8).
Superarmos
a concepção pastoral de uma igreja monolítica, onde o direito à diferença tem
sido negado em todas os grandes projetos de
evangelização, é condição sine qua
non jamais poderemos compreender a Redenção de Jesus de Nazaré.
"Historicamente,
o "amai-vos uns aos outros "não se impôs pelo exemplo de doçura,
bondade e entrega de Jesus de Nazaré, de alguns de seus discípulos ou primeiros
mártires. Aprendemos a ver no outro "um próximo" pela força das
armas; pelas fogueiras da Inquisição ; pela perseguição aos inimigos políticos;
pelo degredo, prisão, assassinato ou extermínio em massa dos infiéis, hereges,
dissidentes e desviantes".[2]
A
história de nossas igrejas foi marcada pela intransigência cultural e política
e pela obsessão de "proclamar a salvação aos gentios", impondo,
custasse o que custasse, o modelo ocidental como única via ética e moral que
deveria nortear e sulear nossas práticas pastorais. Parafraseando Catão, a
atitude fundamental das igrejas diante do mundo não é a de excomungar os que
não lhe reconhecem os direitos e a liberdade, nem de condenar os que pensam a
seu contrapelo, mas a de procurar eliminar todos os obstáculos que se opõem ao
reconhecimento universal da Palavra de Verdade e reunir todos os homens e
mulheres contando principalmente com a força do testemunho de fidelidade à
mensagem de paz e de salvação que é a sua.( cf. CATÃO: 8)
Em
outras palavras, "não é a Igreja que conquista os homens, mas Jesus Cristo
que os salva" (CATÃO: l2).
A
Igreja Romana aniquilou pelas Cruzadas os "infiéis e os hereges" que
ameaçavam o mundo cristão. Na descoberta do Novo Mundo, abençoou os canhões e
as armas que ajudaram a aniquilar culturas e civilizações e a impor a Cruz e a
Espada num processo de "conversão" à Igreja e aos reinos de Espanha e
Portugal. Atualmente, utiliza o termo "inculturação"para se apropriar
das culturas que não tendo conseguido aniquilar resistem, nestes dois mil anos,
a sua ousadia e arrogância missionária...
Catão,
ao formular, inspirado no Vaticano II, uma Igreja
Sem Fronteiras, reafirma o dinamismo da graça cristã e eclesial,
"germinando no coração de todos os homens que, fiéis à verdade, à justiça
e ao amor, mesmo sem o saber, estão a edificar por toda a parte o reino
d'Aquele que é Verdade, Paz e Amor(...) IgrejaSemFronteiras enfim, é o tema que deve estar obrigatoriamente presente
a quem se preocupa com a edificação de um mundo verdadeiramente cristão, e não
apenas decorativamente em paz com a Igreja, pois o que conta não são os
entendimentos e os compromissos humanos entre autoridades políticas e
religiosas, mas uma vida realmente alimentada com a seiva do Evangelho e posta
a serviço dos homens, à imitação de Jesus Cristo" (CATÃO: l3).
O
mundo do ecumenismo encontra nesta formulação a sua razão de ser e de
estabelecer com as realidades humanas – e, portanto, culturais, diversas e
plurais – um diálogo espiritual capaz de superar todos os anátemas e cismas
religiosos. Mas como efetivar este projeto ecumênico se nestes últimos trinta
anos assistimos estarrecidos uma sucessão de acontecimentos que negaram a
dimensão da humanidade e de humanização, tão querida pelos homens e mulheres de
Boa Vontade e tão amplamente desejada pelos que lutaram e lutam pela paz na
terra?
"Substituímos a
prática da reflexão ética pelo treinamento nos cálculos econômicos; brindamos
alegremente o "enterro" das utopias socialistas; reduzimos virtude e
excelência pessoais a sucesso midiático; transformamos nossas universidades em
máquinas de produção padronizada de diplomas e teses; multiplicamos nossos
"pátios dos milagres", esgotos a céu aberto, analfabetos,
delinquentes, e, por fim, aderimos à lei do mercado com a volúpia de quem
aperta a corda do próprio pescoço, na pressa de encurtar o inelutável fim"
(FREIRE COSTA).
Retomar
"velhos" escritos onde a lucidez evangélica nos arrebata é imperativo
para alimentar nossos espíritos e almas tão carentes de profundidade e de
pensamentos densos. O pragmatismo das nossas "igrejas populares"
esvaziou a dimensão teológica e espiritual que responde pelos diálogos
profundos e ousados na construção do Reino de Deus e empobreceu o Espírito que
"transcende todas as fronteiras, fala todas as línguas, enche o universo e
mantém em vida todas as coisas (...) A Igreja não constitui de modo algum um
grupo particular, fechado e delimitado pela língua, pela mentalidade, pela
maneira de sentir ou de pensar. Por sua própria natureza a Igreja é uma
comunidade real de homens, mas aberta a todos os homens, a todo o mundo" (CATÃO:
l6-l7).
Existiria
a possibilidade de construirmos um mundo onde a afirmação da originalidade
espiritual e da vivência do Transcendente não fosse motivo de divisões e
guerras? Como nossas gerações futuras poderão acreditar no Transcendente se os
nossos deuses são construídos do tamanho e estatura das nossas intolerâncias e
medos? O desafio ecumênico exige a superação dos nossos limites eclesiásticos
que criaram burocratas que se escondem nos organismos "ecumênicos",
onde se armam redes rígidas e bem sustentadas por polpudos dólares, marcos,
libras, coroas e que não sabem fazer mais nada do que Consultas, Assembleias e
Sínodos para mostrarem "ao mundo" a sua "quase hegemonia" na
condução "missiológica" e elitista.
"Por acaso um
mundo mais justo seria aquele em que todos pudessem ter acesso ao que as elites
têm? Mas o que têm as elites a oferecer? Consumo, tédio, insatisfação e
ostentação(...) Em vez de utopias, manuais de auto-ajuda, psicofármicos,
cocaína e terapêuticas diversas para os que têm dinheiro; banditismo,
vagabundagem, mendicância ou religiosismo fanático para os que apenas
sobrevivem" (FREIRE COSTA).
Como
afirmar, segundo Catão, em alto e bom som, que "o Povo de Deus não é
delimitado por nenhuma fronteira”? E "o que é absolutamente necessário
para se salvar não é o pertencimento pleno e reconhecido à Igreja, senão o laço
íntimo de fé e de amor com o Senhor Jesus, a graça interior, que é a riqueza da
Igreja, em outras palavras, a fidelidade total e transparente de cada um, à
Verdade, à Justiça e ao Amor"? (CATÃO: 36).
É
necessário reafirmarmos que a essência da Igreja não está no quadro
institucional e burocrático, nem nos seus ministérios criados a partir de
necessidades dogmáticas e históricas, mas na vida em comunhão com Deus e na
afirmação do sacerdócio dos seus fiéis. Mas este sacerdócio existe em todas as
religiões, que apesar das suas institucionalizações, procuram superar os seus
limites e criar condições para a sua universalidade. É preciso falar da
generosidade e lealdade que devem pautar a vida dos homens e mulheres que ainda
acreditam na" humanização da Humanidade". E este é o mistério
profundo de Jesus de Nazaré, sua profunda humanidade e seu testemunho de ser
"humano, profundamente humano".
Catão
nos alerta que o fato do cristianismo ter sido trazido para a América Latina e
de ter transplantado uma cristandade em suas estruturas sem nenhuma preocupação
com a cultura, religião e espiritualidade dos povos que aqui encontrou, criou
para a instituição - habitualmente identificada com os bispos, padres,
pastores, uma série de problemas e de compromissos de que nós não nos
libertaremos tão facilmente. "A Igreja, nesse sentido, é a religião que
conserva as nossas tradições e deve se opor a todas as renovações" (CATÃO:
88).
"O que se espera
do missionário (...) não é que pregue sobre a Igreja e a torne atraente por uma
exaltação humana do seu poder, de seu prestígio, de sua prudência, de sua
ciência, de todas as suas riquezas, enfim. A Igreja deve desaparecer diante de
Jesus para quem aponta, como João Batista" (CATÃO: 86-87).
Será
que teríamos, novamente, esta inspiração que poderia garantir a retomada do
diálogo ecumênico e do diálogo inter-religioso? Será que teríamos, uma vez
mais, a lucidez de Catão e do Vaticano II para acreditarmos que "cada um
de nós é chamado a ser diante de Deus, de si mesmo, de seus irmãos, um
autêntico servidor da Verdade e do Amor. Isso é Igreja. No seio da comunidade
apostólica, como no meio do mundo, o que conta de fato é a fidelidade à
Verdade, à Justiça e ao Amor. Todo homem pois, que vive autenticamente como homem,
que ajuda seu semelhante a vivê-lo da mesma forma, faz parte da Igreja, está
conduzido pelo Espírito de Jesus, completa em sua carne a Paixão de Cristo e
será reconhecido como Filho do Pai do Céu" (CATÃO: 92).
Ou
como nos desafia Freire Costa:
"Seria muito
propor que, em vez de ruminar o fracasso, pensássemos juntos em refazer a
amizade, a lealdade, a fidelidade e a honra na vida pública e privada, o gosto
pela ética no pensamento político ou visões de mundo capazes de contornar a
lassidão moral decorrentes de nossos hábitos sentimentais e sexuais, etc? (...)
Um grão de loucura e devaneio, quem sabe, é desta falta que padecem nossas
almas mortas, famintas de encantamento e razão de viver".
O
desafio ecumênico, para quem ainda acredita e decidiu investir a sua vida nesta
utopia, está presente nesta nossa atitude de, ao assumir as situações-limites,
superarmos nossas miopias institucionais e seus dogmatismos historicamente
produzidos. De sermos livres para sonharmos os novos mundos e as novas religiões,
onde Deus não seja apenas uma palavra vazia e vã mas seja, tão somente, a
expressão da comunhão solidária, na Verdade, na Justiça e no Amor, dos homens e
mulheres, que "como se vissem o Invisível" permanecem firmes e
lutando toda a sua vida.
São
estes os benditos e benditas do Pai, os felizes, as bem-aventuradas, e, mais
que nunca, são estes que, apesar da Morte, recomeçam sempre e cada vez mais se
tornam imprescindíveis porque fulminados pela Esperança e pelo Amor que tudo
transforma e que aproxima homens e mulheres de todas as raças, credos e
religiões, porque Deus é Mais e Liberdade é o nome do seu Espírito....
Comunidade dos Manos da Terna Solidão, 29 de
setembro de 1996, primeiro domingo de oxalá.
[1]Título
do livro que marcou a década de 60 e toda uma geração de Ação Católica, mas
sobretudo o diálogo ecumênico no Brasil, abrindo novas perspectivas para ações
comuns entre os cristãos. Seu autor foi provincial da Ordem dos Frades
Pregadores (Dominicanos) no Brasil e responsável pelas posições teológicas de
ponta assumidas por esta ordem religiosa que tanto marcou a Igreja brasileira e
seus compromissos políticos e sociais. CATÃO, Bernardo, A igreja sem fronteiras, São
Paulo,Livraria Duas Cidades,
l965, 92 p.
[2] FREIRE
COSTA, Jurandir, “A devoração da
esperança no próximo”, Folha de São Paulo, 22.09.96,
Caderno MAIS, p 8.
A palavra de
Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).
V Domingo da Páscoa10.05.2020
At 6, 1-71
Pd 2, 4-9Jo 14, 1-12
ESCUTAR
O número
dos discípulos tinha aumentado, e os fiéis de origem grega começaram a
queixar-se dos fiéis de origem hebraica (At 6, 1).
Aproximai-vos
do Senhor, pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e honrosa aos
olhos de Deus (1 Pd 2, 4-9).
“Quem me
viu, viu o Pai” (Jo 14, 9).
MEDITAR
Dentro de
nós está o Amor atraindo-nos até Ele, ao centro de nós mesmos, que é Ele.
Porque o amor busca sempre a união, a identificação do amado com a amada.
Existe alguém dentro de mim que não sou eu mesmo. Estamos construídos de tal
maneira que o centro de nosso ser é Deus. De tal modo que concentrar-nos em nós
mesmos é aproximar-nos de Deus. Ainda que não possamos chegar até Ele, porque
também a distância que há entre Ele e nós é infinita: porque está infinitamente
perto de nós (infinitamente dentro).
(Ernesto
Cardenal, 1925-2020, Nicarágua)
ORAR
Desde que Deus deixou o
mundo estremecido pelo medo, ele empregou seu amor para fazê-lo voltar a ele,
sua graça para convidá-lo, sua afeição para abraçá-lo. Quando do dilúvio, sua
vingança purifica a terra de um mal inveterado; ele chama Noé a construir um
mundo novo, encoraja-o com doces palavras, dá-lhe sua confiança familiar, o
instrui com bondade sobre o presente e o consola por sua graça a respeito do
futuro. Em seguida, Deus chama Abraão do meio das nações, magnifica seu nome e
o faz pai dos crentes. Ele o acompanha no caminho, protege-o do estrangeiro,
cumula-o de riquezas, honra-o com vitórias, assegura-o de suas promessas,
arranca-o das injustiças, consola-o com sua hospitalidade, e o encanta por um
nascimento inesperado a fim de que, cumulado de todos os bens, atraído pela
grande doçura do amor divino, ele aprende a amar Deus e a não mais temê-lo, a
adorá-lo amando-o e não mais temendo-o. Mais tarde, Deus consola Jacó na fuga
por meio de sonhos. Ao seu retorno, ele o provoca ao combate e, durante a luta,
ele o aperta em seus braços a fim de que ele ame o pai dos combates e não o tema
mais. Depois ele chama Moisés e lhe fala com um amor de pai para convidá-lo a
libertar seu povo. Em todos esses acontecimentos, a chama da caridade divina
abraçou o coração humano, a embriaguez do amor de Deus se derramou sobre a sensibilidade
dos homens; e estes, com a alma rendida, começaram a desejar ver Deus com seus
olhos de carne. Deus, que o mundo não pode abarcar, como o olhar limitado de um
homem o abarcaria? Mas o que deve ser e o que é possível não é a regra do amor.
O amor ignora esta justiça. Ele não tem regra e não conhece medida. O amor não
admite o pretexto da impossibilidade, não aceita tampouco o da dificuldade. O
amor, se ele não realiza os seus desejos, ele mata aquele que ama. Ele vai onde
ele se sente atraído e não onde há a força. O amor engendra o desejo, ele se
desenvolve com ardor e almeja o impossível. E o que mais? O amor não admite não
ver aquele que ele ama. Os santos não consideravam como pouca coisa tudo o que obtinham
para ver a Deus? É assim que Moisés ousa dizer: “Se eu encontrar graça diante
de ti, mostra-me tua face” (Ex 33, 13). E o salmista: “Mostra-nos tua face” (Sl
80, 4). Não é por isso que os pagãos se cercam de ídolos? Mesmo no meio do
erro, eles viam com seus olhos o que adoravam. Deus conhecia, portanto, os
mortais atormentados pelo desejo de o ver. O que ele escolheu para se mostrar
era grande sobre a terra e não menos no céu. Porque o que, sobre a terra, Deus
fez semelhante a ele não podia ficar sem honra no céu: “Façamos, disse ele, o
homem à nossa imagem e à nossa semelhança (Gn 1, 26). Que ninguém, portanto,
pense que Deus não tivesse razão de vir aos homens por um homem. Ele se fez
carne entre nós para ser visto por nós.
(Pedro
Crisólogo, 380-450, Itália)
CONTEMPLAR
S. Título, 2015, Nedim
Chaabene (1968-), Flickr/CC BY, Tunísia/França.