quinta-feira, 27 de abril de 2023

O Caminho da Beleza 23 - IV Domingo da Páscoa

Peguei da mão do anjo o livrinho e comi-o. Na boca era doce como mel, mas, quando o engoli, meu estômago tornou-se amargo (Ap 10, 10).

IV Domingo da Páscoa

At 2, 14.36-41                    1 Pe 2, 20-25                      Jo 10, 1-10

 

ESCUTAR

“E vós recebereis o dom do Espírito Santo. Pois a promessa é para vós e vossos filhos, e para todos aqueles que estão longe, todos aqueles que o Senhor nosso Deus chamar para si” (At 2, 39-40).

“Caríssimos, se suportais com paciência aquilo que sofreis por ter feito o bem, isso vos torna agradáveis diante de Deus” (1 Pe 2, 20).

“Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. A esse o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome a as conduz para fora” (Jo 10, 2).

 

MEDITAR

 Não me lembro de um só instante da minha vida em que tenha duvidado de Deus. Duvidei e duvido da possibilidade do pensamento humano conhecer e nomear adequadamente a sua existência, duvidei e duvido das pretensões das religiões de encerrá-lo nas suas doutrinas, duvidei e duvido de muitas outras coisas, mas de Deus e da possibilidade de participar no seu mistério de vida infinita que Jesus-Yeshua chamava ‘reino’ nunca duvidei e espero que nunca duvide até o último dos meus dias.

(Vito Mancuso)

 

ORAR

     O final da carta de Pedro nos introduz o tema central desta liturgia: “Andáveis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao pastor e guarda de vossas vidas”. Jesus se apresenta como a porta do redil. Uma porta de exclusão para os ladrões e salteadores, ao mesmo tempo, uma porta de inclusão e acesso para os verdadeiros pastores que dão a vida pelas ovelhas. É uma relação vital e não jurídica, doutrinal ou ritual. Tantas vezes, os pastores com suas investiduras legais e títulos de legitimidade jurídica se comportam como ladrões e bandidos e se tornam impotentes para criarem vínculos de confiança, intimidade e partilha. O verdadeiro pastor faz sair as ovelhas e as liberta dos sistemas fechados de dogmas, ritos e ideologia. A vida só está segura no movimento por Cristo, com Cristo e em Cristo, que nos oferece vida em abundância (Jo 10, 10) e não uma vida restrita às falsas seguranças do poder e do dinheiro. As ovelhas “não seguem um estranho, antes fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos”. Os poderosos são obedecidos, mas não escutados, pois a sua voz tem a obstinação de dominar e não de amar. Não podemos prender Jesus no redil das nossas estreitas vidas como uma coisa que possuímos. Devemos é transformar nossas vidas numa porta sempre aberta para que entrem e saiam, renovados, os que o Senhor colocou em nossas travessias. O amor cristão não prende e nem cerceia, mas nos coloca na dinâmica de uma vida em liberdade. Para o cristão, “dar a vida” não significa entregar-se à morte, mas se arriscar e se expor diante de um perigo que ameaça um outro. Temos uma relação muito empobrecida com o Cristo: não cremos que Ele cuida de nós e que podemos recorrer a Ele quando nos sentimos cansados e sem esperança. Temos vivido em estruturas nas quais Jesus Cristo é confessado de maneira doutrinal, mas distante da comunidade; em que nossos pastores apascentam mais a si mesmos do que as suas ovelhas. Como diz o profeta a estes falsos pastores: “Comeis sua gordura e vos vestis com sua lã; matais as mais gordas. Não fortaleceis as fracas, nem curais as enfermas, nem vendais as feridas; não recolheis as desgarradas, nem procurais as perdidas e maltratais brutalmente as fortes” (Ez 34, 3-4). Neste tempo pascal, como em todos os outros tempos, devemos procurar o Ressuscitado no amor e não na letra morta; na verdade e não nas aparências; na ação criativa e não na passividade e na inércia; no silêncio interior e não na agitação superficial. Temos que nos perguntar se a palavra que escutamos em nossas igrejas provém da Galileia e nasce do Espírito do Ressuscitado para que não substituamos a voz inconfundível do Cristo pelo amontoado de pregações, de escritos teológicos, de exposição de catequistas que só nos causam ruídos e surdez para a voz límpida do Cristo que nos chama pelo nome, nos acolhe e nos perdoa em sua misericórdia.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

O Bom Pastor, s.d., Daniel Bonnell, óleo sobre tela, 24 x 48 pol, Carolina do Sul, Estados Unidos.




quinta-feira, 20 de abril de 2023

O Caminho da Beleza 22 - III Domingo da Páscoa

Peguei da mão do anjo o livrinho e comi-o. Na boca era doce como mel, mas, quando o engoli, meu estômago tornou-se amargo (Ap 10, 10).

III Domingo da Páscoa           

At 2, 14.22-23                    1 Pe 1, 17-21                        Lc 24, 13-35

 

ESCUTAR

“Deus, em seu desígnio e previsão, determinou que Jesus fosse entregue pelas mãos dos ímpios, e vós o matastes, pregando-o numa cruz” (At 2, 23).

“Sabeis que fostes resgatados da vida fútil herdada de vossos pais não por meio de coisas perecíveis, como prata ou o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha nem defeito” (1 Pe 1, 18-19).

“Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24,32).

 

MEDITAR

A ressurreição não é uma fuga da vida, não é um refúgio num paraíso artificial nem mesmo uma volta ao antigo jardim perdido das delícias. A fé não é um ópio para fazer esquecer no irreal. Ressuscitar é voltar transformado ao próprio lugar da ferida.

(Dominique Collin)

 

ORAR

     Quando o Ressuscitado nos deseja a paz não quer dizer que devemos estar tranquilos, mas que devemos abrir os olhos para fazer novas todas as coisas (Ap 21, 5) e não correr o risco de voltar atrás. A palavra profética faz uma reviravolta em nossos corações e nos obriga a uma mudança radical no modo de valorizar os nossos atos. Nós nos assemelhamos aos discípulos de Emaús: estamos muito bem informados das últimas notícias e o Cristo parece estar desinformado e com a necessidade de ser atualizado. Temos uma dificuldade, e nem fazemos nenhum esforço, para compreender e interpretar o significado das coisas que acontecem. Jesus, antes de ser reconhecido ao partir o pão, revela as Escrituras e se revela a si mesmo. A Páscoa não é um relato de uma grande ilusão nem uma estória a ser contada e recontada. A fé não recobre as lacunas da nossa intuição ou da nossa experiência e muitas vezes nos perdemos na proliferação dos nossos conceitos. Os discípulos tinham uma abundante informação sobre Jesus: suas lembranças históricas e o relato das mulheres e, no entanto, foram incapazes de reconhecer o Vivente ao seu lado caminhando com eles. Os discípulos haviam perdido a fé e a esperança.  Mortos, marchavam com um Vivo; mortos, marchavam com a Vida ainda que seus corações não houvessem retornado à vida. Para eles, Jesus estava morto e ponto final: “Pena que tenha terminado assim”. Quando Jesus os reencontra haviam perdido o caminho. Apesar de que tudo houvesse sido dito sobre o sofrimento, a morte e a ressurreição, eles haviam perdido a memória sobre o que acontecera. Não lhes ardia mais o coração, pois perderam a intimidade com Jesus vivo. E quando perdemos esta intimidade tudo se torna inútil. Estavam sem esperança, sem meta e nem objetivo, porque Jesus havia desaparecido de suas vidas. Jesus sempre nos alcança, não só quando O buscamos, mas, sobretudo, quando fugimos da vida em comunhão e nos isolamos dos outros. Neste reencontro, Jesus nos envia cheios de vida para contagiar com a paz cada casa, aliviar o sofrimento e anunciar que Deus está próximo e se preocupa conosco.  O Ressuscitado torna possível esta passagem da não-fé à fé no decorrer de uma refeição partilhada.  São três as conversões no caminho de Emaús: a da tristeza em alegria; a da obscuridade à luz e a conversão à vida comunitária: “Voltaram para Jerusalém, onde encontraram os onze reunidos com os outros”. O Ressuscitado se revela na hospitalidade e a partilha do pão torna o Vivente presente e permite a fé nascer. Meditemos as palavras de Agostinho de Hipona: “Acolha o estrangeiro, se queres reconhecer o Salvador. Isto que a dúvida fez perder, a hospitalidade resgatou. O Senhor manifestou a sua presença na partilha do pão”.

(Manos da Terna Solidão/ Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Emaús, 1992, Janet Brooks-Gerloff (1947-2008), Estados Unidos/Alemanha.



quinta-feira, 13 de abril de 2023

O Caminho da Beleza 21 - II Domingo da Páscoa

Peguei da mão do anjo o livrinho e comi-o. Na boca era doce como mel, mas, quando o engoli, meu estômago tornou-se amargo (Ap 10, 10).

II Domingo da Páscoa 

At 2, 42-47              1 Pd 1, 3-9               Jo 20, 19-31

 

ESCUTAR

“Os que haviam se convertido eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2, 42).

“Graças à fé e pelo poder de Deus, vós fostes guardados para a salvação que deve manifestar-se nos últimos tempos” (1 Pd 1, 5).

“Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (Jo 20, 29).

 

MEDITAR

 Quanto a mim, confesso que acho natural entregar-me por inteiro ao afeto de meus amigos, especialmente quando estou cansado dos escândalos do mundo. Neles me repouso sem preocupação alguma. Pois sinto que Deus está lá, que é n'Ele que me lanço com toda a segurança e em toda segurança me repouso... Quando sinto que um homem, abrasado de amor cristão, tornou-se meu amigo fiel, o que lhe confio de meus projetos e de meus pensamentos não é a um homem que confio, mas Àquele em quem ele permanece e pelo qual é o que é.

(Santo Agostinho)

 

ORAR

      Na primeira comunidade não existia discriminação econômica e a prática da partilha e da solidariedade substituía uma lógica patrimonial. Mas existiram sombras nesta comunidade. Ananias e Safira venderam a sua propriedade, guardaram para si parte do dinheiro e o resto depuseram aos pés dos apóstolos. Foram réus porque mentiram ao Espírito Santo e caíram mortos aos pés de Pedro: “Não mentiste aos homens, mas a Deus”. O evangelista apresenta uma comunidade em crise de medo. Tomé é o gêmeo de Jesus porque é o único discípulo disposto a dar a sua vida por Ele. A diferença entre Tomé e Pedro é que o gêmeo compreendeu que Jesus não pede que se morra por Ele, mas com Ele. Não somos chamados, como heróis, a dar a vida por Jesus, mas dar a vida pelos outros como foi o seu testemunho de amor. A leitura equivocada dos evangelhos converteu Tomé em um incrédulo. Jesus não lhe aponta um dedo ameaçador, porque um dedo ameaçador não salva ninguém e nem é um argumento convincente. A grande dificuldade de acreditar não vem da invisibilidade do Ressuscitado, mas da visibilidade dos cristãos que se mostram pouco acolhedores e misericordiosos. Tomé não nega a ressurreição de Jesus, mas revela uma atitude quase desesperada de crer nela e faz a mais elevada profissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus!”.  Apesar disto tudo, Jesus não o propõe como modelo de fé. Para Jesus, o verdadeiro fundamento da fé não são as visões e aparições nem as experiências extraordinárias, mas o simples serviço prestado por amor. A comunidade cristã deve ser fiel ao anúncio e ao testemunho do Evangelho; fiel ao amor fraterno expresso no serviço aos mais necessitados e fiel à partilha eucarística, seu coração e élan vitais. Meditemos um provérbio indiano: “Quando batemos palmas conhecemos o som de duas mãos juntas. Mas qual é o som de uma única mão?”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

S. Título, 2015, Nedim Chaabene (1968-), Flickr/CC BY, Tunísia/França.




 

 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

O Caminho da Beleza 20 - Páscoa: Ressurreição do Senhor

Peguei da mão do anjo o livrinho e comi-o. Na boca era doce como mel, mas, quando o engoli, meu estômago tornou-se amargo (Ap 10, 10).

Páscoa: Ressurreição do Senhor   

At 10, 34.37-43                 Cl 3, 1-4                   Jo 20, 1-9

 

ESCUTAR

“Ele andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio, porque Deus estava com ele” (At 10, 38).

Vós morrestes e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus (Cl 3 3).

Entrou também o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo. Ele viu e acreditou.

 

MEDITAR

Os problemas, as preocupações de todos os dias nos compelem a nos curvar sobre nós mesmos, na tristeza, na amargura... e aí está a morte. Não procuramos aí Aquele que está vivo!

(Papa Francisco)

A grande tragédia da vida não é que o homem pereça, mas que ele cesse de amar.

(Somerset Maugham)

 

ORAR

    Este domingo da Ressurreição é um convite para rompermos os limites dos nossos grupos, cenáculos, movimentos, para que nos misturemos às pessoas comuns, unamos nossas vozes com os anônimos e com os desafinados. É sabermos viver como um mortal comum, mas na liberdade do Ressuscitado. Hoje, basta de polêmicas e excomunhão; de intolerâncias e discriminações; de rasuras e miopias. Hoje, aconteceu algo novo e devemos disponibilizar esta novidade para todos. Deixemos, por um instante apenas, de sermos estorvos, obstáculos e impedimentos. Removamos a pesada pedra do nosso coração e deixemos o sol entrar na caverna obscura em que tramamos nossas dissimulações cotidianas. Hoje, devemos anunciar e não doutrinar; devemos testemunhar e não inventar moralismos que impedem o contágio da alegria e da luz. Hoje, devemos ser capazes de firmar um compromisso de fraternidade e de paz. Neste domingo, é preciso não trapacear com a fé, não blefar com a esperança e, muito menos, enganar e mentir sobre o amor. O Ressuscitado oferece a todos as possibilidades de uma vida verdadeira ao aniquilar as mentiras em que chafurdamos nossa existência: proclamamos religião e pensamos em dinheiro; dizemos igreja e digladiamos com unhas e dentes por carreiras bem sucedidas; anunciamos serviço e buscamos privilégios; arrotamos moralidades e somos doutores em escapatórias e evasões sutis. Hoje, é preciso resgatar o pudor perdido e deixarmos de sequestrar o coração por interesses espúrios e sem escrúpulos. Hoje, o Cristo ressuscitou nu, transfigurado em amor e luz: “Pedro viu as faixas de linho deitadas no chão e o pano que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não posto com as faixas, mas enrolado num lugar à parte”. Hoje, somos chamados a nos colocar em movimento, a ser companheiros de aventura para criar novos mundos, para gerar novos homens e mulheres e não continuarmos a ser os guardiões imóveis e estéreis de túmulos vazios; de arquivos cheios de pó, de códigos bolorentos e de pilhas de papéis mofados. Não podemos buscar o Ressuscitado onde Ele não está: nas batalhas, nas guerras, nas corrupções, nos ritos sonolentos ou estridentes, nas litanias vazias e nas liturgias mumificadas. O Cristo não está entre os mortos ainda que caminhem, se ajoelhem e deem esmolas poucas do muito que lhes sobra. Neste domingo, ao menos uma vez ao ano, devemos abrir nossos ouvidos para escutar o falar da vida, da paz, do perdão mais forte do que a vingança, do amor que derrota a indiferença e da luz que coloca em crise as tramas das trevas. Hoje, o poeta é enfático: “Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração” (Drummond). Hoje, o desvario das mulheres só existe para os que desejam que o Cristo permaneça no sepulcro para legitimar a resignação de viver encerrados em seus medos. Hoje, agora e sempre, devemos gravar com um grito em nossos corpos a estupefação desafiadora: “Por que procurais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui, ressuscitou” (Lc 24, 5).

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Anastasis, 2003, Arcabas (Jean-Marie Pirot) (1926-), óleo sobre tela, ouro fino 23 quilates, 1,62 m x 1,35 m, Saint-Pierre-de-Chartreuse, França.