quinta-feira, 24 de junho de 2021

O Caminho da Beleza 32 - XIII Domingo do Tempo Comum

Os transbordamentos de amor acontecem sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível (Papa Francisco).

XIII Domingo do Tempo Comum                27.06.2021

Sb 1, 13-15; 2, 23-24                   2 Cor 8, 7.9.13-15             Mc 5, 21-43

 

ESCUTAR

Deus não fez a morte, nem tem prazer com a destruição dos vivos. Ele criou todas as coisas para existirem (Sb 1, 13-140.

Conheceis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo: de rico que era, tornou-se pobre por causa de vós, para que vos torneis ricos por sua pobreza (2 Cor 8, 9).

“Se eu ao menos tocar na roupa dele, ficarei curada” (Mc 5, 28).

 

MEDITAR

Se você tem uma vocação, vá nela! Se você faz viver sua vocação, no que for, a metade de sua vida está resolvida. Se você dribla a vocação, não terá sossego, eu acho. Pode até viver muito bem... Agora, para o que for na vida, se você quer aquilo, faça isso! Se não, metade do teu sentir está desconectada.

(Fernanda Montenegro, 1929-, Brasil)

 

ORAR

       Retornemos a essas duas imagens femininas que são a mulher enferma e a menina falecida que, sem dúvida, encarnam duas imagens de uma mesma realidade e esta realidade está no limite extremo de sua condição. Essas duas imagens femininas encarnam certamente o feminino do chefe da sinagoga Jairo, seu ‘Ishah, desconhecido por ele. O nome Jairo, Iaïre em hebreu, significa “fluxo, escoamento” com uma ideia de “conformidade, tranquilidade”; há a luz nessa palavra, mas as duas letras Yod cintilam de tal forma que parecem ofuscar o homem que não vê a luz por detrás da luz, seja nos diferentes níveis da Escritura divina, oculta na leitura da Peshat, seja na lei. Jairo não sabe nutrir seus discípulos que, tendo fome, vagam sonâmbulos sobre esse rio tranquilo onde vão procurar alimento em outro lugar; ele não desperta absolutamente para o novo nascimento a que todo Homem é convidado, para a supressão da esterilidade de todos os patriarcas. “Ai de vós, doutores da lei, porque ficastes com a chave do saber; vós mesmos não entrastes ali e impedistes de entrar os que queriam” (Lc 11, 52). Jairo personifica bem os responsáveis pelo ensinamento divino qualquer que seja a tradição à qual pertencem, professores que só podem trair uma vez que não vivem o que ensinam. É uma lei ontológica traduzida em hebreu pelo verbo Darash, que significa “procurar, escrutinar”, mas também “exigir”. Esse estudo das Escrituras santas exige que o estudioso viva o que ele descobre, então as Escrituras levantarão o véu. Mas se não obedece a esta lei, seu estudo permanece mental sem descer ao coração, o texto que é Verbo divino se volta contra o professor, não para puni-lo, mas para despertá-lo... A criança que Jairo continha, tendo em conta a dimensão de adulto espiritual a que era convidado a se tornar, esta criança do mundo morre. E esta criança morre porque a Semente divina na mulher não brotou. Mas a Semente, sendo divina, não pode morrer, assim o Cristo, que é nela a realização, o fruto, para a humanidade inteira, apresenta-se com a autoridade que lhe dá sua própria morte e ressurreição para impor a vida. “Talitha qoumi! Menina, levanta-te!”, disse à criança, empregando ali esse maravilhoso imperativo do verbo Qom, cuja primeira letra é o cordão umbilical que liga a terra ao céu, o Homem ao seu Senhor, numa gestação grandiosa. A gestação se faz logo e a “menina”, Talitha, “pequeno cordeiro”, se levanta... “Dai-lhe de comer!”, disse Jesus. Jesus desceu às profundezas da ’Ishah-’Adamah de Jairo; ele encontrou o demônio deste homem, o do conformismo, o do medo – medo do julgamento do coletivo das autoridades religiosas, do qual não ousa se retirar; medo de morrer para nascer à verdadeira vida divina; em uma palavra demônio da traição  que desvia o curso do sangue para o exterior e não lhe permite mais entrar na dinâmica da tríade água-sangue-Espírito, o sangue passando para o leite que faz crescer o Espírito, ou para o vinho que dá a embriaguez divina. “Vinde, comprai e comei, vinde, comprai vinho e leite sem dinheiro e sem pagar nada!... Escutai-me e comereis o que é bom e vossa alma se deleitará com iguarias suculentas” (Is 55, 1-2).

(Annick de Souzenelle, 1922-, França)

 

CONTEMPLAR

Aprendendo a nadar, 2018, Alicja Brodowicz, Monovisions Photography Awards 2018, Polônia.




quinta-feira, 17 de junho de 2021

O Caminho da Beleza 31 - XII Domingo do Tempo Comum

Os transbordamentos de amor acontecem sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível (Papa Francisco).

XII Domingo do Tempo Comum                 20.06.2021

Jó 38, 1.8-11                      2 Cor 5, 14-17                    Mc 4, 35-41

 

ESCUTAR

“Até aqui chegarás, e não além; aqui cessa a arrogância de tuas ondas?” (Jó 38, 11).

Se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo (2 Cor 5, 17).

“Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” (Mc 4, 40).

 

MEDITAR

Minha consciência é produto de meu deleite e está ligada ao amor e à beleza que me gera o prazer de produzir. Até que meu corpo pare, ele terá produzido uma vida tão rica, com tamanho acúmulo de beleza vista e sentida, que nada vai destruir o que eu vi e vivi, deixando em mim a certeza de viver eternamente. Sou um homem muito rico, mas minha riqueza não é dinheiro. Meu pai nunca morreu, ele vive em mim e eu sempre vou viver em algum filho, em algum discípulo... A vida não nasce comigo: eu apenas a continuo.

(José Zanine, 1919-2000, Brasil)

 

ORAR

    Para aqueles que os contemplam da areia em que se encontram fixados, os pores do sol sobre o mar apresentam os atrativos de um espetáculo suntuoso. Mas para aqueles que têm o mar como métier, ao cair da noite, ou bem antes dos primeiros clarões da aurora, eles se tingem de nuanças mais obscuras, acompanhados de uma emoção que os outros, sem dúvida, jamais conhecerão. A vereda de centelhas que aponta no horizonte – a indescritível escada de ouro e púrpura que vai por ali, em direção às sombras das quais não se sabe de que tempestade a vir elas estão prenhes – desperta a inquietude e suscita nos corações mais aguerridos um indizível temor.  Ao cair da tarde, ele lhes disse: “Passemos à outra margem”. Tal é seu desejo, tal é a sua decisão. Como é a nossa, uma vez que ele compartilha a sua conosco, uma vez que ele nos convida e nos conduz a bordo para a sua. Nós embarcamos. Sim, somente por essas palavras que ele diz. Passemos então, atravessemos com ele, porque ele o quer e porque está conosco, porque acedeu, essa tarde, ao pedido vagamente inquieto que lhe exprimimos: Fique conosco, pois a noite se aproxima e o dia já finda (Lc 24, 29). Passemos, porque ele está de passagem e porque toda sua história é de passagem e de nos fazer passar com ele. Cristo, nossa Páscoa... Figura viva na popa, o Carpinteiro tateia a madeira, como em sua primeira noite de homem, sob a chuva de anjos e constelações: a barca é irmã da manjedoura tanto como da cruz. Das feições plácidas do que dorme, abstraído em suas próprias profundezas, emana uma espécie de claridade, como de uma tocha. Longe de assinalar defeitos ou renúncias, os sonos de Jesus – como suas fadigas e seus silêncios – são na realidade recolhimentos, preparações, operações profundas... A seus bem-amados, ele dá o sono (Sl 126, 2). O sono é o preâmbulo de suas intervenções mais essenciais no coração de seus amigos, no sentido da fecundidade: é assim que naquele que consente em “passar”, se passa alguma coisa. Em suma, Jesus não dorme apenas: ele dança. Ele abraça o ritmo do mar, ele o esposa sem reticência, enquanto nossa rigidez nos expõe ao perigo. Jesus está em companhia das ondas do mar como estava em companhia das feras selvagens no deserto: umas como as outras são para ele animais familiares. A embarcação não sofrerá nenhuma avaria: sua Presença, sua única Presença está em seu lastro. A tripulação não conhecerá nenhum dissabor: antes mesmo de qualquer manobra, sua Presença, sua única Presença ali é a segurança. Na respeitosa reprovação dos discípulos, ouve-se a antiga queixa de Israel: Levanta-te, por que dormes Senhor? Desperta-te, não rejeites mais! Por que escondes tua face? (Sl 43, 24-25). Respondendo à vigília de seu povo antigo e novo – seu “povo que cai e que procura se levantar” – Jesus desperta (tal é a raiz do verbo deste evangelho evidentemente pascal), ele se eleva em toda sua estatura de homem, como um só homem conosco. Jesus ressuscitado e princípio de nossa própria ressurreição. E se fez uma grande calma. Facta est tranquillitas magna... Mantenhamos em consequência nossa calma, nossa grande Calma que é o próprio Jesus. O termo usado pelo evangelista para designar essa “grande calma” não é sem importância: ele evoca o cintilar do mar disperso sob o sol, que Ésquilo chamava de seu “inumerável sorriso”. Nas intempéries de nossas vidas como nas da história, mantenhamos seriamente nosso Sorriso, nosso grave Sorriso que é o próprio Jesus: sorriso que a morte expande, em lugar de o apagar. Um de nossos poetas tomou inopinadamente algumas palavras miraculosas desse momento onde, com o mar uma vez entrando em graça, Jesus estava cedo na praia (Jo 21, 4) – estado de graça matinal: “Ela encontrou./O Quê? – A Eternidade./É o mar avançando/Com o sol.” (Arthur Rimbaud).

 (François Cassingena-Trévedy, 1959- , França)

 

CONTEMPLAR

Refugiados vietnamitas fugindo do Vietnã, 1979, National Archives, foto tirada do USS Wabasch, Estados Unidos.




 

 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

O Caminho da Beleza 30 - XI Domingo do Tempo Comum

Os transbordamentos de amor acontecem sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível (Papa Francisco).

XI Domingo do Tempo Comum                   13.06.2021

Ez 17, 22-24                       2 Cor 5, 6-10                      Mc 4, 26-34

 

ESCUTAR

Todas as árvores do campo saberão que eu sou o Senhor, que abaixo a árvore alta e elevo a árvore baixa; faço secar a árvore verde e brotar a árvore seca (Ez 17, 24).

Caminhamos na fé e não na visão clara (2 Cor 5, 7).

“O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra. Ele vai dormir e acorda, noite e dia, e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece” (Mc 4, 26-27).

 

MEDITAR

Deus me deu um amor no tempo de madureza,

quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

Deus – ou foi talvez o Diabo – deu-me este amor maduro,

e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

 

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos

e outros acrescento aos que amor já criou.

Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso

e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou...

 

Deus me deu um amor porque o mereci.

De tantos que já tive ou tiveram em mim,

o sumo se espremeu para fazer um vinho

ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo...

 

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso

para arrecadar as alfaias de muitos

amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,

e ao vê-los amorosos e transidos em torno,

o sagrado terror converto em jubilação.

 

Seu grão de angústia amor já me oferece

na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia

os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura

e o mistério que além faz os seres preciosos

à visão extasiada.

 

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,

há que amar diferente. De uma grave paciência

ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia

tenha dilacerado a melhor doação.

Há que amar e calar.

Para fora do tempo arrasto meus despojos

e estou vivo na luz que baixa e me confunde.


(Carlos Drummond de Andrade, 1902-1987, Brasil)

 

ORAR

        Deus quis apenas ser um Semeador. Ele aceitou por si mesmo e por seu Messias os limites e os perigos que regem a condição humana. Ele aceitou que sua palavra fosse submetida às metamorfoses e às limitações pelas quais se batem todas as palavras humanas. Ele aceitou que o pássaro a devore, o sol a mate e a sarça a sufoque. Em outras palavras, ele aceitou que sua palavra fosse também uma palavra humana, plenamente humana. Isso tem consequências das quais nem sempre nos livramos. a) É preciso compreender, por exemplo, que não se tira da Bíblia ou da pregação um fluido mágico que investiria e penetraria fatalmente os que leem ou escutam. Para alguns, a Bíblia será e permanecerá simplesmente uma compilação de história das religiões. Eles lerão sem entender e sem compreender (Mc 4, 10ss). b) É preciso tomar cuidado para não “divinizarmos” esta palavra, não a transformar em propaganda, não fazer dela uma palavra indiscutível e inevitável. Deixemos isso às outras palavras... humanas (cf. debates políticos) que precisamente querem se apresentar como palavras “divinas”, palavras que devem convencer todo mundo; estas têm a necessidade de se acreditar infalíveis. A Palavra de Deus não. Logo, não temos que provar a Palavra de Deus, mas anunciá-la, semeá-la. c) Mas não negligenciemos as semeaduras. Porque é humana, esta palavra (quando das semeaduras) reclama os nossos cuidados. É uma outra maneira de divinizá-la, renunciar a toda preparação ou não colocar ali sua convicção e seu coração. Aquele que acredita que o Espírito sopra quando um verso bíblico é pronunciado comete o mesmo erro daquele que pensa que a fidelidade a esta humanidade da palavra significa monotonia, objetividade e tédio. Mas então uma questão se coloca: se anunciamos uma palavra que se quer humana e nada mais que humana, não estamos reduzidos a nós mesmos? Dito de outro modo: “A semente não depende somente de nós, de nossos esforços, de nossa vigilância, de nossos cuidados, de nossas obras? Se é humana, sem nós ela pode germinar, crescer e amadurecer? Não devemos conduzir uma caça desenfreada aos pássaros (transformando-nos rapidamente em espantalhos como acontece a todos os cristãos que agem assim)? Não devemos achar sombras para as plantas frágeis? Arrancar as sarças e espinhos? Não precisamos trabalhar sem cessar, noite e dia, nas festas, nos domingos, nos dias de trabalho, para que a semente cresça?” É a questão que fatalmente a parábola do Semeador nos coloca. É por isso que, após nos ter mostrado que o Reino de Deus é estranhamente fraco (quando das semeaduras), o Cristo irá nos mostrar nesta nova parábola que o Reino de Deus é estranhamente forte (quando da germinação). Após nos ter mostrado que esse Reino de Deus estava a mercê do homem, ele irá nos mostrar que esse mesmo Reino não depende de nossas obras e que de toda maneira não devemos nos inquietar por ele... Porque há uma frase chave na parábola: v. 27 “ele não compreende nada disso”. É o grande sorriso de Deus sobre a Igreja, que deve ser o nosso: “Nunca compreenderemos nada disso”. Nunca compreenderemos por que tal semente que devia brotar não brotou e aquela outra que não podia brotar deu um fruto maravilhoso. Nunca compreenderemos por que num terreno mau (aos nossos olhos), uma semente mal lançada, mal cultivada, cresceu bem; e porque alhures, a despeito dos sermões sublimes, dos sociólogos experientes, dos psicólogos sutis, dos teólogos fora do comum, tudo morreu. Nunca compreenderemos, pois isso não nos diz respeito. Finalmente esse texto nos mostra o extraordinário poder da semente. Pois ela pode brotar ali onde nada devia crescer. E nós poderemos então descobrir a razão desta fraqueza e deste poder conjuntos. É o Amor de Deus. Pois se é por amor que Deus torna-se fraco, este amor é também o que há de mais forte. O amor é o que pode transformar o Saara numa região fértil. É o que torna possível o impossível. Mas o amor nos permanecerá sempre incompreensível, não saberemos nunca nem de onde vem nem para onde vai. Ora a ciência, ela só se ocupa com o possível. Sociólogos, psicólogos, teólogos, estrategistas estão condenados ao estudo do possível. E eles fazem bem o que têm que fazer. Que eles se lembrem apenas, e possamos nós também lembrar com eles, que quando se trata do amor de Deus: “Nunca compreenderemos nada disso”, “Não sabemos como ele age”.

(Alphonse Maillot, 1920-2003, França)

 

CONTEMPLAR

S. Título, 2015, da série Família, Ivan Makarov, Moscou, Rússia.




quinta-feira, 3 de junho de 2021

O Caminho da Beleza 29 - X Domingo do Tempo Comum

Os transbordamentos de amor acontecem sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível (Papa Francisco).

X Domingo do Tempo Comum                     06.06.2021

Gn 3, 9-15               2 Cor 4, 13-5, 1                 Mc 3, 20-35

 

ESCUTAR

“Ouvi tua voz no jardim e fiquei com medo, porque estava nu; e me escondi” (Gn 3, 10).

Voltamos os nossos olhares para as coisas invisíveis e não para as coisas visíveis. Pois o que é visível é passageiro, mas o que é invisível é eterno (2 Cor 4, 18).

Os parentes de Jesus saíram para agarrá-lo, porque diziam que estava fora de si (Mc 3, 21).

 

MEDITAR

Nossa Igreja, que nesses anos só lutou por sua autoconservação, como se fosse um fim em si mesma, é incapaz de ser portadora da Palavra da Reconciliação e Redenção para a humanidade e para o mundo... Um dia há de chegar em que os homens novamente serão chamados a proferir a palavra Deus, de tal maneira, que o mundo, sob sua influência, se transforme e se renove. Será uma linguagem nova, talvez completamente a-religiosa, mas será uma linguagem libertadora e redentora como a fala de Jesus. Então os homens hão de se espantar com ela, mas mesmo assim serão dominados por seu poder.

(Dietrich Bonhoeffer, 1905-1944, Alemanha).

 

ORAR

       Esse relato, profundamente instigante, segue imediatamente aos primeiros milagres. Ao chamado de Jesus, os paralíticos ousaram se levantar e redescobriram o uso de seus membros. O que se passa então em seu entorno? Mesmo seus relacionamentos mais próximos deixaram bem claro que sentiam esses fatos e gestos como uma ameaça, precisamente pelo fato de colocar as pessoas de pé. Desde os primeiros sinais sérios de eficácia de sua intervenção, eles encontraram uma explicação inteiramente pronta para o mistério de sua pessoa: “ele estava fora de si”, e: “é pelo poder do príncipe dos demônios que ele tem poder sobre os demônios”. Jesus passa ao mesmo tempo por um louco e por um praticante de magia negra... Jesus ignorou a violência e o terror. Pouco lhe importava o que diziam os outros, as autoridades, a sociedade, o Estado. Ele era totalmente estranho a esse gênero de intimidação. Ele pretendia que, após milênios de angústia, seria enfim possível começar a acreditar em Deus. Ele chamava o homem a viver de cabeça erguida, conforme sua vocação profunda, a caminhar pela vida sem se deixar jamais prender por aqueles que tentam lhe impor a ideia que fazem dele: verdadeiro-falso, inteligente-imbecil, sábio-insensato, fracassado, etc., todos os estereótipos pelos quais se oprime, se diminui, se julga exteriormente, e se tenta violentar os sentimentos, a liberdade e a alma do outro. Se há uma atitude da qual devemos dizer que é “demoníaca”, é bem esta: ela não deixa mais lugar a nenhuma convicção verdadeira, a nenhuma ideia original, a nenhuma experiência pessoal. O segredo desta força demoníaca consiste precisamente em que nada a faz tanto tremer do que alguém que começa a dizer “eu” e a tornar-se verdadeiramente um indivíduo. O reino desses “demônios” é o da multidão, o da coletividade, onde cada um mergulha para se subtrair a si mesmo, escapando de suas próprias decisões, livrando-se do peso de suas responsabilidades existenciais. É um sistema que força a se renegar, o de uma programação imposta desde o berço até o túmulo. Ele pode até chegar a afirmar que toda a busca de nossa liberdade é apenas uma contradição em si, uma charlatanice, uma magia da qual se deve fugir a todo custo, em nome de Deus e do diabo: não se há nada a fazer com homens livres, felizes, independentes, efusivos – homens que sejam simplesmente homens! Em virtude desta lógica, considera-se que aquele que fala livremente do homem, com independência e coragem, da maneira como Deus quis, já deve, portanto, pactuar com o diabo... Jesus sonhou com um vínculo familiar novo. Ele esperava suscitar uma família fundada sobre a evidência do amor, da liberdade de espírito, da pureza do sentimento, da alegria forjada pelo respeito ao sagrado, do vínculo tecido por convicções comuns e depurado dos compromissos oriundos da angústia. A única coisa que ele não admitia mais era a letargia do coração, aquela que nos impede de decidir a nossa vida. Nós devemos escolher entre a verdade e a rigidez, entre a liberdade da intuição e a angústia instituída. Escolher? Se ao menos pudéssemos fazê-lo.

(Eugen Drewermann, 1940-, Alemanha)                                                                                                                    

 CONTEMPLAR

 S. Título, 1979, hospital psiquiátrico em San Clemente, Itália, Raymond Depardon (1942-), do livro “Manicomio”, Magnum Photos, França.