segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O Caminho da Beleza 47 - XXVIII Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


XXVIII Domingo do Tempo Comum                     11.10.2020

Is 25, 6-10               Fl 4, 12-14.19-20              Mt 22, 1-14

 

ESCUTAR

O Senhor prepara nesse monte, para todos os povos, um banquete de ricas iguarias, regado com vinho puro, servido de pratos deliciosos e dos mais finos vinhos (Is 25, 6).

Tudo posso naquele que me dá força (Fl 4, 13).

“Vinde para a festa!”

 

MEDITAR

Deus existe mesmo quando não há.

(João Guimarães Rosa, 1908-1967, Brasil)

 

ORAR

            Ponha-te a sonhar. Ponha juntas as narrativas mais fantásticas de todas as fábulas. E depois leia atentamente o “canto do banquete” de Isaías. E descobrirás que tua fantasia é excessivamente prudente, tímida, não suficientemente solta. Recordo que um diretor espiritual meu, no Seminário, me admoestava severamente: – Sua fantasia corre depressa demais... Na realidade, dou-me conta de que, quando se trata de Deus, corremos demasiado pouco com a fantasia, temos medo de nos separarmos da terra, de abandonar nossos estreitos horizontes. Tenho finalmente a impressão de que, quando se trata de seus dons, a razão não nos ajuda em grande coisa a compreender. Somente a fantasia que desapega com efeito do real, do previsível, do possível, consegue não ser excessivamente “herética”, não desviada demais do mundo de Deus. Expliquemo-nos, não é que a imagem oferecida por Isaías represente uma descrição exata, definitiva, uma espécie de fotografia real do banquete preparado por Deus. Parece-me que é bem mais um indício que nos convida a suspeitar de algo... inimaginável. Uma espécie de convite para atribuir a Deus os desígnios mais... inacreditáveis, os propósitos mais... impossíveis. Abandonemo-nos, nós também, ao sonho. Quando abrirmos os olhos nos daremos conta de que a realidade divina está infinitamente muito mais longe do que nossos sonhos mais audazes e loucos... E se um dia Deus nos lançasse na cara que tivemos pensamentos excessivamente modestos, mesquinhos, a respeito dele?... E se a desilusão de Deus não resultasse tanto das coisas muito pequenas relacionadas a nossa vocação, mas da nossa incapacidade para imaginar as coisas mais maravilhosas que ele realiza em nós hoje e que nos prepara para amanhã? O que nos leva ao paraíso não é ter tentado evitar os sonhos feios, mas sim haver sido capazes de ter sonhos impossíveis.

(Alessandro Pronzato, 1932-, Itália)

 

CONTEMPLAR

Caçador da tribo Zo’e, 2009, Pará, Brasil, Sebastião Salgado (1944-), do livro Gênesis, Brasil.




O Caminho da Beleza 46 - XXVII Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


XXVII Domingo do Tempo Comum                       04.10.2020

Is 5, 1-7                    Fl 4, 6-9                   Mt 21, 33-43

 

ESCUTAR

Eu esperava deles frutos de justiça – e eis injustiça; esperava obras de bondade – e eis iniquidade (Is 5, 7).

Ocupai-vos com tudo o que é verdadeiro, respeitável, justo, puro, amável, honroso, tudo o que é virtude ou de qualquer modo mereça louvor (Fl 4, 8).

“Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse de sua herança!” (Mt 21, 38).

 

MEDITAR

Eu me espanto tanto com a palavra das pessoas.

Elas dizem tudo tão claramente:

Isso significa e quer dizer prisão, imbecil,

Isso começa ali e termina ali.

 

Seu juízo me causa medo, sua zombaria!

Elas sabem absolutamente de tudo, do que foi e do que será.

Nenhuma montanha as surpreende mais;

Seu jardim e seus bens se avizinham a Deus.

 

Eu as adverti, me defenderei! Não se aproximem!

Eu escuto tão graciosamente as coisas cantarem.

Vocês as tocam: ei-las rijas e mudas.

Vocês me matam tudo.

 

(Rainer Maria Rilke, 1875-1926, República Theca)

 

ORAR

            É preciso muita arte para preparar esta vinha do Senhor a fim de produzir plenamente o que é justo de se esperar dela. Seria preciso que nossas palavras fossem tão leves quanto o vento que faz tremular as folhas da vinha vivificando-as com sua terna respiração; seria preciso que nosso olhar fosse tão caloroso e tão claro como o sol do meio dia que transmite aos frutos por amadurecer a energia necessária ao seu crescimento e lhes confere o seu perfume ao tempo da colheita; seria preciso que nossas mãos fossem tão ternas como a chuva da manhã e tão refrescantes como o orvalho sobre as folhas. Assim deveríamos nos ajudar mutuamente para que “a vinha do Senhor amadurecesse”. Por que então é tão difícil? Poderíamos pensar que os trabalhadores da vinha fossem egoístas, invejosos e ávidos pelo ganho. Visto do exterior, é bem o reflexo de nosso comportamento, como toda história humana aliás. Mas nossa verdadeira motivação é frequentemente mais complicada. Nós temos, em regra geral, a arte de mascarar nossos desejos de poder e de posse como “responsabilidades”, o que lhes confere uma certa chancela de moral. Jesus, seguramente, nos chama a confiar no outro, como uma harpa com a qual ele saberá fazer vibrar as cordas para retirar delas um canto. Mas há uma forma mortal de prender o outro pela mão. E raramente é por má vontade, mas por puro medo que nós o esmagamos, o tormentamos e o diminuímos. Multiplicamos preceitos e cuidados, como se soubéssemos absolutamente de tudo, mas não fazemos mais do que destruir suas aspirações, suas esperanças e suas expectativas. Por fim, nada de milagre, élan e fantasia. Regulamentando assim a vinha do espírito, acreditamos que temos completamente tudo na mão. Mas o que nós “possuímos” é na realidade a morte. A apropriação das coisas equivale a pilhar a semente divina, em lugar de deixá-la crescer tranquilamente. Resta a esperança de que Jesus não será morto em vão e de que poderemos um dia escapar, de uma maneira ou outra, ao círculo vicioso da destruição e do remorso. O paradoxo consiste sempre em que cada vez que alguém se torna mais livre, mais ele faz despertar no outro os sentimentos de medo. E, todavia, Deus continua a se por ao lado da liberdade e da beleza de nossa alma. Nos últimos dias, ele nos interrogará sobre a maneira pela qual teremos nos ajudado mutuamente a viver, sobre a doçura que teremos partilhado, em outras palavras, ele nos questionará em que medida teremos matado ou acolhido em nós a vida de Jesus.

(Eugen Drewermann, 1940-, Alemanha)

 

CONTEMPLAR

“Ela morreu fugindo”, 2020, jaguatirica do pantanal vítima das chamas, Poconé, Mato Grosso, João Paulo Guimarães, Repórter Brasil, Brasil.




segunda-feira, 21 de setembro de 2020

O Caminho da Beleza 45 - XXVI Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


XXVI Domingo do Tempo Comum             27.09.2020

Ez 18, 25-28                       Fl 2, 1-11                  Mt 21, 28-32

 

ESCUTAR

“Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá” (Ez 18, 28).

Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens (Fl 2, 6-7).

“Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21, 31).

 

MEDITAR

É somente o cínico que alega “falar a verdade” o tempo todo e em todo lugar para todo homem do mesmo modo, mas que, na realidade, nada exibe além de uma imagem sem vida da verdade... Ele veste a auréola do devoto fanático da verdade que não pode abrir nenhuma licença para as fraquezas humanas, mas, de fato, está destruindo a verdade viva entre os homens. Ele ofende a vergonha, ultraja o mistério, infringe a confiança, trai a comunidade em que vive, e ri com arrogância da devastação que ele tem forjado e da fraqueza humana que “não pode suportar a verdade”.

(Dietrich Bonhoeffer, 1906-1944, Alemanha)

 

ORAR

            A vida no Reino não consiste numa inscrição. A entrada no Reino requer um desejo vivo e contínuo, uma aceitação constante e atual da vontade de Deus sobre nós. É um “sim” constantemente repetido. Ao contrário, o que é constante entre nós, na prática, é a infidelidade. Há especialmente uma maneira de escapar da vontade de Deus quando se acredita que a cumpre. É uma falta frequente entre os intelectuais; consiste em confrontar a realidade de alguma coisa com o projeto, o pensamento e a ideia que se tem dela. Podemos pensar profundamente em alguma coisa, apreciá-la e engrandecê-la em espírito, e viver de forma completamente diferente. Uma certa deformação de nossa atitude intelectual faz com que não meçamos a diferença. Não há, entretanto, instalação definitiva no Reino de Deus. Se não procuramos entrar nele a cada instante, saímos dele sem perceber. O Nosso Senhor denuncia ainda uma outra ilusão: a ilusão dos que imaginam que um certo grau de obediência à lei é suficiente. Ora, a entrada no Reino pede alguma coisa de diferente e maior que a justiça dos escribas e fariseus. O Reino é para cada um uma resposta a um chamado pessoal; é uma adesão a uma vontade pessoal de Deus, a uma vontade que varia para cada um de nós e que varia igualmente para nós conforme as circunstâncias. O desígnio de Deus, visto do lado humano, não é uma lei estabelecida de uma vez por todas, mas uma vontade que caminha para um crescimento. O Reino de Deus não é algo pronto sobre o qual se repousa. Temos sempre que seguir a Jesus sem conhecer antecipadamente o caminho. Temos sempre que discernir o que Deus espera agora de nós; é preciso sempre, pois, cultivarmos a inquietude, orientada e serena, mas alerta, de uma vontade viva e voltada para o crescimento. É preciso saber questionar o que fazemos para nos manter sempre em estado de disponibilidade diante de Deus. Esta inquietude calma não é nem agitação nem instabilidade. Ela é real fidelidade. Ela procede do amor. Porque o único meio de conhecer a vontade de Deus sobre si é amá-lo, é preferir a vontade de Deus sobre a sua. Aquele que quer realmente fazer a vontade de Deus, coloca-se em estado de vigilância.

(Yves de Montcheiul, 1900-1944, França)

 

CONTEMPLAR

Silhueta de irmãs na praça de São Pedro no Vaticano, 2018, Andrew Medichini, Associated Press Images, Itália.




terça-feira, 15 de setembro de 2020

O Caminho da Beleza 44 - XXV Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


XXV Domingo do Tempo Comum               20.09.2020

Is 55, 6-9                 Fl 1, 20-24.27                    Mt 20, 1-16

 

ESCUTAR

Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não como os meus caminhos, diz o Senhor (Is 55, 8).

Para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro (Fl 1, 21).

“Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 20 16).

 

MEDITAR

É preciso começar deixando de concentrar a atenção sobre nós mesmos, para nos perguntarmos o que Ele quer de nós. É preciso começar aprendendo a amar, isto é, a desviar o olhar de nós mesmos para olhar para Ele. Se, nessa perspectiva, cessarmos de nos perguntar o que podemos obter, nos deixando simplesmente guiar por Ele, nos perdemos em Cristo, nos deixando levar, esquecendo de nós mesmos, então ficará claro como nossa vida coloca-se novamente nos trilhos, porque superamos a restrição egoística, a qual até então nos levava a nos concentrar sobre nossa pessoa. Quando, por assim dizer, saímos do aperto, só então começamos a perceber a grandiosidade da existência.

(Papa Bento XVI, 1927-, Alemanha)

 

ORAR

            O estilo do patrão da vinha é o de Jesus que não se baseia antes de tudo no mérito ou na estrita justiça, mas no amor gratuito e generoso que dá e faz crédito até aos que não têm direitos para alegá-lo. Contra uma concepção demasiadamente econômica e interessada em nosso empenho no confronto com o próximo, somos convidados a uma livre generosidade similar à do Cristo que se oferece aos pecadores, aos doentes e ignorantes, numa manifestação de amor puro e total. Não se deve esperar aqui nem o reconhecimento nem muito menos o voto como fazem os políticos, e nem a adesão fácil. A frase final da parábola sobre a inversão dos lugares no Reino reflete antes a verdadeira hierarquia segundo o evangelho: os últimos, os pequenos, deverão ser o centro da comunidade cristã. A pastoral do sofrimento e da marginalização deverá ser uma das preocupações eclesiais fundamentais. A perícope de Isaías, na filigrana do texto evangélico, é um canto do mistério do amor de Deus. O Senhor na sua transcendência age segundo desígnios que a nossa pequena lógica contesta. Confiar-se a Deus comporta antes o risco e a espera, a obscuridade e o questionamento. Em seu romance sobre a crise interior de Manzoni, quando da morte da mulher, M. Pomilio escreve: “Nele não se aplacava a raiva de não compreender jamais como Deus não é assim – assim como o balbuciar, de tremor em tremor, dos nossos pobres corações – e porque não se deixa alcançar e nos atrai e nos ilude, e porque os seus decretos nos permanecem obscuros e nos equiparam tão diversamente de como esperávamos, e porque em suma não obstante Deus a dor habita no mundo” (O Natal de 1833, Milão, 1983, p. 39). A meta desta fé é o abandono em Deus no espírito da célebre fórmula que é quase uma rubrica paulina: “Para mim o viver é Cristo e o morrer um ganho”. Redescobrir este afã, esta imersão em Deus, esta pureza da fé, constitui a grande via da mística e da maturidade espiritual.

(Giafranco Ravasi, 1942- , Itália)

 

CONTEMPLAR

O tempo acalma, mas não apaga a dor, 2019, Série Srebrenica, Gincarlo Rupolo (1945-), Itália, Urban Photo Awards.




 

 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O Caminho da Beleza 43 - XIV Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).


XXIV Domingo do Tempo Comum             13.09.2020

Eclo 27, 33-28,9               Rm 14, 7-9              Mt 18, 21-35

 

ESCUTAR

O rancor e a raiva são coisas detestáveis; até o pecador procura dominá-las (Eclo 27, 33).

Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos; se morremos, é para o Senhor que morremos (Rm 14, 8).

“Não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?” (Mt 18, 33).

 

MEDITAR

“Não se ponha o sol sobre o vosso ressentimento” (Ef 24, 6).

(Paulo de Tarso, c. 5-67, Anatólia, Ásia Menor)

 

ORAR

            Há poucas parábolas no evangelho com uma força tão impressionante como a de hoje: não se pode por a ela a menor objeção. E nenhuma como essa coloca diante de nossos olhos de maneira mais drástica as autênticas dimensões da nossa falta de amor, da culpabilidade de nosso desamor: exigimos continuamente a nossos semelhantes que nos paguem o que em nossa opinião nos devem, sem pensar nem por um instante na enorme culpa que Deus nos perdoou totalmente. Com frequência rezamos distraídos as palavras do “Pai Nosso”: “Perdoa nossas ofensas, assim como nós...”, sem pararmos para pensar quão pouco renunciamos à nossa justiça terrestre, mesmo que Deus tenha renunciado à justiça celeste por nós. A leitura da Antiga Aliança já sabe exatamente isto até o menor detalhe: “Não tem compaixão de seu semelhante e pede perdão de seus pecados?”. Para o sábio veterotestamentário isto já é uma impossibilidade que salta à vista. E para demonstrá-lo, remete não apenas a um sentimento humanista geral mas também à aliança de Deus, que era uma oferta de graça em vez de uma remissão da culpa para o povo de Israel: “Recorda a aliança do Senhor e perdoa o erro”. A segunda leitura aprofunda cristologicamente essa fundamentação. Nós, que julgamos sobre o que é justo e injusto, não nos pertencemos em absoluto a nós mesmos. Em toda nossa existência somos já devedores da bondade misericordiosa daquele que nos perdoou e carregou por nós, já desde sempre, a nossa culpa. Quando se diz,  “Nenhum de nós vive para si mesmo”, se quer dizer duas coisas: ninguém deve sua existência a si mesmo, mas sim que cada um de nós se deve, como existente, a Deus; mas se diz ainda mais: deve-se mais profundamente ao que já pagou por sua culpa e que continua sendo ainda o mais profundo devedor. Isso não significa de modo algum que ele seria servo e escravo de um amigo. Ao contrário, o rei deixa ir em liberdade o empregado a quem perdoou a dívida. Se nós nos devemos inteiramente a Cristo, então nos devemos ao amor divino que veio por nós “até o fim” (Jo 13, 1); e dever-se ao amor significa poder e dever amar. E isto é precisamente a suprema liberdade para o homem.

(Hans Urs von Balthasar, 1905-1988, Suíça)

 

CONTEMPLAR

Pupa, 2020, menino de onze anos lutador de Muay Thai, Isaan, Tailândia, Lord K2, Reino Unido, Monovisions Photography Awards.