segunda-feira, 27 de abril de 2020

O Caminho da Beleza 24 - IV Domingo da Páscoa


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

IV Domingo da Páscoa             03.05.2020
At 2, 14.36-41                    1 Pd 2, 20-25                     Jo 10, 1-10


ESCUTAR

Pedro lhes dava testemunho e os exortava, dizendo: “Salvai-vos dessa gente corrompida!” (At 2, 40).

Se suportais com paciência aquilo que sofreis por ter feito o bem, isso vos torna agradáveis diante de Deus (1 Pd 2, 20).

“Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo... Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 9.10).


MEDITAR

A NOITE DISSOLVE OS HOMENS

                                    A Portinari

A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
Sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.

(Carlos Drummond de Andrade, 1902-1987, Brasil)


ORAR

     Jesus quis que encontrássemos acesso à nossa vida nos colocando entre as mãos de Deus, sob o olhar de Deus. Quando ele fala de um porteiro, não se trata de modo algum em seu espírito de uma fronteira exterior a atravessar sob o olhar inquisidor de uma sentinela qualquer. Ele quer dizer que nossa alma deve se tornar tão sensível, cultivar uma tal escuta, que ela saiba discernir quando se pode abrir inteiramente a porta do coração e quando ela não pode, e que esse seria assim o verdadeiro critério das relações humanas, e a fortiori da nossa relação com Deus. Quando a porta do coração se abre sem constrangimento, naturalmente, por ela mesma, como as pétalas de uma flor à luz da aurora, podemos então estar certos de que Deus está ali a abri-la. Quando se tem necessidade de mil desvios, de toda sorte de fugas ilusórias, quando é preciso se reprimir duramente, então podemos estar certos de que nada, absolutamente nada vem de Deus. É uma questão aqui de saber o que queremos no fim das contas. Os déspotas aspiravam reunir, governar e dirigir grandes massas humanas. Eles têm sempre a responsabilidade por tudo. Eles querem continuamente fazer tudo. É exatamente o contrário do que se iniciou com a fé de Israel no Eterno e que se prolonga com a pessoa de Jesus: a responsabilidade repousa sobre cada indivíduo, ele a carrega em seu próprio nome porque este não  existe senão uma vez, uma só e única vez sobre esta terra e Deus deseja que esse nome se exprima através dele. É apenas no sentido deste acompanhamento de cada homem até o lugar onde se sente em sua própria casa que Jesus entende sua vocação de pastor. Trata-se de alcançar e nutrir uma confiança recíproca. Não se pode pretender guiar os homens tomando-os simplesmente pelas mãos, como se tratasse de empurrá-los, seduzi-los, corrigi-los, adestrá-los, endireitá-los. Guiar-se-ão os homens apenas chamando-os à sua voz mais interior, ajudando-os a exprimir um conhecimento há muito tempo experimentado, mesmo que profundamente oculto, a fim de que eles se reconheçam ali. Um tal pastor não vem nunca de longe, ele não é nunca estranho ao ser, mas fala ao que está no mais profundo dele. É por isso que Jesus afirma aqui: “Eu sou a porta”.  Não se conseguirá jamais abordar os homens, senão à maneira de Jesus. Poder-se-á pela força engrossar as multidões, reunir as tropas, recolher impostos e reforçar um aparato administrativo; mas não se poderá realmente, à maneira de Jesus, encontrar os homens a não ser chamando o outro por seu nome, reconhecendo e enunciando por isso que ele é o que vive nele e, ainda demasiado melhor, o que nele aspira a viver.

(Eugen Drewermann, 1940-, Alemanha)


CONTEMPLAR

Daniela Trezzi, 2020, Newflash/Daniela Trezzi (1986-2020), enfermeira de 34 anos, que tirou a própria vida ao saber que contraíra o coronavírus e que infectara outras pessoas. Ela trabalhava na linha de frente do Hospital San Gerardo de Monza, na região da Lombardia, Itália.




terça-feira, 21 de abril de 2020

O Caminho da Beleza 23 - III Domingo da Páscoa


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

III Domingo da Páscoa            26.04.2020
At 2, 14.22-23                    1 Pd 1, 17-21                       Lc 24, 13-35

ESCUTAR

Jesus de Nazaré foi um homem aprovado por Deus, junto de vós, pelos milagres, prodígios e sinais que Deus realizou, por meio dele, entre vós (At 2, 22).

Se invocais como Pai aquele que, sem discriminação, julga a cada um de acordo com as suas obras, vivei então respeitando a Deus durante o tempo de vossa migração neste mundo (1 Pd 1, 17).

“Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32).


MEDITAR

Aquele que é luz quer que jorre luz dos olhos do ser amado. Se eu te amo não posso querer que tenhas os olhos baços. Se eu te amo, quero que haja luz em teus olhos e quero estar junto de ti como contágio de luz, contágio de existência luminosa. Olhar de amor ou amizade é olhar ambicioso pelo outro. Eu te amo, quer dizer, tenho ambições para ti, acima de tudo, não te quero dominar e sufocar-te a liberdade, quero que despertes. Quero que a minha liberdade comungue com a tua e isso não é possível se a tua não existir.

(François Varillon, 1905-1978, França)


ORAR

    A caminhada de Emaús constitui uma espécie de fenomenologia precisa do ato de fé. Só se chega à fé pertencendo realmente à humanidade e situando Jesus nessa humanidade. É então que aparece o Senhor, não tanto como aquele que traz soluções às perguntas propostas, mas como aquele que também faz perguntas, aprende a fazê-las corretamente e vai ao fim da pesquisa que elas inauguram. Não se deve confundir a fé com a religiosidade ou com uma simples crença mais ou menos intelectual na existência de Deus. Não é por termos “necessidade” de Deus para proteger-nos ou para explicar a criação ou a moral, que temos fé. Do mesmo modo, não é por darmos muita importância ao conteúdo da fé, aos diferentes dogmas que ela reúne ou aos sistemas de pensamento que ela consagra em sua formulação, que temos verdadeiramente fé: antes de ser um conteúdo preciso, a fé é inicialmente uma atitude. O conteúdo pode variar em sua expressão ou nos acentos colocados em seus elementos sem com isso afetar a atitude fundamental da fé. Mas qual é então essa atitude? Antes de tudo, parece que é preciso ser plenamente homem para ser plenamente crente. Em outros termos, a fé é a atitude de um homem que vive ao máximo sua conexão com a humanidade. É então que Cristo aparece: não como alguém que tem a solução para essas perguntas, mas antes de tudo como alguém, um homem entre nós,  que também se fez essas mesmas perguntas, que se revoltou igualmente contra essa condição imposta ao homem. Posso dizer que tenho fé em Jesus Cristo quando descubro nele um homem que vive as perguntas da humanidade sobre o sentido de sua condição, mas que para viver essas perguntas traz um sentido especial, pessoal, até misterioso, o de uma absoluta fidelidade a seu Pai e à pobreza e às lacunas da condição humana, indo até à morte. Jesus viveu sua condição de homem de um modo muito particular: abrindo-se totalmente ao outro, aos seus irmãos os homens, e preparando-se assim para abrir-se ao Pai e receber dele o dom da vida. Não se pode dizer que o Cristo traga uma solução às minhas perguntas: ele me deixa totalmente viver em minhas próprias indagações. Jesus traz uma maneira de viver essas perguntas na abertura ao outro, no amor do outro. É esse estilo de vida de Jesus, essa sua maneira de dar um significado à condição humana que nele me agrada, que me leva procurar sua amizade, a viver em sua presença, a participar de seu Espírito e sua comunhão com o Pai. Portanto, a fé é antes de tudo uma atitude de vida com Jesus.

(Thierry Maertens, 1921-, e Jean Frisque, Bélgica)


CONTEMPLAR

Refugiados afegãos esperando para cruzar a fronteira iraniana, 2018, Enayat Asadi (1981-), World Press Photo, 2019 Photo Contest, Irã.




segunda-feira, 13 de abril de 2020

O Caminho da Beleza 22 - II Domingo da Páscoa


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

II Domingo da Páscoa              19.04.2020
At 2, 42-47              1 Pd 1, 3-9               Jo 20, 19-31


ESCUTAR

Viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um (At 2, 44-45).

Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais (1 Pe 1, 8).

“Acreditaste porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (Jo 20, 29).


MEDITAR

A morte rompe as relações, mas Jesus se apresenta aos apóstolos: ele faz explodir a barreira da morte. Ele está livre para comunicar quando quiser. A experiência pascal é a comunicação e a relação restituídas numa liberdade inesperada. Não é a lembrança que comanda, Jesus não é o prisioneiro de nossa memória, Ele é o Vivente; e porque ele é o Vivente, Ele é Promessa até que se realize para todos a comunicação, a ruptura da morte.

(Christian Duquoc, 1926-2008, França)


ORAR

  Eis que Jesus convida Tomé a tocar as chagas da paixão. Qual é o significado desse convite? De um lado, é um apelo à uma relação de intimidade com o Senhor Jesus. Nosso Salvador não se mantém longe de nós. Ele permite, deseja mesmo, que nós o toquemos em espírito. “Eu não vos chamo mais de servos, eu vos chamo amigos” (Jo 15, 15). Ele espera de nós uma aproximação pessoal, espontânea, uma aproximação de confiança e de ternura em que o coração fala ao coração. De outro lado, Jesus quer que nessa aproximação suas chagas, isto é, seu sofrimento e sua morte, não sejam jamais esquecidas. Porque, assim como é preciso recusar uma absorção mórbida aos aspectos sangrentos de sua paixão, é preciso também evitar que um apego unilateral à sua transfiguração e à sua ressurreição nos leve a menosprezar e a diminuir a realidade de sua humanidade santa, humilhada e sofrida de Redentor. O corpo que Jesus nos faz tomar é um corpo partido. O sangue que ele nos faz beber é um sangue derramado. A união perfeita da sexta-feira santa e do dia da Páscoa nos é luminosamente mostrada no episódio que meditamos hoje. Querendo mostrar a Tomé a verdade da ressurreição, Jesus o convida a tocar as feridas pelas quais fomos curados (Is 53, 5). Como nos é possível colocar nossos dedos na marca dos pregos e nossa mão no lado do Salvador? Hoje, Jesus não tem mais mãos visíveis a não ser a dos homens, não tem lado visível a não ser o dos homens. Se acreditamos verdadeiramente que os seres humanos são os membros do corpo do Cristo e que o menor copo d’água dado a uma pessoa sedenta é dado ao próprio Jesus, então nós temos um meio infalível de alcançar o Senhor. Enquanto é difícil elevar nossos corações a Deus e encontrá-lo na oração, é sempre possível descer ao Cristo, isto é, procurá-lo e encontrá-lo bem abaixo de nós mesmos, nos membros mais sofridos e mais desprezados. Nesse momento a realidade da ressurreição se torna tangível a nós, no sentido literal da palavra. Aquele que se inclina sobre seu irmão infeliz ou aviltado, aquele que não hesita em tocar em sua lepra, toca o corpo de seu Senhor. Ele sente que recebe uma experiência vivida da Presença divina.

(Lev Gillet, 1893-1980, França)


CONTEMPLAR

Enfermeira exausta após um turno interminável no hospital, 2020, foto de Francesca Mangiatordi, médica do Departamento de Emergência do Hospital Maggiore de Cremona, Lombardia, Itália.




segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Caminho da Beleza 21 - Páscoa da Ressurreição


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

Páscoa da Ressurreição                      12.04.2020
At 10, 34.37-43                 Cl 3, 1-4                   Jo 20, 1-9


ESCUTAR

Ele andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos (At 10, 38).

Vós morrestes, e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus (Cl 3, 3).

Então entrou também o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo. Ele viu e acreditou (Jo 20, 8).


MEDITAR

Alguns invejam a chance dos discípulos: “Eles o viram e nós, nós não o vimos!”. Mas tê-lo visto foi também uma prova. Era a tentação de retê-lo e de se congelar numa fascinação hipnótica – esquecendo seu próximo e nem vendo mais a aventura e o universo que ele está prestes a criar especialmente para nós. A última lição do Verbo encarnado foi a de retomar os gestos simples e por eles ensinar a não mais vê-lo, mas a ver todas as coisas nele e a reconhecer a sua glória em toda parte que emerge no cotidiano.

(Fabrice Hadjadj, 1971-, França)


ORAR

Toda vez que somos capazes de quebrar nossas rotinas, nossas resignações, nossas complacências, nossas alienações em relação à ordem estabelecida ou à nossa individualidade mesquinha, e que a partir desta ruptura realizamos um ato criador, nas artes, nas ciências, na revolução ou no amor, cada vez que trazemos qualquer coisa de novo à forma humana, o Cristo está vivo, a criação está em nós, por nós e se continua através de nós. A Ressurreição se realiza a cada dia. Cada um dos meus atos libertadores e criadores implica no postulado da Ressurreição. E mais que qualquer outro, o ato revolucionário. Pois, se eu sou um revolucionário, significa que eu creio que a vida tem um sentido e um sentido para todos. Como poderia eu falar de um projeto global para a humanidade, de um sentido a dar à sua história, quando milhares de homens, no passado, foram marginalizados, viveram e morreram, escravos ou soldados, sem que sua vida e sua morte tenham um sentido? Como poderia eu imaginar que outras vidas se sacrificaram para que nasça esta realidade nova, se eu não acreditasse que esta realidade nova os contém todos e os prolonga, que eles vivem e ressuscitam nela? A ressurreição dos mortos não é mais que a do Cristo, não é o feito dos indivíduos. Como a ressurreição do Cristo seria a minha? Se ela interpela hoje cada um de nós, é porque ele não ressuscitou por ele, como indivíduo, mas por nós, em nós, para mostrar o caminho. Ele não nos salva de fora, como se oferece um presente. Mas de dentro: pois é nossa decisão, a nossa fé que nos salva. Cada um dos atos que os relatos evangélicos nos apresentam como um milagre, tem este caráter: o Cristo não aparece como um taumaturgo, agindo de fora para transformar os homens, como se fabrica um objeto. Não; tudo passa pela consciência e pela vontade dos homens. Ele não diz: “Eu te salvei”, como se pesca um náufrago. Ele diz: “Tua fé te salvou”. Lembrando-nos assim de que todo o drama da fé, sem o menor resíduo, se passa em nossa vida humana, que o homem, como diz o Padre Rahner, é o único domínio da teologia, que somos inteiramente responsáveis pela nossa história; que o homem é uma tarefa a realizar; que a sociedade é uma tarefa a realizar, que a Ressurreição é uma tarefa a realizar, e a realizar todos os dias.

(Roger Garaudy, 1913-2012, França)


CONTEMPLAR

O começo, 2017, Blake Latiolais, Monovisions Photography Awards, Estados Unidos.