segunda-feira, 30 de março de 2020

O Caminho da Beleza 20 - Ramos e Paixão do Senhor


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

Ramos e Paixão do Senhor                05.04.2020
Mt 21, 1-11               Is 50, 4-7                 Fl 2, 6-11                  Mt 27, 11-54


ESCUTAR

“Eis que o teu rei vem a ti, manso e montado num jumento, num jumentinho, num potro de jumenta” (Mt 21, 5).

O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás (Is 50, 5).

Ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra (Fl 2, 10).

Jesus deu outra vez um forte grito e entregou o espírito (Mt 27, 50).


MEDITAR

Amar nossa vida como realmente é significa aceitá-la como realmente é: inclusive a morte. Não a ideia da morte, mas também atos que antecipem a morte na entrega e no dom de si mesmo. Cada sacrifício de nosso próprio interesse e de nosso gozo pelo bem do outro ou, simplesmente, pelo “amor”, é uma espécie de morte. Mas também é, ao mesmo tempo, um ato de vida, e uma afirmação da verdade da vida.

(Thomas Merton, 1915-1968, França/Estados Unidos)


ORAR

     Duas procissões entraram em Jerusalém num dia de primavera do ano 30. Era o início da semana da Páscoa, a mais sagrada do ano judaico. Uma foi a procissão de camponeses, a outra um desfile imperial. Vindo do Leste, Jesus montou um jumento e desceu o monte das Oliveiras, saudado por seus seguidores. Do lado oposto da cidade, vindo do Oeste, Pôncio Pilatos, o governador romano da Idumeia, de Judeia e de Samaria, entrou em Jerusalém na frente de uma fileira da cavalaria e de soldados imperiais. O cortejo de Jesus proclamava o reino de Deus; o de Pilatos proclamava o poder do império. Os dois cortejos corporificam o conflito central da semana que levou à crucificação de Jesus. O conflito não era de Jesus contra o judaísmo. Jesus fazia parte do judaísmo, não estava à parte dele. O conflito também não estava relacionado a sacerdotes e sacrifício, como se a paixão primária de Jesus fosse um protesto contra o papel dos mediadores sacerdotais ou contra o sacrifício animal. Pelo contrário, seu protesto era contra um sistema de dominação radicalmente diverso do que seria o já presente e vindouro reino de Deus, o sonho dele. Jesus não era contra o judaísmo nem o judaísmo contra Jesus. Na verdade, a voz de Jesus era uma voz judaica, uma das várias vozes judaicas do século I, falando do que significava a lealdade ao Deus do judaísmo. E, para os cristãos, ele é a voz judaica decisiva. Dois cortejos entraram em Jerusalém naquele dia. A mesma pergunta, a mesma alternativa, está diante dos fiéis hoje. Em que cortejo estamos? Em que procissão queremos estar? Essa é a questão do Domingo de Ramos e da semana que está para ser relatada.

(Marcus J. Borg, 1942-2015, e John Dominic Crossan, 1934-, Estados Unidos)


CONTEMPLAR

O repouso do cordeiro, 1958, Robert Doisneau (1912-1994), França.




segunda-feira, 23 de março de 2020

O Caminho da Beleza 19 - V Domingo da Quaresma


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

V Domingo da Quaresma                    29.03.2020
Ez 37, 12-14                        Rm 8, 8-11              Jo 11, 1-45 
             

ESCUTAR

“Porei em vós o meu espírito, para que vivais, e vos colocarei em vossa terra” (Ez 37, 14).

Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo (Rm 8, 8-11).

“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra viverá” (Jo 11, 25).


MEDITAR

Como o Pai se desvanece no Filho e o Filho no Pai, no abraço do Santo Espírito, Deus nos desvanece. Nós somos chamados a nos desvanecer nele nesta transparência de amor que o fará viver no coração dos homens. Isso é definitivamente o sentido de nossa aventura, que podemos resumir na palavra de Graham Green: “Amar Deus é querer protegê-lo de nós mesmos”.

(Maurice Zundel, 1897-1975, Suíça)


ORAR

      “Lázaro morreu. Alegro-me por vossa causa, por não ter estado lá, para que creiais”. Essa ressurreição é um momento decisivo na vida de Cristo. O problema que se apresenta a Jesus é duplo: “Minha missão não consiste em fazer com que as pessoas vivam ou morram, graças à presença ou não de meu corpo carnal. É a fé em Deus e o amor de uns pelos outros que devem fazê-los viver”. Há então um possível fracasso se o amamos, a ele, em vez de acreditarmos nele, em suas palavras, em sua missão. Parece-me ser esse o primeiro aspecto de seu problema. O segundo problema é correlativo. Jesus é o caminho e a Vida. Ele não pode deixar que se apeguem a sua pessoa, em nome de sua humanidade, o que seria uma espécie de sedução enganadora. Na verdade, ele é homem, tem afeições, é capaz pois de dar amor ao ser humano. Mas ele ama os homens em seu devenir e não numa fixação interpessoal narcísica. Seu amor é evolutivo. Ele pretende ser o dínamo que impulsiona o amor entre os seres humanos, seus irmãos e irmãs em Deus. Se seu ser de carne só servisse como espelho aos que o amam, onde eles reencontrassem sua própria presença amada, sua missão evolucionária de um judaísmo renovado estaria frustrada. Enquanto estamos vivos a vida nos parece sagrada, mas o desejo de salvar a vida de nosso corpo pode nos fazer esquecer que a verdadeira vida não é desse mundo, que para além do condicionamento do espaço-tempo cruzado em nossa vida de seres de carne e emoção, o espírito que anima nossa vida através de nossas mutações, de nossa concepção até a morte, é chamado enquanto é realizado num outro lugar desconhecido. No deserto, o demônio não merecia ser amado, mas os objetos que ele propunha eram sedutores para qualquer homem. Jesus saiu vencedor dessa tentação. Entretanto, Lázaro e suas irmãs eram amáveis com ele. Em seu lar, ele podia descansar como ser humano. Sua missão progride. Ele deve se separar desse último porto seguro que pode representar uma tentação para todo homem de ação. A maneira pela qual Cristo realiza essa separação, mutante para ele e ao mesmo tempo ressuscitante de vida nova para Lázaro, é particularmente heroica e prefigura o desapego supremo de sua paixão. Com a ressurreição de Lázaro, Jesus se torna em definitivo um objeto de escândalo para os judeus. Daí em diante, eles procuram como e quando fazê-lo morrer. Lázaro sai do túmulo. O Evangelho não menciona nenhum olhar, nenhum agradecimento de Lázaro, nem de suas irmãs, para com Jesus. Então Jesus, homem, está pronto para a morte.

(Françoise Dolto, 1908-1988, França)


CONTEMPLAR

Howie e Laurel Borowick, casados por 34 anos, abraçando-se no quarto de sua casa, março 2013, ambos receberam, ao mesmo tempo, diagnóstico de câncer em estágio 4, Chappaqua, Nova Iorque, Nancy Borowick (1985-), Estados Unidos.




terça-feira, 3 de março de 2020

O Caminho da Beleza 18 - IV Domingo da Quaresma


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

IV Domingo da Quaresma                  22.03.2020
1Sm 16, 1.6-7.10-13                     Ef 5, 8-14                 Jo 9, 1-41


ESCUTAR

“Não julgo segundo os critérios do homem: o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração” (1 Sm 16, 7).

Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se bondade, justiça, verdade (Ef 5, 8-9).

“Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos” (Jo 9, 39).


MEDITAR

Estamos a destruir o planeta e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a cegueira da razão.

(José Saramago, 1922-2010, Portugal)


ORAR

     O cego de nascença: o homem no qual jamais nenhuma luz penetrou a obscuridade. Os discípulos veem o problema: “Quem pecou?”; eles só sabiam estabelecer culpabilidades. Jesus, por sua vez, vê o homem. E não o passado desse homem, mas seu futuro, a glória de Deus pronta a se manifestar. Porque Jesus não veio para censurar o mal, mas para aboli-lo. A cura do cego espanta os vizinhos. Interroga-se, discute-se, comenta-se. Conduz-se o homem às autoridades competentes. E os fariseus procedem a instrução do caso. Eles insistem. E o homem, dessa vez, desmascara a má fé deles. Sua resposta não é sem ironia: “Como! Vós que sabeis tudo, não sabeis de onde é este homem que me abriu os olhos?” Remeteu-lhes aos seus próprios argumentos: “Se este homem não viesse de Deus, não poderia fazer nada”. E eis que um segundo milagre se produz: uma segunda vez, na travessia do cego, do proscrito, o Filho do Homem surge. O que era luz do sol diante desta outra luz, que agora o inunda de sua alegria? “Eu creio, Senhor” e se prostra diante dele. “É por um julgamento que eu vim ao mundo: para que os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos”: - Misericórdia sem limites para os cegos de nascença; para os que jamais viram luzir a luz de Deus sobre seus caminhos: os ignorantes, os não crentes honestos de todos os tempos, todos os que não sabem que são amados de Deus. – Julgamento pesado sobre todos que “sabem”, que pretendem saber: homens reduzidos a todas as sutilezas da teologia e da casuística, mas que não têm o amor; homens terrivelmente seguros de sua salvação, que a gratuidade da graça não deslumbra mais. Advertência terrível dada às pessoas religiosas de todos os tempos; porque, por uma estranha reviravolta das coisas, seria possível que os que se dizem crentes fossem cegos e que os cegos se tornassem visionários! Jesus nos é mostrado procurando os que ele tornaria seus, nas encruzilhadas de todos os caminhos; ovelhas abandonadas por maus pastores que só seu amor soube encontrar: a mulher samaritana, o paralítico, o cego de nascença, figuras da graça livre de Deus.

(Suzanne de Diétrich, 1891-1981, França)


CONTEMPLAR

S. Título, c. 2017, autoria desconhecida, Creative Commons CCO.




O Caminho da Beleza 17 - III Domingo da Quaresma


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

III Domingo da Quaresma                 15.03.2020
Ex 17, 3-7                 Rm 5, 1-2.5-8                    Jo 4, 5-42


ESCUTAR

“Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?... O Senhor está no meio de nós ou não?” (Ex 17, 3.7).

A esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5, 5).

“Está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (Jo 4, 23).


MEDITAR

“Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz...
Tenho que ter as mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus...
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Do que eu pensava encontrar”

(Gilberto Gil, 1942-, Brasil)


ORAR

    Jesus anuncia a samaritana uma mudança radical. A época dos templos acabou: “Acredita-me, mulher, é chegada a hora em que nem sobre esse monte nem em Jerusalém adorareis o Pai” (Jo 4, 21; Ap 21, 22). Para indicar aquele que é adorado, Jesus evita o termo religioso “Deus” e usa o mais familiar “Pai”. O culto a Deus precisa de um lugar particular, o templo, ao passo que o culto ao Pai não precisa. Para ser tal, o Pai precisa de filhos que se assemelhem a ele. A semelhança ao seu amor é o único culto que o Pai requer (“de fato, o Pai procura tais adoradores”, Jo 4, 23). Esse culto não precisa de espaços e ritos sagrados, mas é possível em qualquer lugar onde haja a expressão de um amor gratuito semelhante ao do Pai. À mulher, que desejava saber aonde ir para oferecer culto a Deus, Jesus responde que é o Pai quem se doa a ela, oferecendo-lhe a sua própria capacidade de amar. O Senhor não espera presentes dos homens, mas ele próprio se torna dom para a humanidade; não se deixa servir, mas se faz servo dos homens (Jo 13, 1-5). O Pai não pede às pessoas sacrifício: é ele que se fez sacrifício para doar-se a todos (“Quero o amor e não o sacrifício”, Os 6, 6). O único culto que o Pai requer e aceita é o culto em “espírito e verdade” (Jo 4, 23). Culto que não é dirigido a Deus, mas é o prolongamento da força de amor que ele próprio é, e que ele comunica. “Deus é Espírito”, declara Jesus, “e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4, 24). Definindo Deus como “Espírito”, Jesus não o está indicando como entidade abstrata, mas como energia vital. O Espírito é a força criadora do Pai (Gn 1, 2), um dinamismo de vida e de amor que se manifestou na criação do homem e que deseja ainda comunicar-se para levar a criação ao seu cumprimento. Prestar culto ao Pai é colaborar na sua ação criadora, comunicando vida aos homens; por isso, o único culto que o Pai procura não é senão a própria vida vivida em benefício dos outros (Rm 12, 1).

(Alberto Maggi, 1945- , Itália)


CONTEMPLAR

Esperança e crença, 2019, Ratna Khaleesy, 39, muçulmana da Indonésia que trabalha como doméstica em Macau, China, Gonçalo Lobo Pinheiro (1979-), Monovisions Photography Awards, Portugal.




O Caminho da Beleza 16 - II Domingo da Quaresma


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

II Domingo da Quaresma                   08.03.2020
Gn 12, 1-4                2 Tm 1, 8-10                      Mt 17, 1-9


ESCUTAR

“Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem” (Gn 12, 3).

Caríssimo, sofre comigo pelo evangelho, fortificado pelo poder de Deus (2 Tm 1, 8).

“Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!”


MEDITAR

És tu quem circula no ar
És tu quem floresce na terra
És tu quem se estorce no fogo
És tu quem murmura nas águas
Tu és quem respira por mim.

No teu corpo reacende-se a estrela apagada,
A água dos mares circula na tua saliva,
O fogo se aquieta nos teus cabelos.
Quando te abraço estou abraçando a primeira mulher.
Sol e lua,
Origem berço cova.
Teu corpo liga o céu e a terra,
Teu corpo é o estandarte da voluptuosa vitória.
Teu nome reconcilia os dois mundos.

(Murilo Mendes, 1901-1975, Brasil)


ORAR

   Jesus, tomando consigo Pedro e Tiago, subiu a montanha “para orar”, afastado. Não é, acaso, espantoso que Jesus, sempre atento a Deus, experimente ainda a necessidade de criar em si e em torno de si uma zona de silêncio para estar diante de seu “Abba”? Por que esse novo espaço para Deus? A Transfiguração desvenda, num relâmpago e até mesmo na ordem do aparecer, o segredo da iniciativa de Jesus, de sua mobilização absoluta na oração. Ela indica que a atenção do Filho é escuta transformadora, que o tempo do Cristo para o seu Deus não é outro senão o tempo do Pai para seu Filho: o Pai se revela em Jesus que a ele ora. O véu se rasga de repente: o que estava escondido se torna transparência insustentável aos olhos dos discípulos aterrorizados. Aquele a quem o Pai chama seu Filho: “Este é o meu Filho Bem-amado, escutai-o”, ele mesmo é transfigurado: a Palavra de Deus não pode mais ser um simples dito lançado através do espaço e do tempo por um profeta qualquer... Ela tem hoje um corpo de carne e não um revestimento exterior, uma face de homem em quem ela existe pessoalmente. Impossível ao Pai se dizer a si mesmo, sem que Aquele que é a sua Palavra feita carne não estremeça todo em si mesmo a esta dicção, não se ilumine interiormente, ele que é a Luz nascida da Luz. A Transfiguração manifesta Deus que se diz em seu Filho: ela torna “visível” o Pai. O surpreendente é que uma tal transformação seja dada de um modo fugidio, quando ela é, no seu fundo, um dado permanente do Cristo. Como posso eu dizer: “Mostra-nos o Pai”? A oração do Cristo transfigurado no Tabor divulga e sela ao mesmo tempo o único Mistério: o Filho em seu “Abba” e o Pai em sua Palavra não fazem senão um.

(M. Lamy de la Chapelle, 1853-1931, França)


CONTEMPLAR

Em direção ao horizonte, 2007, Emil Gataullin (1972-), Monovisions Photography Awards, Rússia.