terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O Caminho da Beleza 15 - I Domingo da Quaresma


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

I Domingo da Quaresma                     01.03.2020
Gn 2, 7-9; 3, 1-7                Rm 5, 12-19            Mt 4, 1-11


ESCUTAR

Os olhos dos dois se abriram; e, vendo que estavam nus, teceram tangas para si com folhas de figueira (Gn 3, 7).

O dom gratuito concedido através de um só homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos (Rm 5, 15).

O Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo (Mt 4, 1).


MEDITAR

Deus não é encontrado na alma adicionando-se qualquer coisa, mas por um processo de subtração.

 (Mestre Eckhart, 1260-1328, Alemanha)


ORAR

   Quanto menos se é franco a si mesmo, mais se é tentado a se evadir. São sempre as pessoas mais atormentadas interiormente e as mais insatisfeitas consigo mesmas que se queixam de seu entorno, protestando contra as suas condições de vida e reclamando para que se mude um “sistema insuportável”. Mas, em definitivo, suas queixas não mudam coisa alguma. Aquele que quer verdadeiramente transformar o mundo deve começar por si mesmo e procurar a justiça em seu próprio coração, em lugar de pretender isso constrangendo os outros (ver Mt 7, 3-5). Somente aquele que colocar um pouco de ordem em si encontrará as palavras justas para fazer nascer o bem. Por isso, é preciso aceitar sua solidão. Só ela permite o se confrontar a si mesmo sem desvios. Para descobrir a verdade de nossa existência, é preciso fazer calar as vozes alheias. O importante não são nem os pensamentos, nem os conselhos nem as felicitações nem as reprovações dos outros, mas o que se passa no fundo de nós. Assim Jesus segue para o deserto antes do início de sua ação pública. Ele respondia à uma lei espiritual: quem ainda não se encontrou a si mesmo perante Deus projetará sobre os outros suas angústias e seus conflitos mal resolvidos, porém não os ajudará. Quando ele for lhes falar de Deus, ele o fará à maneira de um espelho deformante. Quem não faz o recuo necessário em relação aos seus desejos não pode ser verdadeiro. O deserto no qual é preciso se retirar não está, portanto, de início situado no espaço, como aquele que atravessou Israel ou aquele em que se retiravam os essênios para a espera da vinda de Deus; ele é da ordem da interioridade. Ele chama ao amadurecimento e à verdade interiores. Só aquele que é confrontado em si mesmo pode ter a coragem da verdade. “Coragem”? Atenção à palavra! Se o evangelista insiste explicitamente sobre o fato de que é o “Espírito” que conduz Jesus ao deserto, é para sublinhar bem que não se pode por si mesmo escolher o tempo e o lugar de seu retiro. Para Jesus, trata-se de uma necessidade interior. Não se toma a decisão de se ir para o “deserto”, de retornar ao cerne de sua existência: isso vem quando se está maduro; se é “conduzido” a isso. Não se trata, portanto, aqui de uma “resolução corajosa”, mas do abandono sem hesitação à condução divina interior.

(Eugen Drewermann, 1940-, Alemanha)


CONTEMPLAR

Alívio na morte, 2017, Kashi, Varanasi, Índia, Meghan Shirish Iyer, Monovisions Photography Awards, Doha, Qatar.




terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O Caminho da Beleza 14 - VII Domingo do Tempo Comum


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

VII Domingo do Tempo Comum                 23.02.2020
Lv 19, 1-2.17-18                 1 Cor 3, 16-23        Mt 5, 38-48


ESCUTAR

Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor! (Lv 19, 18).

Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós? (1 Cor 3, 16).

“Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!” (Mt 5, 44).


MEDITAR

Toda religião acolhe e rejeita, ou seja, a religião bendiz e maldiz, defende e ataca, perdoa e condena, e assim sucessivamente. Pois bem, uma das coisas mais notáveis que encontramos nos evangelhos é que Jesus acolheu aqueles que a religião rejeitava, abençoou aqueles que a religião amaldiçoava, defendeu aos que a religião atacava, perdoou aos que a religião condenava.

(José Maria Castillo, 1929-, Espanha)


ORAR

   Como o amor de Deus se derrama em plenitude, assim o discípulo deve tender a uma lógica “não econômica” e “irracional” do amor, superando toda reserva e barreira. Este imperativo evangélico é exemplificado pela oração aos perseguidores e a saudação dirigida aos adversários.  O amor pelos inimigos flui da paternidade universal de Deus e se deve concretizar no cotidiano e no ordinário da vida e do comportamento. Trata-se, portanto, não de um ato de filantropia genérica, mas de amor teológico que nasce da fé cristã e que a realiza. A constante reproposição da moral do perdão, da não-violência, da paz deve ser específica do anúncio cristão. É triste ver o rancor, a aspereza, a mesquinhez burguesa, a rispidez polêmica, a incapacidade ao diálogo, o espírito “partidário” e de bom-mocismo de muitos cristãos. O amor deve incarnar-se em decisão cotidiana e diária. É feito de saudações, de orações para os outros, de mínimos gestos, de oferecer copos d’água, de doações, de cuidados, de tolerância. A abertura do coração também significa uma certa abstenção de si mesmo, da própria defesa, do próprio orgulho e uma tensão constante em relação à substância das coisas. No Diário, em 24.12.1838, Kierkegaard anotava: “Faz, ó Senhor, que os nossos discursos não sejam como as flores que hoje estão no campo e amanhã são lançadas no forno: mesmo que seu esplendor fosse tão grande como o de Salomão”. A perfeição cristã não se alcança com atos de culto, com palavras solenes de juízo, com rigorismos ascéticos. Alcança-se com o amor contínuo e total. A educação ao amor deve se realizar já nas crianças, alimentada nas tensões juvenis, aprofundada na vida familiar e exaltada na experiência eclesial. “O Cristianismo não é uma forma de autorealização. Jesus não era Narciso. O Evangelho pressupõe que eu renuncie a mim mesmo, que o meu coração não se dobre sobre si mesmo e que eu aceite a possibilidade derivada da minha nova orientação a qualquer coisa fora de mim. O Evangelho não é concêntrico, mas excêntrico” (H. Cox, O retorno ao Oriente, Brescia, 1978, p. 97).

(Gianfranco Ravasi, 1942-, Itália)


CONTEMPLAR

Velha briga, 2016, Olimpíadas do Rio, luta de judô entre israelense e egípcio, Markus Schreiber, Associated Press, Bonn, Alemanha.




segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

O Caminho da Beleza 13 - VI Domingo do Tempo Comum


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

VI Domingo do Tempo Comum                   16.02.2020
Eclo 15, 16-21                    1 Cor 2, 6-10                      Mt 5, 17-37


ESCUTAR

Diante do homem estão a vida e a morte, o bem e o mal; ele receberá aquilo que preferir (Eclo 15, 18).

“O que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos jamais viram, nem os ouvidos ouviram, nem coração algum jamais pressentiu” (1 Cor 2, 9).

“Seja o vosso ‘sim’ sim e o vosso ‘não’ não” (Mt 5, 37).


MEDITAR

A vida tem sentido somente na luta. O triunfo ou o fracasso estão nas mãos de Deus. Então, celebremos a luta.

(Provérbio Swahili, África Oriental)


ORAR

       No começo do evangelho, Jesus aponta que não veio abolir a lei dada por Deus na Antiga Aliança, mas dar-lhe plenitude: cumpri-la em seu sentido original, tal como Deus quer. E isso até no mínimo detalhe, isto é, no sentido mais íntimo que Deus lhe deu. Este sentido foi indicado no Sinai: “santificai-vos e sede santos, porque eu sou santo (Lv 11, 44). Jesus o reitera no sermão da montanha: “Sede bons em tudo, como vosso Pai do céu é bom” (Mt 5, 48). Tal é o sentido dos mandamentos: quem quiser a aliança com Deus deve lhe corresponder em sua atitude e em seus sentimentos; isto é o que os mandamentos pretendem. E Jesus nos mostrará que este cumprimento da lei é possível: ele viverá, diante de nós, durante sua vida, o sentido último da lei, até que “tudo (o que se profetizou) se cumpra”, até a cruz e ressurreição. Nada impossível nos é pedido, a primeira leitura o diz literalmente: “Se queres, guardarás seus mandamentos”. “Cumprir a vontade de Deus” não é senão “fidelidade”, isto é: nosso desejo de corresponder a sua oferta com gratuidade. “O preceito que eu te envio hoje não é algo que te exceda nem inalcançável... O mandamento está a seu alcance; em teu coração e em tua boca. Cumpre-o” (Dt 30, 11.14). O radicalismo com o qual Jesus entende a lei de Deus conduz ao anseio pelo reino dos céus (Mt 5, 20) ou à sua perda, o inferno, o fogo (Mt 5, 22.29.30). O que segue a Deus encontra e entra em seu reino; quem só busca na lei sua perfeição pessoal o perde e, se persiste em sua atitude, o perde definitivamente. Em suma, se trata de uma decisão definitiva: ou me busco a mim mesmo e a minha própria promoção ou busco a Deus e me ponho inteiramente a seu serviço; isto é, escolho a morte ou a vida: “Diante do homem estão a morte e a vida, ele receberá o que escolher” (primeira leitura).

(Hans Urs Von Balthasar, 1905-1988, Suíça)


CONTEMPLAR

Doutor Martin Luther King Jr. em seu tour pelos Estados Unidos após receber o Prêmio Nobel da Paz, 1964, Baltimore, Maryland, Leonard Freed (1929-2006), Magnum Photos, Estados Unidos.




segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O Caminho da Beleza 12 - V Domingo do Tempo Comum


A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

V Domingo do Tempo Comum                     09.02.2020
Is 58, 7-10               1 Cor 2, 1-5             Mt 5, 13-16


ESCUTAR

“Se acolheres de coração aberto o indigente e prestares todo o socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz e tua vida obscura será como o meio-dia” (Is 58, 10).

Entre vós, não julguei saber coisa alguma, a não ser Jesus Cristo, e este crucificado (1 Cor 2, 2).

“Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 5, 16).


MEDITAR

A vida é igual a uma árvore carregadinha de fruto. Uns colhe um só e podre. Uns passa o tempo inteiro com o fruto na mão, sem coragem de cascá. Outros quer todo dia o mesmo fruto, iguarzinho: mesmo cheiro, mesmo gosto, mesmo tamanho, num tem nem desejo de exprimentá um novo. Eu sou feito menino. Eu quero exprimentá todos que eu possa güentá. Os amargo, os azedo, os doce e os farturento. Eu quero é ficá todo lambuzado da vida. Eu quero ter a corage de cascá todos. Eu prefiro morrê de indigestão do que vivê aguado.

(Depoimento de um caipira do interior de Minas Gerais, Brasil)


ORAR

   Parece-me que o tema da loucura pode unir-se estreitamente com o da luz e, também, com o do sal de que fala Cristo. Estou convencido de que o sal que não perde seu sabor e que, além de dar gosto à mensagem cristã, impede a deterioração, a decomposição, a corrupção da terra, é precisamente o da loucura dos paradoxos evangélicos. E, da mesma maneira, estou convencido de que os cristãos, para serem “luz do mundo”, não devem ter a pretensão de brilhar. Devem esquecer da ilusão de dar a luz aos outros com a própria inteligência. E tentar banir a escuridão e o caos que nos rodeia com uma pitada (abundante) de loucura. O homo sapiens tem produzido desastres notáveis. Chegou a hora que se afaste, posto que nem sequer é capaz de compensar os danos que tem causado. A salvação da humanidade só pode ser alcançada com a aparição do homo demens, do cristianismo que sai da casca da racionalidade, do cálculo, das prudências táticas, dos equilíbrios, da moderação, da meia medida, e empreenda decididamente o caminho do exagero, do excesso, da provocação. O mundo não tem necessidade de beatos de pescoço torcido, nem de intelectuais refinados, bem apresentados e com voz empolada, nem de doutores que prescrevem receitas e pílulas com as doses apropriadas (que fazem bem ao corpo sem trazer danos à alma), mas sim de “loucos de Deus”, capazes de realizar gestos insólitos, surpreendentes por sua fantasia, escandalosos em sua liberdade, que não vacilam em dar socos no estômago para fazer digerir o alimento evangélico mais pesado. Tenho a impressão de que hoje muito do cristianismo está enfermo de rigidez, compostura, equilíbrio, seriedade (que é o oposto de gravidade, sendo a coisa mais falsa e inautêntica desde o ponto de vista evangélico). Talvez tenhamos esquecido de que Cristo não nos disse que devemos ser embalsamadores (múmias que embalsamam outras múmias pode ser o equivalente ao cego que pretende conduzir outro cego...), mas sim sal que queima (“todos vão ser salgados com fogo”, Mc 9, 49). Se não sois como crianças... se não vos converteis em loucos... se não tendes sal em vós mesmos, jamais saboreareis o gozo que invade toda a mensagem do Cristo, e não podereis difundi-la.

(Alessandro Pronzato, 1932-, Itália)


CONTEMPLAR

S. Título, 2015, Pradeep Raja Kannaiah, Índia/Singapura.