terça-feira, 29 de abril de 2025

O Caminho da Beleza 24 - III Domingo da Páscoa

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).

III Domingo da Páscoa           

At 5, 27-32.40-41             Ap 5, 11-14              Jo 21, 1-9

 

ESCUTAR

“Os apóstolos saíram do conselho muito contentes por terem sido considerados dignos de injúrias por causa do nome de Jesus” (At 5, 41).

“O Cordeio imolado é digno de receber o poder, a riqueza, a sabedoria e a força, a honra, a glória e o louvor” (Ap 5, 12).

“Então Jesus disse: ‘Moços, tendes alguma coisa para comer?’” (Jo 21, 5).

 

MEDITAR

A relação com Deus torna possível o impossível.

(Soeur Emmanuelle)

Jesus é chamado de Cordeiro: ele é o Cordeiro que tira o pecado do mundo. Pode-se pensar: mais como um cordeiro, tão frágil, um pequeno cordeiro frágil, como ele, pode tirar tantos pecados e tantas maldades? Pelo Amor. Por sua ternura. Jesus jamais cessou de ser um cordeiro: terno, bom, pleno de amor, próximo dos pequenos, próximo dos pobres.

(Papa Francisco)

 

ORAR

    Neste domingo, diferente do episódio com Tomé que se desenvolveu no interior de uma casa, com as portas fechadas, estamos ao ar livre: encontramos a comunidade eclesial em atitude de missão. Na paisagem familiar do lago Tiberíades, a barca e os pescadores parecem repetir o contexto da primeira chamada três anos antes. Desta vez, no entanto, Jesus não é simplesmente o Mestre, mas o Senhor e a fé pascal nos permite reconhecê-Lo. As ocupações mais ordinárias podem ser veículos para a difusão da mensagem evangélica e o estar junto dos discípulos indica que a missão é sempre comunitária e não um gesto isolado e autônomo. E a luz do Ressuscitado vence a noite e toda a autossuficiência que conduz ao fracasso e à infelicidade. Faltam os peixes porque falta a união com Ele. Não podemos nos esquecer da advertência do Cristo: “Sem mim não podeis fazer nada” (Jo 15, 5). Jesus lhes revela à luz do novo dia o fracasso do seu trabalho noturno: “Moços, tendes alguma coisa para comer?”. A pesca abundante se converte no fruto da generosidade divina e não do trabalho dos homens. É João quem diz a Pedro: “É o Senhor!” e, mais uma vez, é o amor quem vê melhor e chega primeiro. Pedro demora a compreender e na sua impetuosidade se atira nu nas águas, decidido a ser o primeiro a encontrar o Senhor. A sua nudez significa que ele ainda não vestira a veste do discípulo para fazer o que Jesus fez: cingir-se com a toalha e lavar os pés dos outros. Jesus, apesar de ter acendido as brasas e colocado peixes e pão para assar, revela, ao pedir que os discípulos trouxessem mais peixes, que Ele necessita do agir da comunidade. Não tem sentido e nem razão de ser comer com Ele se não nos entregarmos em favor dos outros. A indagação do Ressuscitado a Pedro sobre o seu amor para com Ele desvela que a qualidade do amor é proporcional à responsabilidade do serviço. O evangelista, ao mostrar a unidade profunda entre o ministério e o amor, entre Pedro e João, revela que sem amor o ministério pode se tornar agressivo e ditatorial. João, o discípulo amado, continuará, até o fim dos tempos, íntegro na sua lealdade e velando para que a Igreja de Jesus, apascentada por Pedro, não esmoreça, por omissão ou covardia, no seu amor incondicional aos outros. Peçamos ao Cristo com as palavras emprestadas do poeta Maiakóvski: “Ressuscita-me ainda que mais não seja porque sou poeta e ansiava o futuro. Ressuscita-me lutando contra as misérias do cotidiano, ressuscita-me por isso. Ressuscita-me quero acabar de viver o que me cabe, minha vida, para que não mais existam amores servis. Ressuscita-me para que ninguém mais tenha que sacrificar-se por uma casa, um buraco. Ressuscita-me para que a partir de hoje a família se transforme e o pai seja pelo menos o universo e a mãe seja no mínimo a terra”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Uma estória do peixe, da série “Crescendo na Escuridão”, 2012-2015, Mário Macilau (1984-), Maputo, Moçambique.



quarta-feira, 23 de abril de 2025

O Caminho da Beleza 23 - II Domingo da Páscoa

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).

II Domingo da Páscoa             

At 5, 12-16               Ap 1, 9-13.17-19                Jo 20, 19-31

 

ESCUTAR

Chegavam a transportar para as praças os doentes em camas e macas, a fim de que, quando Pedro passasse, pelo menos a sua sombra tocasse alguns deles (At 5, 15).

“Não tenhas medo. Eu sou o Primeiro e o Último, aquele que vive” (Ap 1, 17-18).

“Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (Jo 20, 29).

 

MEDITAR

Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que uma vida exteriormente correta de quem passa os seus dias sem enfrentar grandes dificuldades.

(Papa Francisco)

Quando pensamos em salvação, pensamos sempre no além, em algo depois da morte. Mas, a salvação começa no aqui e agora da história. E a salvação no aqui e agora se traduz em viver a vida de uma forma que vale a pena.

(Juan Antonio Estrada)

 

ORAR

A aparição do Cristo no livro do Apocalipse não é para a morte, mas para a vida: Ele é o Vivente, a fonte da vida. Ele não está confinado ao passado, mas é o Cristo hoje e sempre: “Estive morto, mas agora estou vivo para sempre e tenho as chaves da morte”. Como disse o Papa Francisco na sua homilia da Vigília Pascal: “Jesus é o ‘hoje’ eterno de Deus”. O Ressuscitado caminha com a Igreja também no meio das trevas e das tempestades as mais violentas. A Igreja antes de ser um lugar de culto, de doutrina, de moral e da própria religião é, essencialmente, o lugar da fé no Cristo ressuscitado. O evangelista revela justamente esse elemento vital para a comunidade eclesial: o crescimento na fé. Não só Tomé, mas também os outros discípulos têm dificuldade para crer. O evangelista concentra em Tomé esta resistência à fé, porque a fé não é fruto de uma fácil exaltação. Toda fé madura é carregada de dúvidas e isso é bom! Toda comunidade eclesial, de todos os lugares e tempos, chega progressivamente, em meio a dúvidas, perplexidades, proscrições, ao grito de fé de Tomé: “Meu Senhor e meu Deus”. Este homem, que duvida e questiona, é o primeiro a confessar a divindade de Jesus. Crescer na fé não significa se submeter a adestramentos catequéticos, mas compreender que ser Católico é estar preparado para dizer que nós não possuímos todas as respostas. O teólogo Walter Kasper disse que a Igreja teria muito mais autoridade se algumas vezes dissesse com mais frequência: “Eu não sei”. A comunidade eclesial deve, prioritariamente, acolher os que buscam, questionam, lutam, se debatem nas incertezas e perseguem, aos tropeções, um raio de luz. É uma busca dolorosa que pode ser mais autêntica que a posse de uma certeza que provoca a acomodação e a esclerose. Na comunidade eclesial, há espaço para os que chegam primeiro, mas, sobretudo, para os retardatários como Tomé. A comunidade eclesial deve manter suas portas escancaradas para todos e nunca mais fechadas para preservar os que se consideram “perfeitos na fé”. A advertência nos é, cotidianamente, lançada: “Crês que Deus existe? Muito bem! Também os demônios creem e tremem de medo” (Tg 2, 19). Meditemos as palavras da teóloga alemã Dorothee Sölle no seu poema Credo: “Eu creio em deus que não criou um mundo imutável, algo incapaz de se modificar, que não governa de acordo com leis que permanecem invioladas (...) eu creio em deus que deseja conflito na vida e quer que nós transformemos o status quo, pelo nosso trabalho, por nossas políticas [e por nossos sonhos]”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Marcha pela Paz, Washington, 1967, Marc Riboud (1923-), França. Foto tirada em frente ao Pentágono numa manifestação contra a guerra do Vietnã, em março de 1967.






quinta-feira, 17 de abril de 2025

O Caminho da Beleza 22 - Domingo da Páscoa: Ressurreição do Senhor

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).

Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor                

At 10, 34.37-43              Cl 3, 1-4                 Jo 20, 1-9                               

 

ESCUTAR

“E Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu Juiz dos vivos e mortos” (At 10, 42).

“Pois vós morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo, em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer em seu triunfo, então vós aparecereis também com ele, revestidos de glória” (Cl 3, 3-4).

“Ele viu e acreditou. De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20, 8-9).

 

MEDITAR

Toda história da salvação poderia ser descrita como um drama de amor, como um imenso Cântico dos cânticos. Porém é menos a noiva que procura o noivo que o Deus fiel que procura seu povo adúltero, que procura a humanidade que se desviou dele; ele a procura para ‘lhe falar ao coração’ e reconduzi-la ao seu primeiro amor. Na Páscoa, as bodas são consumadas e no Ressuscitado é a humanidade inteira e o cosmos que se encontram secretamente recriados e transfigurados: o corpo do Ressuscitado é vida pura e não esta mistura de vida e de morte, esta ‘vida morte’ que chamamos de vida.

(Atenágoras de Constantinopla)

 Se olharmos nossa vida nesta luz, se nós pensarmos que somos chamados pelo Amor a ser o Templo de Deus, o Santuário do Espírito e o Corpo de Jesus, teremos, frente a nós mesmos, uma atitude de respeito que fará de nós o altar, o tabernáculo onde Deus se revela, onde Deus manifesta Sua vida, transfigurando a nossa para que a nossa comunique a Sua.

(Maurice Zundel)

 

ORAR

    Celebramos hoje a alegria pascal, a aleluia de termos sido criados e renovados na inocência, na liberdade e na gratuidade. A Páscoa não trata de uma vida após a morte e nem de finais felizes. Jesus é o SIM de Deus contra os poderes que O mataram. O Ressuscitado se identifica com a totalidade e a densidade da vida verdadeiramente humana. Ao contrário, os mentirosos, os de falso testemunho, os pervertidos, os ávidos pela acumulação do poder e do dinheiro respondem pelas mortes cotidianas e imperceptíveis que corrompem o Espírito e o Sopro da Vida. São os que se contentam com a psicologia do túmulo, com uma visão de Cristo que lhes apraz e se transformam em múmias de museu. Eles se apegam a uma tristeza melosa que se apodera do coração como o mais precioso “elixir do demônio”. (cf. Evangelii Gaudium, 83). Estão arraigados numa teologia que cheira a naftalina e não a fragrância do nardo puro que enche a casa de perfume (Jo 12, 3). Suas vidas ao invés de ser aromas de Cristo (2 Cor 2, 15) são bafos de sacristia. Somos chamados a um agir cristão que coloca os sinais da Ressurreição para abrir caminhos de liberdade e expansão na história dos homens. Caminhos para a dimensão divino/humana construídos pela coragem de lutar contra todas as formas de morte. Ressuscitar é transcender... A Páscoa é o SIM de Deus a Jesus para que nos tornemos Vida no Cristo e deste SIM de Deus ninguém é excluído, pois o Cristo nos revela uma fé que não conhece fronteiras. No interior do túmulo, um Vivo; no interior da Escritura, o Verbo que se encarna, no interior do Pão partido, uma Presença Real e no interior de Deus, um amor palpitante. No interior de cada um de nós, a sabedoria de que Jesus acolhe nossos passos, nossos caminhos, nossos sonhos, nossas escolhas e nossos segredos. E a alegria do Cristo é saber falar a linguagem plural dos homens, permanecer entre nós por ser Espírito e de ser para todos concretamente, o pão de cada dia. É Páscoa todos os dias em que escolhemos viver pela graça do Cristo Vivo, pois a morte foi aniquilada e nossa vida está, para sempre, escondida, com Cristo em Deus. O Ressuscitado, o Deus que em Jesus se tornou homem, guia a nossa existência e deve nos conduzir a criar um mundo progressivamente mais humano, onde a dignidade, a liberdade e a diversidade de toda criatura são sagradas e invioláveis.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Anastasis, 2003, Arcabas (Jean-Marie Pirot) (1926-), óleo sobre tela, ouro fino 23 quilates, 1,62 m x 1,35m, Saint-Pierre-de-Chartreuse, França.




quarta-feira, 9 de abril de 2025

O Caminho da Beleza 21 - Ramos da Paixão do Senhor

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).

Ramos da Paixão do Senhor             

Is 50, 4-7                 Fl 2, 6-11                 Lc 22, 14-23, 26

 

ESCUTAR

O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás (Is 50, 5).

Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o nome que está acima de todo o nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre (Fl 2, 9-10).

Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo pagar impostos a César e afirmando ser ele mesmo Cristo, o rei (Lc 23, 2).

 

MEDITAR

Vivemos em plena cultura da aparência: o contrato do casamento importa mais que o amor, o funeral mais do que o morto, a roupa mais do que o corpo e a missa mais do que Deus.

(Eduardo Galeano)

 

ORAR

Nesta entrada triunfal, revela-se toda a ambiguidade do povo em relação a Jesus. O mesmo povo que O aclama se aliará às autoridades romanas e judaicas exigindo a sua morte na Cruz: “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Jesus sempre quis que os lugares santos não fossem interditos aos pagãos, nem às mulheres e nem aos que eram considerados indignos. Jesus pregava que o Templo fosse um espaço aberto, um espaço de compaixão, de bondade, sem discriminação e oferecido a todos. Esta era a razão da ferrenha oposição dos sacerdotes, dos anciãos e dos fariseus a este “filho de carpinteiro”. Nesta narrativa da Paixão, todos os homens se comportam de uma maneira que contradiz a sua vontade. Ninguém faz e nem diz o que realmente pensa. Pedro não quer renegar o seu Mestre, mas o faz por medo de uma serviçal; Pilatos lava as mãos e pressionado pelo povo acaba sendo um joguete em suas mãos; Judas o trai por trinta dinheiros, mas pelas suas últimas palavras amaria salvá-Lo: “Pequei, entregando à morte um inocente” (Mt 24, 4). O profeta Isaías exclamava: “Ai dos que tomam as trevas por luz e a luz por trevas” (Is 5, 20). O Reino de amor, de justiça e de paz continuará infinitamente frágil e ameaçado enquanto consentirmos em nossos corações neste impulso perverso de dominação sobre os mais fracos. Nós cristãos, mais do que os outros, devemos fazer o máximo para aniquilar a miséria atual e futura da humanidade e nos indagarmos: que tipo de existência individual e coletiva queremos, que não se feche na busca vã de uma “felicidade” reduzida à maximização do prazer, do poder, do dinheiro, do corpo ou do conforto? De onde deriva o fato de que as condições de acesso ao bem-estar tenham se transformado em fins tirânicos? Neste domingo de Ramos, sejamos como o jumentinho e desatados de todos os nós que nos prendem, sobretudo, os do escrúpulo, da ignorância e da superstição, não desperdicemos as nossas vidas, mas façamos delas marcos de fraternidade e gratuidade ainda que, como Jesus, o padecimento nos espere a fim de “completar, a favor de seu corpo que é a Igreja, o que falta aos sofrimentos de Cristo (Cl 1, 24)”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Sem Título, 1993, Chien-Chi Chang (1961-), da coleção de fotos “A Corrente”, feitas num asilo mental, Ilha Formosa, Taiwan.

 


 


quinta-feira, 3 de abril de 2025

O Caminho da Beleza 20 - V Domingo da Quaresma

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).

V Domingo da Quaresma       

Is 43, 16-21             Fl 3, 8-14                 Jo 8, 1-11

 

ESCUTAR

“Eis que farei coisas novas e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis?” (Is 43, 19).

“Uma coisa, porém, eu faço: esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente” (Fl 3, 13).

“Então Jesus lhe disse: Eu também não te condeno. Podes ir e, de agora em diante, não peques mais” (Jo 8,11).

 

MEDITAR

Tudo o que é votado à morte vem terminar na minha vida; tudo o que se torna outono encalha na praia da minha primavera; tudo o que se desfaz em podridão vem nutrir as minhas flores.

(Hans Urs von Balthasar)

 

ORAR

     As leituras de hoje têm um tema em comum: Deus como produtor da novidade. O Senhor é aquele que sempre faz uma coisa nova. E a novidade nunca pode ser separada do risco. Não se dão explicações velhas para os novos desafios: “Não relembreis coisas passadas, não olheis para fatos antigos” e nem existe uma única e segura resposta que seja válida para todos os casos. Para cada desafio existem várias respostas e elas sempre deverão ser dadas por plenitude e nunca por carência. A resposta dada apressadamente e por carência se converterá em fracasso, aumentará a desilusão e a angústia e poderá se transformar num caminho sem volta. O Senhor mostra que o caminho se descobre caminhando; sua revelação só chega quando nos colocamos em movimento nele e não antes. Paulo reafirma esta dinâmica: “esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente” e a novidade é sustentada pela esperança e não por uma entorpecida e restrita acomodação. É inútil parar para termos a certeza de que estávamos caminhando assim como é inútil afirmar certezas para garantir que acreditamos. O Senhor nos faz saber que a fé não se possui, mas que somos possuídos e alcançados por Alguém. O Evangelho revela esta novidade por meio da contraposição entre as exigências implacáveis da Lei e a estratégia de misericórdia traçada por Jesus. Os acusadores negam à mulher a possibilidade de um novo começar e querem, com pedras, não só sepultar o passado desta pecadora, mas ela própria. Cristo, com seu perdão, liquida definitivamente o passado e entrega à mulher um futuro imaculado a ser construído por ela mesma. O castigo dos algozes se tornou estéril, pois a não condenação pelo Cristo reinventa a vida. As frias exigências se gravam sobre a pedra, mas a misericórdia não está escrita sobre nenhuma matéria dura. A nova lei – a do amor – se traça no terreno maleável do coração, sobre a tenra e terna carne da terra. Resta apenas matar a nossa curiosidade de saber o que escrevia Jesus, com o dedo, no chão do Templo. Jesus escrevia a condenação aos escribas e fariseus e continua até hoje escrevendo em silêncio aos moralistas de plantão que se evadem e se esquivam da barbárie do mundo degenerado que construíram: “As prostitutas vos precedem no Reino do meu Pai" (Mt 21, 31).

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

A mulher apanhada em adultério, c. 1805, William Blake (1757-1827), pena e aquarela em grafite sobre papel, 35,6 x 36,8 cm, Museum of Fine Arts, Boston, Estados Unidos.