segunda-feira, 23 de abril de 2012

O Caminho da Beleza 23 - IV Domingo da Páscoa

O Caminho da Beleza 23
Leituras para a travessia da vida


A beleza é a grande necessidade do homem; é a raiz da qual brota o tronco de nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convite à liberdade e arranca do egoísmo” (Bento XVI, Barcelona, 2010).

Quando recebia tuas palavras, eu as devorava; tua palavra era o meu prazer e minha íntima alegria” (Jr 15, 16).

“Não deixe cair a profecia” (D. Hélder Câmara, 1999, dias antes de sua passagem).



IV Domingo da Páscoa                        29.04.2012
At 4, 8-12                1 Jo 3, 1-2                Jo 10, 11-18


ESCUTAR

“Jesus é a pedra que vós, os construtores, desprezastes e que se tornou a pedra angular” (At 4, 11).

“Amados, vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!” (1 Jo 3, 1-2).

“Eu dou a minha vida pelas ovelhas” (Jo 10, 15).


MEDITAR

“Tudo o que é medíocre em nós, pelo instinto de conservação e por meio de todos os tipos de mentiras, tenta nos impedir de reconhecer que o que amamos perpetuamente, do primeiro ao último instante da vida, não é outra coisa que o verdadeiro Deus. Desde que o reconheçamos toda a mediocridade em nós está condenada à morte” (Simone Weil, Intuições pré-cristãs).

“Você tem que provar na sua vida que você é filho de verdade e tem que amar sabe como? Totalmente!” (Madre Belém, Testamento Espiritual).


ORAR

Muitas vezes, nós pastores, obedecemos a lógica do mercenário quando cedemos ao prestígio pessoal, ao êxito, à popularidade; quando camuflamos, pelo paternalismo, o desejo de centralizar o poder; quando, ao invés de servir nos servimos das pessoas e nos relacionamos com elas sob a ótica da utilidade. Não criamos uma comunidade, mas uma corte de bajuladores que repartem entre si os cargos de maior visibilidade na igreja. Jesus se apresenta como o Bom Pastor, mas também como o Cordeiro (Jo 1, 29) e o cordeiro sempre nos invoca a imagem de debilidade mais do que a de força; de vítima mais do que a de guerreiro e conquistador; de modéstia mais do que a de arrogância. O evangelista João reafirma que o Cordeiro de Deus não se afastou, nem discriminou os pecadores e doentes, mas se tornou plenamente solidário com todos, sem exceção. Entre nós existe apenas uma raça que não está comprometida pela ameaça da extinção: a dos lobos e mercenários sem escrúpulos, que transitam livremente entre os rebanhos que estão muitas vezes à mercê deles como “ovelhas sem pastor”. Apascentar significa vigiar, nutrir, ensinar e sustentar. O bom pastor não apascenta a si mesmo, caso contrário será um amor ladrão que toma posse do que pertence a Deus e trai a confiança nele depositada; será ainda um amor feroz que usa da voracidade, da violência e da chantagem afetiva para submeter o outro e negar-lhe o direito à liberdade de amar. A comunidade criada pelo Cristo só a Ele pertence e não está encerrada em nenhuma instituição e nem restrita a uma cultura específica. O Cristo distribui os dons plurais e diversos para que nasçam comunidades fraternas e amorosas espalhadas por estas veredas de Deus e que um dia serão um único rebanho de um só pastor. Temos manipulado nossos jovens e nos servido deles para preencher os ginásios, as praças e os campos de futebol a fim de ostentar, com o poder dos números, a presença massiva em nossas igrejas. No entanto, Pedro alerta: quando aparecer o pastor supremo (1 Pd 5, 4), Ele não nos pedirá contas dos resultados faraônicos obtidos na colheita e no pastoreio, mas nos questionará sobre a paciência amorosa com a qual nos revestimos para semear e pastorear. O terreno do Juízo Final não será o ruidoso espaço das praças e ginásios, mas o pedaço minúsculo do nosso coração. A Igreja de Jesus não está construída sobre preciosos mármores ou cenários monumentais. A Igreja de Jesus está alicerçada sobre “uma pedra desprezada pelos construtores”. Somos herdeiros de Pedro, o pescador e não de Constantino, o imperador. A comunidade cristã se nutre da disponibilidade de amar e de dar a vida uns pelos outros ainda que seja por meio de orações e intercessões. Somos parte deste Corpo Místico do Cristo em que o menor gesto ecoa e faz vibrar a totalidade deste mesmo Corpo. Se as ovelhas não valem a nossa vida, erramos de redil e nos perdemos, clamorosamente, nas estatísticas burocráticas de uma instituição eclesiástica. O mistério pascal se expressa no ato de entregar a vida e no aceitar, se preciso for, a morte. Jesus neste evangelho lança um desafio crucial: realizamos o nosso serviço aos irmãos como funcionários/mercenários ou como pessoas comprometidas com as comunidades que nos foram dadas por Deus? Se vingarmos a nossa presença como mercenários e não como samaritanos, viveremos na angústia de uma consciência infeliz que engana e, então, todos sairão perdendo: o pastor, as ovelhas, mas, sobretudo, a Igreja de Jesus.


CONTEMPLAR

A ovelha reencontrada, Arcabas (Jean-Marie Pirot), 1985, Église de Saint-Hugues-de-Chartreuse, Isère, França.


segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Caminho da Beleza 22 - III Domingo da Páscoa

O Caminho da Beleza 22
Leituras para a travessia da vida


A beleza é a grande necessidade do homem; é a raiz da qual brota o tronco de nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convite à liberdade e arranca do egoísmo” (Bento XVI, Barcelona, 2010).

Quando recebia tuas palavras, eu as devorava; tua palavra era o meu prazer e minha íntima alegria” (Jr 15, 16).



III Domingo de Páscoa                        22.04.2012
At 3, 13-15.17-19               1 Jo 2, 1-5                Lc 24, 35-48



ESCUTAR

“Vós rejeitastes o santo e o justo e pedistes a libertação para um assassino. Vós matastes o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos, e disso nós somos testemunhas” (At 3, 14-15).

“Meus filhinhos, escrevo isto para que não pequeis. No entanto, se alguém pecar, temos junto do Pai um defensor: Jesus Cristo, o justo”(1 Jo 2, 1).

“Então Jesus disse: “Tendes aqui alguma coisa para comer?”. Deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele tomou e comeu diante deles” (Lc 24, 41-43).


MEDITAR

“A religião de Cristo não é a sobremesa após algum pão; pelo contrário, é ou o pão ou nada. As pessoas deveriam ao menos entender e admitir isso antes de se considerarem cristãs” (Dietrich Bonhoeffer).

“O cristianismo prega o valor infinito do que aparenta não ter valor e a inutilidade infinita do que aparenta ser valioso” (Chesterton).


ORAR

            Somente Deus pode inverter a história conduzida pelos homens. Este contraste está no anúncio de Pedro de que o povo rejeitou “o santo e o justo” e pediu a libertação de Barrabás; de que mataram o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos. O mesmo contraste esta na carta de João: temos, infelizmente, a possibilidade de pecar, mas ainda que pequemos teremos o Cristo como nosso defensor diante do Pai. Todas as leituras conduzem ao mesmo argumento: a exigência do arrependimento, a mudança radical de vida, o cumprimento da Palavra, a acolhida da Boa Nova e a certeza do perdão. Jesus conhece o coração dos seus discípulos e sabe que, na realidade, não acreditavam na sua Ressurreição, pois ao ouvirem a saudação de Paz “ficaram assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma”. Uma fé vaga e difusa, mascarada por uma vibração exagerada, não basta. Uma fé deste tipo pode dissimular o que de fato estamos vivendo: “eles não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos”. A fé no Ressuscitado é uma adesão a uma presença viva que pode ser revelada, explicada pelas Escrituras e pela memória das palavras de Jesus (Jo 2, 22). As coisas miraculosas podem atiçar o emocional, conduzir a visões extraordinárias, emitir sons de línguas estranhas, mas isto não quer dizer nada e pode nos iludir. A resposta de Abraão ao rico egoísta, que lhe havia pedido que enviasse o pobre Lázaro aos seus irmãos, é definitiva: “Se não escutam Moisés e nem os profetas, mesmo que um morto ressuscite, não lhe farão caso” (Lc 16, 31). Jesus não complica as coisas, conhece o nosso coração e mente e, por isso, basta que sejamos testemunhas da sua Morte e Ressurreição. Para nos fortalecer nesta empreitada, seremos conduzidos pelo Espírito que descerá sobre nós pela intercessão do próprio Jesus. Conduzido pelo Espírito, o cristão é convidado, pelo Ressuscitado, a escrever no seu dia a dia uma nova história. O Cristo não quer ser temido como um fantasma que assombra, mete medo e paralisa, pois a sua relação conosco sempre foi de amizade, de confidência, de paciência e de amor: “E no amor não há lugar para o temor” (1 Jo 4, 18). Quem teme nunca alcançará um amor perfeito. O amor desaloja do nosso interior o medo do castigo que tanta angústia nos causa. Este amor louco de Deus está sempre presente na comunidade cristã e na vida de cada um de nós. A todo e qualquer momento, podemos contar com este amor fiel e dele arrancar força e esperança. O nosso futuro não está escrito nas estrelas e nem depende da conjunção astral porque ele é construído em cada nova eucaristia como banquete fraterno, mas também como memorial da Morte e Ressurreição do Senhor. Crer significa aprender a ler os acontecimentos da vida como expressão dos passos de Deus, o passageiro misterioso que nos acompanha na travessia, que nos aponta o futuro que jamais será uma cópia ou uma repetição do passado. O Ressuscitado pode ser encontrado desde que queiramos, não desviemos o olhar e sejamos capazes de gestos concretos de compaixão: “Quem vos der de beber um copo d’água em meu nome não perderá a sua recompensa” (Mc 9, 41). Na páscoa cristã, o Ressuscitado, nosso advogado junto ao Pai, e o pecador convertido se cruzam e constituem a comunidade pascal. Uma pequena condição é necessária: que à liberdade da oferta divina corresponda a liberdade da aceitação humana. Meditemos o nosso sim cotidiano ao Ressuscitado nas palavras do teólogo de Lubac: “Todo problema da vida espiritual consiste no liberar o desejo da vida e transformá-lo em conversão radical, em metanóia, sem a qual não se entra absolutamente no Reino”. Deixemo-nos conduzir pelo Espírito que habita em nós como uma comunhão de mistérios, um encantamento de ternuras, que faz os que se amam olharem, não mais um para o outro, mas todos na mesma direção.


CONTEMPLAR

A Ressurreição, ícone russo do século XVI, Russian Museum, São Petersburgo, Rússia.


terça-feira, 10 de abril de 2012

O Caminho da Beleza 21 - II Domingo da Páscoa

O Caminho da Beleza 21
Leituras para a travessia da vida


A beleza é a grande necessidade do homem; é a raiz da qual brota o tronco de nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convite à liberdade e arranca do egoísmo” (Bento XVI, Barcelona, 2010).

Quando recebia tuas palavras, eu as devorava; tua palavra era o meu prazer e minha íntima alegria” (Jr 15, 16).



II Domingo da Páscoa              15.04.2012
At 4, 32-35              1 Jo 5, 1-6                Jo 20, 19-31


ESCUTAR

“Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas vendiam-nas, levavam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos” (At 4, 34-35)

“Todo o que nasceu de Deus vence o mundo. E esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé” (1 Jo 5, 4).

“Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20, 30-31).


MEDITAR

“Se você embarcar no trem errado, não adianta correr pelo corredor na direção oposta” (Dietrich Bonhoeffer).

“A Palavra está ao teu alcance, em teu coração e em tua boca para que a pratiques: mais que próxima, está em nós, entre nós e nasce de nós. É a forma suprema do amor de Deus por nós” (Cardeal Lustiger).


ORAR

O evangelista João escreve o necessário e o sumamente eficaz para o nosso crer. João traça um itinerário para a adesão a Alguém em que podemos confiar e estabelecer uma relação profunda. A fé, para João, é um itinerário a ser perseguido e não um objeto a ser apropriado.  Confiar (e não acreditar) é a melhor expressão para definir a fé. Neste itinerário teremos cansaços, dúvidas, incertezas, obscuridades, mas muitas novidades e surpresas que são como raios de luz. O cristão não “tem fé” como qualquer coisa que se compre em lojas ou butiques religiosas porque os cristãos são homens e mulheres que produzem e amadurecem relações pessoais entre si e porque acreditam em Jesus e com Ele também estabelecem relações pessoais. Deus é um segredo único que devemos descobrir de uma maneira única. A fé cristã implica uma relação pessoal com Deus e devemos estar conscientes de que quando oramos “Pai Nosso” este Deus de todos é, ao mesmo tempo, o “Meu Pai”, o Deus de cada um de nós, e a Ele estamos unidos no nosso mais íntimo mistério que só Ele conhece absolutamente. Jesus é incisivo com Tomé: “Não sejas incrédulo, mas crente!”. O evangelista responde a todas as indagações do “que fazer”: “Crer!” (Jo 6, 28-29). Neste itinerário do crer se resumem todas as bem-aventuranças: “Felizes os que creram” (Jo 20, 29). Para o cristão, crer tem tudo a ver com viver e a fé se une com o amor criando a liturgia da vida cotidiana como uma permanente ação de graças com o Pai, pelo Filho, no Espírito. Somos chamados à comunhão fraterna numa vida de filhos e de irmãos, pois o amor aos outros é o prolongamento do amor de Deus a nós e em nós. A fé pascal não é fruto de uma exaltação religiosa barata, mas uma vitória de Jesus Ressuscitado sobre as dúvidas que paralisaram seus discípulos e podem paralisar os que o seguem. O evangelho de hoje reitera que a assembleia litúrgica é a maior manifestação da comunidade cristã, uma vez que é nela que o Cristo vem, fica no meio de nós, oferece-nos a paz e nos dá o Espírito Santo. Tomé, isolado e ausente da comunidade, não recebeu o Espírito Santo e se colocou à margem da única e essencial missão: remir os pecados, perdoar em nome de Deus e reconciliar todos os homens, filhos de Deus e irmãos entre si. A comunidade fraterna nos faz “ver” o Ressuscitado e receber Dele, a cada novo domingo, a paz necessária para continuar a travessia. Como os apóstolos que tiveram as suas vidas reviradas pelo avesso, também nós, pelo ato de crer, tornamo-nos peregrinos e anunciadores do Reino de Deus e da Vida Eterna. O Ressuscitado irrompe na vida de cada um de nós e se torna mais radiante quando somos capazes de reconhecê-Lo em cada irmão e irmã que encontramos ao largo do caminho. Somente a vida em comunhão nos livra do medo da morte, do arrivismo e do oportunismo político e religioso. Somos convidados a nos libertar da obsessão pelas coisas, da propriedade dos objetos e exorcizar do nosso coração o verbo “ter”. A Páscoa gera a fé e a fé gera o amor. E assim vamos descobrindo este Espírito em nós que revela a dimensão única de “ser” na liberdade da doação de si, que nos traz a paz e nos cumula de ternura e de amor.


CONTEMPLAR

A incredulidade de São Tomé, Matthias Stomer, c. 1620, óleo sobre tela, 125 cm x 99 cm, Museu do Prado, Espanha.






segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Caminho da Beleza 20 - Páscoa da Ressurreição

O Caminho da Beleza 20
Leituras para a travessia da vida


A beleza é a grande necessidade do homem; é a raiz da qual brota o tronco de nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convite à liberdade e arranca do egoísmo” (Bento XVI, Barcelona, 2010).

Quando recebia tuas palavras, eu as devorava; tua palavra era o meu prazer e minha íntima alegria” (Jr 15, 16).



Páscoa da Ressurreição                      08.04.2012
At 10, 34.37-43                 Cl 3, 1-4                   Jo 20, 1-9


ESCUTAR

“Mas Deus o ressuscitou no terceiro dia, concedendo-lhe manifestar-se não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido: a nós, que comemos e bebemos com Jesus, depois que ressuscitou dos mortos” (At 10, 40-41).

“Irmãos, se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres. Pois vós morrestes e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus” (Cl 3, 1-3).

“Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo” (Jo 20, 1).


MEDITAR

“Não é preciso socorrer o próximo para o Cristo, mas pelo Cristo. Que o eu desapareça de tal modo que o Cristo, por intermédio da nossa alma e do nosso corpo, socorra o próximo” (Simone Weil, A gravidade e a graça).

“Outra coisa é sabermos manter esse amor ao Cristo por uma doação completa aos pobres e necessitados. Mesmo que seja pouco o que eles não ousam pedir, nós temos que adivinhar e é essa resposta que Deus pede de nós” (Madre Belém, Testamento Espiritual).


ORAR

            A liturgia deste domingo não apresenta nenhum relato de como foi a ressurreição de Jesus e nem uma cronologia deste evento. O evangelista anuncia o Cristo Morto e Ressuscitado, apela-nos à fé neste anúncio e nos convida a proclamá-lo para todos. O dominicano Timothy Radcliffe escreve que “a história da morte e ressurreição do Cristo não é propriedade absoluta da Igreja, mas tornou-se uma história que oferecemos aos que vão vivê-la da sua maneira e talvez de um modo que não havíamos previsto”. Neste domingo de Páscoa, precisamos perguntar se, no fundo do nosso coração, aproveitamos os quarenta dias da quaresma como o tempo oportuno de assumir o conselho paulino: “Extirpai o fermento velho para serdes massa nova, uma vez que sois ázimos, já que nossa vítima pascal, Cristo, foi imolado”(1 Cor 5, 7). Tantas vezes vivemos, em nossas práticas descomprometidas, a indolência e a passividade de páscoas episódicas e não o êxodo até a terra da vida, da novidade e da luz. A pedra foi retirada do sepulcro como sinal de que a morte fora vencida e Cristo nos abriu totalmente o horizonte do impossível. Satanás foi condenado para sempre a ser o senhor dos medíocres e o príncipe dos resignados. Cervantes colocava nos lábios de Quixote: “A maior loucura é ver o mundo como ele é e não como deveria ser” e Paulo exclama que “a loucura de Deus é mais sábia que os homens” (1 Cor 1, 25). Celebrar a Páscoa não significa explorar a devoção de um sepulcro vazio, mas ler os sinais de que a fé na Ressurreição nasce de uma palavra e do anúncio de que nosso Deus “não é um Deus de mortos, mas de vivos, pois para ele todos vivem”(Lc 20, 38). Celebrar a Páscoa é colocar-se nas veredas do Ressuscitado e se deixar encontrar por Ele que, em cada novo momento, assume um rosto translúcido. Temos que vencer o medo de sair para fora do nosso sepulcro interior, pois o  Cristo nos deixou o sinal de que voltaria para cear conosco: o pano que cobria a sua cabeça estava dobrado ao lado e não amassado junto às faixas que cobriram o seu corpo. Na cultura judaica, quando o senhor deixava o pano dobrado sobre a mesa era o sinal de que ainda voltaria para continuar a refeição. A nossa Páscoa deve ser celebrada no reino da gratuidade e da solidariedade, pois o Ressuscitado nos convida a ser, novamente, principiantes da vida. O Cristo é o Senhor do impossível e se revela no inacreditável: o perdão vence a traição, o abandono, a covardia, a mesquinhez e a esperteza dos cálculos. Deus removeu a pedra que mumificava as nossas esperanças e somos enviados para proclamar que a vida vence a morte em todas as partes em que ela se faz desesperadora: no narcotráfico, nos campos de extermínio, na produção das armas atômicas, mas também nas indigências de nossos hospitais públicos, das nossas escolas e na omissão das nossas igrejas ante a corrupção que condena seus filhos e filhas a uma vida indigna e sub-humana. Somos chamados a ser testemunhas do Ressuscitado e “celebrar a festa não com fermento velho, fermento da maldade e perversidade, mas com ázimos de sinceridade e verdade”(1 Cor 5, 8). Paulo nos conclama a “esperar as coisas celestes” e as realidades celestes aqui na terra são viver com generosidade, com espírito de serviço, numa presença samaritana que dignifique o Cristo que entregou a sua vida por nós. Dom Pierre Claverie, bispo de Oran, na Argélia, dominicano martirizado em 1996, escreveu: “A Igreja realiza a sua vocação e missão quando está presente nas rupturas que crucificam a humanidade na sua carne e na sua unidade, pois somente nestes lugares que se pode entrever a luz da Ressurreição”. A partir de agora, o mundo é a Galileia em que vivem nossos irmãos e irmãs e devemos anunciar-lhes que a humanidade é possível, a esperança que ainda não é pode ser e que a solidariedade e a compaixão nos salvam, pois Cristo, amaldiçoado pelos poderes civis e religiosos, foi condenado, morto, sepultado e ressuscitou dos mortos. Este é o nosso Credo e esta é a fé que nos abre os caminhos da Vida Eterna.


CONTEMPLAR

Ressurreição (parte do políptico “Paixão-Ressurreição”), Arcabas (Jean-Marie Pirot), óleo sobre tela, ouro fino 23 quilates, 2,22 m x 1,35 m, 2003, Saint-Pierre-de-Chartreuse, França.