quarta-feira, 11 de junho de 2025

O Caminho da Beleza 30 - Santíssima Trindade

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).

Santíssima Trindade               

Pv 8, 22-31              Rm 5, 1-5                Jo 16, 12-15

 

ESCUTAR

“Assim fala a sabedoria de Deus: O Senhor me possuiu como primícias de seus caminhos, antes de suas obras mais antigas; desde a eternidade fui constituída, desde o princípio, antes das origens da terra” (Pv 8, 22-23).

A tribulação gera a constância, a constância leva a uma virtude provada, a virtude provada desabrocha em esperança (Rm 5, 3-4).

“Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora. Quando, porém, vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá à plena verdade” (Jo 16, 12-13).

 

MEDITAR

Alguns de nós acreditam que Deus é Todo-Poderoso e que pode fazer tudo, e que Deus é Todo-Sabedoria e sabe como fazer tudo. Mas que Deus é Todo-Amoroso e quer amar tudo, aqui nós nos contemos. E essa ignorância atrapalha a maioria dos amantes de Deus, como eu vejo (...) Deus quer ser pensado como nosso Amante.

(Julian de Norwich)

O amor é o único ímpeto que é suficientemente avassalador para nos forçar a deixar o confortável abrigo da nossa individualidade bem protegida, a pôr de lado a concha inexpugnável da autossuficiência e rastejar nus para a zona do perigo, lá para a frente, para o cadinho em que a individualidade se purifica para aparecer a personalidade.

(Mark Patrick Hederman, OSB)

 

ORAR

       Neste domingo é preciso nos deixar envolver pelo ritmo terno deste dinamismo de amor no qual se concretiza o mistério: 1+1= 3. A reciprocidade entre o Eu do Pai e o Tu do Filho gera o Espírito de liberdade e de amor que nos faz comungar da intimidade entre o Pai e o Filho: “Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará é meu”. A Trindade nos desvela e comunica o ilimitado deste amor gerado, pois “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. A plena revelação da sabedoria de Deus é estar junto aos homens e mulhares no sofrimento e na doação até o fim para que possamos conhecer e enfrentar “as tramas do mundo”, pois a sabedoria penetra tudo como “um reflexo da luz eterna, espelho nítido da atividade de Deus e imagem de sua bondade” (Sb 7, 26). O mundo é a morada da Trindade, pois Deus no mundo e o mundo em Deus são a transfiguração do mundo pelo Espírito. “Tudo o que acontece, acontece em Deus”, como afirmava Mère Belém. Basta a nós sermos dóceis a esta dança trinitária – a pericorese – que nos envolve e nos conduz. Basta deixar que ela abra nossos olhos e coloque nossos corpos em movimento, apontando-nos o caminho a seguir. Abramos o nosso existir aos seus conselhos para que não aconteça de endurecermos a cabeça e o coração, insistindo em caminhar em sentido contrário ao que nos mostra a Trindade (cf. Sl 32). Somos chamados à explosão de Vida que emerge desta comunhão pessoal, trinitária e nupcial, sem gêneros, pois “Deus é Amor”, não é homem nem mulher, e por isso mesmo temos que viver essa dimensão amorosa que é a única que nos salva da loucura e do desalento. Ironia ou não do Transcendente, a Santíssima Trindade, feminina, contém o Pai, o Filho e o Espírito Santo, masculinos. Paulo nos garante que o Espírito intercede em nosso favor, a todo tempo e a todo instante, pois circulando visceralmente nas nossas veias ama e se entrega à sua comunidade eclesial, como os amados clamam em êxtase: “Beija-me com os beijos da sua boca” (Ct 1, 1). Jamais poderemos esquecer que é no silêncio de sua plenitude amorosa e do seu gozo infinito que o Pai, revelado pelo Filho, escuta o Espírito Santo “interceder em nosso favor com gemidos inefáveis” (Rm 8, 26). A dança da Trindade é como o êxtase dos noivos ao se entregarem, em mútua oferenda, para a realização plena de suas núpcias. Neste exato momento, único e intransferível, a vida ordinária se esgota, transformando-se no mistério extraordinário de ser e existir.

(Manos da Terna Solidão/ Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Os Três Dançarinos, 2015, coreografia de Didy Veldmann (1967-), Rambert Dance Company, foto de Stephen Wright (1960-), Wallingford, Inglaterra.




 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

O Caminho da Beleza 29 - Pentecostes

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).

Pentecostes           

At 2, 1-11                  1 Cor 12, 3b-7.12-13                    Jo 20, 19-23

 

ESCUTAR

“Todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua” (At 2, 6).

“A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum” (1 Cor 12, 7).

“E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20, 22).

 

MEDITAR

Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais conta. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que esmaga os vossos ombros e vos faz pender para a Terra, deveis embriagar-vos sem tréguas. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de ternura, à vossa escolha. Mas embriagai-vos. E se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, na solidão baça do vosso quarto, acordais já diminuída ou desaparecida a embriaguez, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, à ave, ao relógio, a Deus, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, a ave, o relógio e Deus vos responderão: “São horas de vos embriagardes! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de ternura, à vossa escolha”.

(Charles Baudelaire)

É isto, o espírito. Esta capacidade de não submeter sua existência, mas de assumi-la no amor para fazer dela uma oferenda luminosa e universal.

(Maurice Zundel)

 

ORAR

     Tentemos deixar fluir, ao menos uma vez na vida, o sopro do Espírito dentro e no meio de nós. Deixemos que sejam varridos das cabeças todos os símbolos do poder: coroas, solidéus, mitras, com todas as máscaras e disfarces que ornam e corrompem as liturgias. Permitamos que o sopro arranque as páginas dos nossos códigos, que leve para o mais longe as sandices dos nossos discursos políticos, sociais e religiosos e assistamos ao fogo se ocupar de queimá-los para que nunca mais pretendam nos submeter. Com certeza, será um ganho para todos nós. Ele não sopra para garantir a ordem, para avalizar decisões que prejudiquem o Bem Comum e nem desempenha a função de juiz em nossos jogos com as regras determinadas por nós e para o nosso sucesso. Façamos, ao menos uma vez, com plena confiança no Espírito da Liberdade, a prova de acolher este mesmo Espírito como elemento perturbador, verdadeira inspiração, desmonte das regras fixadas de antemão e portador de coisas jamais vistas, ouvidas e experimentadas antes. Tenhamos a coragem de sermos habitados pelo vento e pelo fogo. É o Espírito da Verdade que vem a nós e nos produz como homens e mulheres que não temem as travessias plurais da vida. O Ressuscitado abre o futuro, abre a porta e abre a esperança do possível. Pentecostes é a festa de todos os possíveis. O Espírito acende em nós uma paixão e uma nova criação nasce de um colossal incêndio que nos deixa enamorados e nos surpreende com as palavras apaixonadas que por falso pudor nunca nos permitimos, publicamente, dizer. O Espírito – vento e fogo – rompe os limites das alcovas e das salas e brinca, diverte-se e ri da nossa sisudez e pretensa seriedade. Vento e fogo são incontroláveis, imprevisíveis e a nova aliança que trazem nos faz orbitar fora de nós e encontrar os outros conhecidos e desconhecidos num abraço amoroso e livre. Os discípulos foram considerados embriagados, pois novamente despertavam entusiasmados, cheios de Deus, para anunciar, em todas as línguas, as maravilhas do Senhor. Toda a tentativa hipócrita de administrar a ação do Espírito e falar em seu nome será um contrassenso. O Espírito de Jesus se encontra na oração, na solidariedade, no perdão, na palavra comprometida e na misericórdia que superam todas as fórmulas e as frases de conveniência, os conselhos moralizantes e as respostas pré-fabricadas. Jesus nos fala de um pecado contra o Espírito que nunca terá perdão. É a blasfêmia de conceder ao Espírito apenas uma sutil e vigiada fissura ao invés de janelas e portas abertas dos corações. O pecado irreparável é a pretensão de falar da coragem cristã e oferecer ao Espírito um pouco menos da metade de todo o resto que concedemos ao medo e a angústia. O pecado sem perdão é falar de Pentecostes sem nunca nos permitir experimentar e viver até as últimas consequências a sua embriaguez.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Nuvens de Fogo em Pôr-do-Sol, 2013, autor e local desconhecidos.




quarta-feira, 28 de maio de 2025

O Caminho da Beleza 28 - Ascensão do Senhor

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).


Ascensão do Senhor                 

At 1, 1-11                  Ef 1, 17-23               Lc 24, 46-53

 

ESCUTAR

“Recebereis o poder do Espírito Santo, que descerá sobre vós para serdes minhas testemunhas” (At 1, 8).

Irmãos, o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer (Ef 1, 17).

“Eu enviarei sobre vós aquele que meu Pai prometeu (Lc 24, 49).

 

MEDITAR

Senhor Deus, Uno e Trino, comunidade estupenda de amor infinito, ensinai-nos a contemplar-Vos na beleza do universo, onde tudo nos fala de Vós. Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão por cada ser que criastes. Dai-nos a graça de nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe.

(Papa Francisco)

A espiritualidade não pode ser aprendida por uma fuga do mundo, fugindo-se das coisas ou se tornando solitário e afastando-se do mundo. Pelo contrário, nós devemos aprender uma solidão interior onde e com quem estivermos. Nós devemos aprender a penetrar nas coisas e achar Deus lá.

(Mestre Eckhart)

 

ORAR

           Com a ascensão de Jesus começa o tempo da Igreja, um tempo de testemunho público e corajoso que, progressivamente, alcançará todos os homens. A ascensão é a linha divisória entre a história de Jesus e a da comunidade pós-pascal. A comunidade eclesial pode iniciar o seu próprio caminho histórico sem nostalgias e sem fugas apocalípticas graças à força do Espírito prometido pelo Senhor. O banquete eucarístico, convivência íntima, é o lugar por excelência em que os amigos podem estar em comunhão com o Cristo. A Igreja surge como uma comunidade de oração para depois ser apostólica, quando a sua prática passa a ser animada pelo Espírito. A comunidade eclesial tem necessidade do sopro vital que lhe será dado pelo Espírito do Senhor, pois sem Ele não existe vida, nem força de expansão e nem capacidade de testemunho para a Igreja. Jesus se “separa” dos amigos com o sinal da benção e esta é a última imagem que fica: a do Cristo glorioso que abençoa. Os apóstolos saúdam a partida do Senhor não com prantos, mas com alegria ainda que devam afrontar um mundo hostil para levar a paz, o amor e o perdão. Não celebramos uma despedida, mas uma nova maneira de estar presente no mundo, pois a presença definitiva do Ressuscitado entre nós e na história da humanidade está assegurada pelo seu Espírito que conduz a comunidade eclesial até o fim dos tempos, por meio da concretização do amor fraterno, símbolo emblemático dos cristãos e dos homens e mulheres de boa vontade. Somos herdeiros de seu testemunho e neste seguimento devemos reinventá-lo a cada novo momento histórico, como pedia o Papa João XXIII, lendo e compreendendo os “sinais dos tempos”. A celebração da eucaristia anuncia e realiza a proibição de toda estatização da Igreja e de todo o clericalismo na política. A Igreja peregrina não funda a cidade terrena, mas a habita apontando para o futuro. Devemos nos guiar pela prática de Jesus: a sua maneira de acolher os pecadores – porque Deus não faz acepção de pessoas – de elevar os humildes, desnudar os orgulhosos e arrogantes. Devemos lembrar que a conversão proposta por Ele é a mudança radical nas nossas relações com Deus, com o próximo e, sobretudo, com o dinheiro. A novidade dos seus ensinamentos e do seu testemunho lhe valeu, como valerá para nós, a hostilidade dos governantes e do poder religioso, causa da sua condenação e assassinato. O evangelista enfatiza que são “fatos que nos aconteceram” (Lc 1, 1) e não qualquer mistificação maravilhosa inventada e difundida ao bel prazer de qualquer um. Meditemos as palavras de Bento XVI: “Nós devemos estar seguros de que, por mais pesadas e turbulentas as provas que nos esperam, não seremos jamais abandonados a nós mesmos. As mãos do Senhor não nos largarão, pois estas são mãos que nos criaram e que, todo o dia, nos acompanham no itinerário de nossas vidas”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Ascensão, 1958,  Salvador Dali (1904-1989), óleo sobre tela 115 x 123 cm, Coleção Simon Perez, México.




quarta-feira, 21 de maio de 2025

O Caminho da Beleza 27 - VI Domingo da Páscoa

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).


VI Domingo de Páscoa

At 15, 1-2.22-19                 Ap 21, 10-14.22-23                      Jo 14, 23-29                                  

 

ESCUTAR

“Ficamos sabendo que alguns dos nossos causaram perturbações com palavras que transtornaram vosso espírito” (At 15, 24).

“A cidade não precisa de sol nem de lua que a iluminem, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21, 23).

“Não se perturbe nem se intimide o vosso coração” (Jo 14, 27).

 

MEDITAR


Onde falta o desejo de se encontrar com Deus, ali não há crentes e sim pobres caricaturas de pessoas que se dirigem a Deus por medo ou por interesse.

(Simone Weil)

O culto que pretende honrar o Senhor é necessário. Mas se é praticado para assegurar-se o favor de Deus sem se mudar a vida, torna-se uma farsa. O culto em si não tem consistência própria: é apenas a vida que lhe dá consistência.

(Bruno Maggioni)

 

ORAR

     A desgraça dos puristas de todos os tempos é a pretensão de impor cargas opressoras e inúteis. De acrescentar ao jugo libertador do Cristo, um jugo suplementar e opressor feito de bagatelas sufocantes, pois alguns indivíduos sentem um gosto sádico ao exigir sacrifícios absurdos e são refratários às ações inovadoras do Espírito. O livro do Apocalipse nos revela que Deus, por meio do Cordeiro, não reside em edificações, pois Ele é o próprio templo numa Igreja transfigurada. O novo santuário é o corpo ressuscitado de Jesus, o Cristo. Este mesmo Cristo será, ao mesmo tempo, ponto de conjunção da humanidade com Deus e ponto de união da humanidade inteira. A Igreja quando pretende exibir a própria luz e a própria glória, termina, inevitavelmente, obscurecendo a Fonte da luz e vende como esplendor celeste as luzes do êxito e do prestígio humano. A Igreja de Jesus Cristo há de ser fiel à sua dinamicidade que a impede de ser nostálgica; à sua fidelidade que a impede de desviar-se da sua razão de ser e à sua profecia que a faz compreender os sinais dos tempos. A Igreja deve cultivar a tolerância e o diálogo que a livram das enfermidades do poder e a esperança que a faz superar dúvidas e incertezas. A Cidade de Deus não é uma cristandade sociologicamente organizada, mas uma dinâmica do Espírito que age e transforma o mundo por meio de nós. Antes de ser uma estrutura, a Igreja é uma comunidade, fruto do acolhimento do Espírito no coração dos fiéis, pois “somente a recepção acolhedora da Palavra, no Espírito, é formadora da comunidade cristã” (Francisco Catão). Na Igreja, deve prevalecer a fé no Espírito, guia da Igreja, que deve desaparecer para brilhar a luz do Cristo. A fé e o compromisso com Jesus Cristo são um produto da ação do Espírito sobre nós, pois é este mesmo Espírito que nos ensina a reconhecer sua ação no mundo atual, na sociedade conflitiva em que vivemos e na realidade que nos rodeia.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Sem Título, Newcastle, 1999, Peter Marlow (1952-2016), Londres, Reino Unido.

 






quarta-feira, 14 de maio de 2025

O Caminho da Beleza 26 - V Domingo da Páscoa

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).


V Domingo da Páscoa              

At 14, 21-27                        Ap 21, 1-5                Jo 13, 31-35

 

ESCUTAR

“Chegando ali, reuniram a comunidade. Contaram-lhe tudo o que Deus fizera por meio deles e como havia aberto a porta da fé para os pagãos” (At 14, 27).

“Eis que faço nova todas as coisas” (Ap 21, 5).

“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13, 35).

 

MEDITAR

Deus saiu de si mesmo para vir ao meio de nós, armou a Sua tenda entre nós, para nos trazer a Sua misericórdia que salva e dá esperança... Recordai bem: sairmos de nós, como Jesus, como Deus saiu de si mesmo em Jesus, e Jesus saiu de si próprio por todos nós.

(Papa Francisco)

Acho a vida bela e me sinto livre. Os céus se estendem dentro de mim, assim como acima de mim. Acredito em Deus e nos homens, e ouso dizer isso sem falso pudor. Uma coisa é certa: deve-se contribuir para aumentar a reserva de amor sobre esta terra. Cada migalha de ódio que se acrescenta ao ódio exorbitante que já existe torna este mundo inóspito e inabitável.

(Etty Hillesum)

 

ORAR

    Os textos desta liturgia falam do amor fraterno que é o centro da vida da comunidade do Cristo. Este amor fraterno é um protesto da ternura do Senhor, pois o Senhor se faz presente por uma ternura acolhedora que, nos iluminando, faz nascer uma maior liberdade de ação frente às doutrinas e às normas caducas que nada têm a ver com a vida teologal – a vida de fé, esperança e amor – do povo de Deus. Desde os tempos de Jesus, os doutores da Lei não tinham autoridade, só tinham poder e com ele impunham a doutrina oficial. Temos que ter a lucidez de que nenhuma outra peculiaridade das igrejas poderá convencer o mundo da verdade e da necessidade da pessoa do Cristo e dos seus ensinamentos: o amor fraterno é o sinal indispensável do seguimento do Cristo. O eremita Ernesto Cardenal escreveu: “Estas bodas de amor serão as núpcias eternas de toda a Igreja com Cristo e de cada ser particular com Cristo, porque em cada ser está reunida toda a Igreja; como o corpo de Cristo está todo completo em cada hóstia e nos corpos de todos os homens e todas as mulheres”. É o amor fraterno que nos sustenta em todas as adversidades da travessia. E por este mesmo amor podemos converter a violência do mundo, como pregava João Crisóstomo: “Não teriam convertido o mundo se não tivessem amado tanto”. A nova aliança selada por Jesus com sua vida, morte e ressurreição contempla uma única cláusula e um único compromisso decisivo: o amar com um dinamismo expansivo de um amor universal cujas ondas e vibrações nos empurram cada vez mais para longe. Uma prática amorosa que não olha o mérito das pessoas; que se traduz em serviço; que valoriza a liberdade e aniquila qualquer discriminação. Um amor desarmado e desarmante, como afirma o papa Leão XIV, que se revela mais forte do que o ódio e um amor cuja visibilidade poderá ser reconhecida por qualquer pessoa que busque vibrar na mesma sintonia amorosa. Um amor alternativo às trevas e que nos revela que a utopia é o não-ainda possível: se Deus é Pai, os homens poderão se produzir como irmãos. “Vede como eles se amam”, afirmava Tertuliano. É este amor que derrotará o egoísmo e o ódio, forças de destruição, e este amor está à disposição de todo aquele que pretenda, desde agora, viver “neste novo céu e nesta nova terra”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

        

CONTEMPLAR

A Ajuda do Padre, 1962, Puerto Cabello, Venezuela, Héctor Rondón Lovera (1933-), Venezuela.





quarta-feira, 7 de maio de 2025

O Caminho da Beleza 25 - IV Domingo da Páscoa

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).


IV Domingo da Páscoa

At 13, 14.43-52                  Ap 7, 9.14b-17                    Jo 10, 27-30

 

ESCUTAR

“Eu te coloquei como luz para as nações, para que leves a salvação até os confins da terra” (At 13, 47).

“Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14b).

“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem (Jo 10, 27).

 

MEDITAR

Eu sou o Amor sem limites. Não conheço nenhum limite no tempo. Não conheço nenhum limite no espaço. Não há nenhum lugar em que eu não me encontre. Não há nenhum momento em que eu não exprima o que sou, quem eu sou. Eu sou a origem e a raiz mais profunda, e o impulso do que vós sois. Eu sou a vossa verdadeira vida.

(Um monge da igreja oriental)

Não me lembro de um só instante da minha vida em que tenha duvidado de Deus. Duvidei e duvido da possibilidade do pensamento humano conhecer e nomear adequadamente a sua existência, duvidei e duvido das pretensões das religiões de encerrá-lo nas suas doutrinas, duvidei e duvido de muitas outras coisas, mas de Deus e da possibilidade de participar no seu mistério de vida infinita que Jesus-Yeshua chamava ‘reino’ nunca duvidei e espero que nunca duvide até o último dos meus dias.

(Vito Mancuso)

 

ORAR

O Pastor conhece as suas ovelhas, não genericamente, mas pessoalmente, uma a uma. Cada um de nós, aos seus olhos, é um absoluto e não uma minúscula parte de um todo. “Escutar a voz” é uma ligação de pertença mútua numa atmosfera de liberdade e reciprocidade. Shemá Israel!. Mas esta voz não está fora de nós! A voz do Pastor não é algo estranho para nós. Nós nascemos nela. É preciso escutá-la nas entranhas. São Jerônimo, comentando a sabedoria do profeta Isaías, afirmava que “não era o ar movido pela voz que chegava aos ouvidos do profeta, mas Deus que falava em seu íntimo”. Devemos repousar em nós mesmos, escutar Deus/Amor em nosso íntimo, em nossa respiração, fazê-Lo brotar no sopro da nossa vida e expandi-Lo para o mundo. O Pastor não vem de fora. Não percorre um caminho paralelo ou justaposto, nem visita o seu rebanho de vez em quando, mas participa intimamente de sua vida. Ele compartilha a vida de todos. Ele é Pastor, mas também Ele é Cordeiro. Seu testemunho (de amor) será o nosso testemunho, sua proscrição (ante o poder) será a nossa proscrição, como foi a de Paulo e Barnabé e a de todos “os que lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro”. O povo de Deus não é poupado de nenhuma prova ou desafio. Não é privilegiado, mas amado. Só pode desfrutar da tenda aquele que sabe, por experiência, o que é o deserto. Jesus não se limita a proclamar a palavra do Pai, mas revela o Pai na sua própria pessoa e no seu modo de agir. Toda a prática do Cristo se faz revelação de Deus. Ao escutarmos a sua voz em nós e ao fazermos ressoá-la, alcançamos essa identitas christi. Eu e o Pai somos Um! Aprisionar o dinamismo vigoroso da Palavra em nossas igrejas exclusivistas faz com que ela abandone o nosso território. O Evangelho, quando aprisionado, caminhará em outra direção e deixará em nossa porta um montinho de pó como testemunho de que se cansou de nossa mesquinhez. Deixará os que se consideram “puros” na poeira de sua casa para se dirigir aos distantes, aos diferentes de nós, entre os quais armará a sua tenda. A voz de Deus em nós sempre nos empurrará para o mais-além-de-nós-mesmos. Como afirma o Papa Francisco: “A presença de Deus na nossa vida nunca nos deixa tranquilos, sempre nos impele a mover-nos. Quando Deus visita, sempre nos tira para fora de casa: visitados para visitar, encontrados para encontrar, amados para amar” (Homilia em Santiago de Cuba, 2015).

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Papa Francisco com um cordeiro sobre os ombros. AP Photo, Osservatore Romano, http://roma.repubblica.it, 01/06/2014.













 

terça-feira, 29 de abril de 2025

O Caminho da Beleza 24 - III Domingo da Páscoa

Como se visse o Invisível, mantinha-se firme (Hb 11, 27).

III Domingo da Páscoa           

At 5, 27-32.40-41             Ap 5, 11-14              Jo 21, 1-9

 

ESCUTAR

“Os apóstolos saíram do conselho muito contentes por terem sido considerados dignos de injúrias por causa do nome de Jesus” (At 5, 41).

“O Cordeio imolado é digno de receber o poder, a riqueza, a sabedoria e a força, a honra, a glória e o louvor” (Ap 5, 12).

“Então Jesus disse: ‘Moços, tendes alguma coisa para comer?’” (Jo 21, 5).

 

MEDITAR

A relação com Deus torna possível o impossível.

(Soeur Emmanuelle)

Jesus é chamado de Cordeiro: ele é o Cordeiro que tira o pecado do mundo. Pode-se pensar: mais como um cordeiro, tão frágil, um pequeno cordeiro frágil, como ele, pode tirar tantos pecados e tantas maldades? Pelo Amor. Por sua ternura. Jesus jamais cessou de ser um cordeiro: terno, bom, pleno de amor, próximo dos pequenos, próximo dos pobres.

(Papa Francisco)

 

ORAR

    Neste domingo, diferente do episódio com Tomé que se desenvolveu no interior de uma casa, com as portas fechadas, estamos ao ar livre: encontramos a comunidade eclesial em atitude de missão. Na paisagem familiar do lago Tiberíades, a barca e os pescadores parecem repetir o contexto da primeira chamada três anos antes. Desta vez, no entanto, Jesus não é simplesmente o Mestre, mas o Senhor e a fé pascal nos permite reconhecê-Lo. As ocupações mais ordinárias podem ser veículos para a difusão da mensagem evangélica e o estar junto dos discípulos indica que a missão é sempre comunitária e não um gesto isolado e autônomo. E a luz do Ressuscitado vence a noite e toda a autossuficiência que conduz ao fracasso e à infelicidade. Faltam os peixes porque falta a união com Ele. Não podemos nos esquecer da advertência do Cristo: “Sem mim não podeis fazer nada” (Jo 15, 5). Jesus lhes revela à luz do novo dia o fracasso do seu trabalho noturno: “Moços, tendes alguma coisa para comer?”. A pesca abundante se converte no fruto da generosidade divina e não do trabalho dos homens. É João quem diz a Pedro: “É o Senhor!” e, mais uma vez, é o amor quem vê melhor e chega primeiro. Pedro demora a compreender e na sua impetuosidade se atira nu nas águas, decidido a ser o primeiro a encontrar o Senhor. A sua nudez significa que ele ainda não vestira a veste do discípulo para fazer o que Jesus fez: cingir-se com a toalha e lavar os pés dos outros. Jesus, apesar de ter acendido as brasas e colocado peixes e pão para assar, revela, ao pedir que os discípulos trouxessem mais peixes, que Ele necessita do agir da comunidade. Não tem sentido e nem razão de ser comer com Ele se não nos entregarmos em favor dos outros. A indagação do Ressuscitado a Pedro sobre o seu amor para com Ele desvela que a qualidade do amor é proporcional à responsabilidade do serviço. O evangelista, ao mostrar a unidade profunda entre o ministério e o amor, entre Pedro e João, revela que sem amor o ministério pode se tornar agressivo e ditatorial. João, o discípulo amado, continuará, até o fim dos tempos, íntegro na sua lealdade e velando para que a Igreja de Jesus, apascentada por Pedro, não esmoreça, por omissão ou covardia, no seu amor incondicional aos outros. Peçamos ao Cristo com as palavras emprestadas do poeta Maiakóvski: “Ressuscita-me ainda que mais não seja porque sou poeta e ansiava o futuro. Ressuscita-me lutando contra as misérias do cotidiano, ressuscita-me por isso. Ressuscita-me quero acabar de viver o que me cabe, minha vida, para que não mais existam amores servis. Ressuscita-me para que ninguém mais tenha que sacrificar-se por uma casa, um buraco. Ressuscita-me para que a partir de hoje a família se transforme e o pai seja pelo menos o universo e a mãe seja no mínimo a terra”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Uma estória do peixe, da série “Crescendo na Escuridão”, 2012-2015, Mário Macilau (1984-), Maputo, Moçambique.