quarta-feira, 25 de maio de 2022

O Caminho da Beleza 27 - Ascensão do Senhor

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

Ascensão do Senhor                 

At 1, 1-11                  Ef 1, 17-23               Mc 16, 15-20

 

ESCUTAR

“Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?” (At 1, 10).

“Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos” (Ef 1, 18).

“Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (Mc 16, 20).

 

MEDITAR

 

Não fiques imóvel
à beira do caminho,
não congeles a vida,
não ames com fastio,
não te salves agora,
não te salves nunca

Não te enchas de calma,
não reserves do mundo,
apenas um cantinho feliz,
não deixes cair pesadas
pálpebras como juízos definitivos,
não fiques sem lábios,
não durmas sem sonhos,
não te penses sem sangue,
não te julgues sem tempo.

Mas se
apesar de tudo,
não podes evitar;
e congelas a vida,
e amas com fastio,
e te salvas agora,
e te enches de calma,
e reservas do mundo,
apenas um cantinho feliz,
e deixas cair pesadas pálpebras como juízos definitivos,
e te secas sem lábios,
e dormes sem sonhos,
e te pensas sem sangue,
e te julgas sem tempo,
e ficas imóvel
à beira do caminho,
e te salvas;

então
não fiques comigo.

(Mario Benedetti)


ORAR

      Nesta festa, os sentimentos são ambíguos: desilusão e espera; tristeza e alegria; decadência e consolo; cansaço e vontade de recomeçar. Sobretudo, domina uma pergunta de fundo: trata-se de uma conclusão ou um princípio? É preciso superar a catequese simplista e pueril que até hoje nos subjuga: Jesus veio ao mundo, permaneceu nele trinta e três anos, terminou sua missão com um incidente político, mas num final feliz voltou aos céus. Em suma, cumpriu a sua parte e agora cabe às igrejas assumir a parte que lhes cabe neste latifúndio até o Juízo Final quando serão julgadas pelo que fizeram na sua ausência. As coisas, infelizmente, não são tão lineares. Na trajetória cristã tudo aparece sob o signo da instabilidade e da imprevisibilidade. Somos herdeiros de uma fé vivida na obscuridade, mas com a certeza da ressurreição como sinal de que o mundo pode avançar, que as forças do mal podem ser derrotadas apesar das incertezas e contradições: tudo está cumprido e tudo está por se fazer. As rotas são inúmeras e diversas: um espiritualismo desencarnado, um apostolado burocrático e sem alma, uma missão fundamentalista e intolerante. E, no entanto, a beleza de ser cristão é a de que nada está decidido de antemão; nenhum programa está definido de uma vez por todas. A beleza de ser cristão se encontra na travessia que deve ser inventada e reinventada a cada dia. Como dizia Guimarães Rosa: “Viver é rasgar-se e remendar-se!”. Somos chamados a conquistar um sentido da realidade sem jamais perder a esperança, a honrar a cada dia um compromisso, por menor que seja, ainda que seja desproporcional a este mundo que resiste às mudanças. O cristão é a pessoa que admite as próprias misérias para experimentar a força que vem do Espírito e, por meio, de pequenos sinais de compaixão e fraternidade, manifestar o amor transbordante do Cristo. Jesus cumpre os profetas e, entre o dom do Espírito e o acontecimento definitivo do Reino, existe uma espera de tempo que deve ser preenchida pelo testemunho do amor fraterno “até as extremidades da terra”. O teólogo jesuíta Karl Rahner enfatiza: “O Cristo está de agora em diante no coração de todas as humildes coisas que compõem a vida da terra, esta terra que não podemos abandonar, pois ela é a nossa mãe”. A humanidade de Jesus é de tal modo perfeita que é necessário, agora e sempre, escrever a palavra Deus, e sua divindade é de tal modo real que é, também, preciso escrever, eternamente, a palavra Homem.

(Manos da Terna Solidão)

 

CONTEMPLAR

Ascensão do Cristo, 1958, Salvador Dalí, Espanha.




quinta-feira, 19 de maio de 2022

O Caminho da Beleza 26 - VI Domingo da Páscoa

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

VI Domingo de Páscoa            

At 15, 1-2.22-19                 Ap 21, 10-14.22-23                      Jo 14, 23-29                                  

 

ESCUTAR

“Ficamos sabendo que alguns dos nossos causaram perturbações com palavras que transtornaram vosso espírito” (At 15, 24).

“Não vi o templo na cidade, pois o seu templo é o próprio Senhor, o Deus todo-poderoso, e o Cordeiro. A cidade não precisa de sol, nem de lua que a iluminem, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21, 22-23).

“Não se perturbe nem se intimide o vosso coração” (Jo 14, 27).

 

MEDITAR

Onde falta o desejo de se encontrar com Deus, ali não há crentes e sim pobres caricaturas de pessoas que se dirigem a Deus por medo ou por interesse.

(Simone Weil, 1909-1943, França)

 

ORAR

    A desgraça dos puristas de todos os tempos é a pretensão de impor cargas opressoras e inúteis. De acrescentar ao jugo libertador do Cristo, um jugo suplementar e opressor feito de bagatelas sufocantes, pois alguns indivíduos sentem um gosto sádico ao exigir sacrifícios absurdos e são refratários às ações inovadoras do Espírito. O livro do Apocalipse nos revela que Deus, por meio do Cordeiro, não reside em edificações, pois Ele é o próprio templo numa Igreja transfigurada. O novo santuário é o corpo ressuscitado de Jesus, o Cristo. Este mesmo Cristo será, ao mesmo tempo, ponto de conjunção da humanidade com Deus e ponto de união da humanidade inteira. A Igreja quando pretende exibir a própria luz e a própria glória, termina, inevitavelmente, obscurecendo a Fonte da Luz e vende como esplendor celeste as luzes do êxito e do prestígio humano. A Igreja de Jesus Cristo há de ser fiel à sua dinamicidade que a impede de ser nostálgica; à sua fidelidade que a impede de desviar-se da sua razão de ser e à sua profecia que a faz compreender os sinais dos tempos. A Igreja deve cultivar a tolerância e o diálogo que a livram das enfermidades do poder e a esperança que a faz superar dúvidas e incertezas. A Cidade de Deus não é uma cristandade sociologicamente organizada, mas uma dinâmica do Espírito que age e transforma o mundo por meio de nós. Antes de ser uma estrutura, a Igreja é uma comunidade, fruto do acolhimento do Espírito no coração dos fiéis, pois “somente a recepção acolhedora da Palavra, no Espírito, é formadora da comunidade cristã” (Francisco Catão). Na Igreja deve prevalecer a fé no Espírito e ela deve desaparecer para brilhar a Luz do Cristo. A fé e o compromisso com Jesus Cristo são um produto da ação do Espírito sobre nós, pois é este mesmo Espírito que nos ensina a reconhecer sua ação no mundo atual, na sociedade conflitiva em que vivemos e na realidade que nos rodeia.

(Manos da Terna Solidão)

 

CONTEMPLAR

Sinos de Jerusalém, 2013, Guy Cohen (1990-), Jerusalém, Israel.




 

sábado, 14 de maio de 2022

O Caminho da Beleza 25 - V Domingo da Páscoa

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

V Domingo da Páscoa              

At 14, 21-27                        Ap 21, 1-5                Jo 13, 31-35

 

ESCUTAR

“Chegando ali, reuniram a comunidade. Contaram-lhe tudo o que Deus fizera por meio deles e como havia aberto a porta da fé para os pagãos” (At 14, 27).

“Eis que faço nova todas as coisas” (Ap 21, 5).

“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13, 35).

 

MEDITAR

Deus saiu de si mesmo para vir ao meio de nós, montou a Sua tenda entre nós, para nos trazer a Sua misericórdia que salva e dá esperança... Recordai bem: sairmos de nós, como Jesus, como Deus saiu de si mesmo em Jesus, e Jesus saiu de si próprio por todos nós (Francisco).

“Acho a vida bela e me sinto livre. Os céus se estendem dentro de mim, assim como acima de mim. Acredito em Deus e nos homens, e ouso dizer isso sem falso pudor. Uma coisa é certa: deve-se contribuir para aumentar a reserva de amor sobre esta terra. Cada migalha de ódio que se acrescenta ao ódio exorbitante que já existe torna este mundo inóspito e inabitável” (Etty Hillesum).

 

ORAR

    Os textos desta liturgia falam do amor fraterno que é o centro da vida da comunidade do Cristo. Este amor fraterno é um protesto da ternura do Senhor, pois o Senhor se faz presente por uma ternura acolhedora que, nos iluminando, faz nascer uma maior liberdade de ação frente às doutrinas e às normas caducas que nada têm a ver com a vida teologal – a vida de fé, esperança e amor – do povo de Deus. Desde os tempos de Jesus, os doutores da Lei não tinham autoridade, só tinham poder e com ele impunham a doutrina oficial. Temos que ter a lucidez de que o amor fraterno é o sinal indispensável do seguimento do Cristo. O eremita Ernesto Cardenal escreveu: Estas bodas de amor serão as núpcias eternas de toda a comunidade eclesial com Cristo e de cada ser particular com Cristo, porque em cada ser está reunida toda a comunidade eclesial; como o corpo de Cristo está todo completo em cada hóstia e nos corpos de todos os homens e todas as mulheres”. É o amor fraterno que nos sustenta em todas as adversidades da travessia. E por este mesmo amor podemos converter a violência do mundo, como pregava João Crisóstomo: “Não teriam convertido o mundo se não tivessem amado tanto”. A nova aliança selada por Jesus com sua vida, morte e ressurreição contempla uma única cláusula e um único compromisso decisivo: o amar com um dinamismo expansivo de um amor universal cujas ondas e vibrações nos empurram cada vez mais para longe. Uma prática amorosa que não olha o mérito das pessoas; que se traduz em serviço; que valoriza a liberdade e aniquila qualquer discriminação. Um amor desarmado que se revela mais forte do que o ódio e um amor cuja visibilidade poderá ser reconhecida por qualquer pessoa que busque vibrar na mesma sintonia amorosa. Um amor alternativo às trevas e que nos revela que a utopia é possível: se Deus é Pai, os homens poderão se produzir como irmãos. É este amor que derrotará o egoísmo e o ódio, forças de destruição, e este amor está à disposição de todo aquele que pretenda, desde agora, viver “neste novo céu e nesta nova terra”.

(Manos da Terna Solidão)


CONTEMPLAR

Crianças no degrau da porta, 2008, Havana, Cuba, Tony McDonnell, Dundalk, Irlanda.




sexta-feira, 6 de maio de 2022

O Caminho da Beleza 24 - IV Domingo da Páscoa

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

IV Domingo de Páscoa                        

At 13, 14.43-52                  Ap 7, 9.14-17                      Jo 10, 27-30

 

ESCUTAR

“Eu te coloquei como luz para as nações, para que leves a salvação até os confins da terra” (At 13, 47).

“Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água da vida. E Deus enxugará as lágrimas de seus olhos” (Ap 7, 17).

“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10, 27).

 

MEDITAR

O caminho para a fé passa pela obediência ao chamado de Cristo. Exige-se um passo decisivo, senão o chamado de Jesus ecoa no vácuo, e todo suposto discipulado, sem esse passo ao qual Jesus nos chama, transforma-se em falsa onda entusiástica.

(Dietrich Bonhoeffer)

Deus só se comunica plenamente e suavemente a um coração despojado de tudo” (São João da Cruz).

 

ORAR

    A figura do Pastor marca a liturgia de hoje e dois verbos dão o seu sentido profundo. Da parte do pastor, “conhecer”, e da parte das ovelhas, “escutar e seguir”. Jesus afirma conhecer cada um de nós, aos seus olhos e coração, não como um ser genérico, nem como uma minúscula parte de um todo, mas como um absoluto único e intransferível. Escutar a voz não é apenas ouvir a Palavra, é também conquistar uma relação íntima e estreita com a pessoa amada. A voz exprime uma chamada, um convite com um timbre pessoal, inconfundível, capaz de provocar uma ressonância interior que nunca se repete em quem a percebe. Escutar a voz implica uma ligação de pertença recíproca numa atmosfera de liberdade e espontaneidade. A imagem do Pastor é unida a do Cordeiro uma vez que Ele jamais se distancia do rebanho, faz o mesmo caminho, enfrenta os mesmos riscos e partilha suas vidas em todos os momentos. Ele faz-se caminho sempre. O povo de Deus não é poupado de nenhuma prova ou desafio. Não é privilegiado, mas amado. Só pode desfrutar da tenda aquele que sabe, por experiência, o que é o deserto. Nossas igrejas devem ter a lucidez de que os pastores que não vivem o seu ministério como uma relação pessoal cotidiana, como aquele que serve (Lc 22, 27), podem acabar se reduzindo a meros funcionários. A relação autêntica se alimenta de uma presença, mas também de uma escuta, de uma partilha do amor e da total dedicação até o dom de sua vida. A missão profética da Igreja de Jesus é a de ser uma Igreja pobre com os pobres e não continuar a ser uma pobre Igreja rica que socorre os pobres. Meditemos as palavras do Papa Paulo VI ao encerrar o Concílio Vaticano II em sete de dezembro de 1965: “No rosto de todos os seres humanos, especialmente quando marcado pelas lágrimas e pela dor, brilha a face de Cristo (cf. Mt 25, 40)”.

(Manos da Terna Solidão)


CONTEMPLAR

O Bom Pastor, Daniel Bonnell, óleo sobre tela, 24” x 48”, Carolina do Sul, Estados-Unidos.