terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O Caminho da Beleza 15 - II Domingo da Quaresma

Os transbordamentos de amor acontecem sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível (Papa Francisco).

II Domingo da Quaresma                   28.02.2021

Gn 22, 1-2.9-13.15-18                 Rm 8, 31-34                       Mc 9, 2-10

 

ESCUTAR

“Eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar” (Gn 22, 17).

Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rm 8, 31).

E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles (Mc 9, 8).

 

MEDITAR

Deitado por inteiro no beliche, fixo o olhar na parede cinza.

Lá fora, uma noite de verão,

que me ignora,

segue pelos campos, cantando...

Irmão, até por trás da noite escarlate

Alvorece o novo dia

resiste!

(Dietrich Bonhoeffer, 1906-1945, Alemanha)

 

ORAR

    Proibido saltar por cima da noite. É noite para Abraão (“Toma teu filho único, Isaac, a quem amas, e oferece-o em sacrifício”). É noite para tantas pessoas que se sentem “acusadas” e “condenadas” (Rm 8, 33). É noite para os discípulos que ouviram o Mestre falar do caminho da cruz (Mc 8, 31ss). Dá vontade de saltar por cima destas trevas e se deixar penetrar imediatamente pela luz. Chegar felizmente ao final alegre: “não estendas a mão contra teu filho e nem lhe faças nada... Te abençoarei”. Agarrar-se a essa afirmação: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” Fixar imediatamente o olhar sobre Jesus que veste o hábito da luz sobre o monte da transfiguração. Demasiado simples. Porque é necessário passar através da noite, explorá-la até o fundo. Também a noite contém indícios de luz. Resistir confiando na palavra. Dietrich Bonhoeffer viveu sua noite interminável na prisão de Tegel, em Berlim. Aquelas trevas foram perfuradas, em rajadas, por golpes de luz que lhe permitiram “manter-se em pé”, recorrer com firmeza às “estações sobre o caminho da liberdade” e seguir sendo evangelicamente “resistente” contra o demônio do nazismo. Como quando, em 20 de julho de 1944, meditando as leituras do dia, topou com a passagem de Paulo: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” Daí retirou, como atesta em uma carta, gozo e força. O Deus-para-nós é o Deus que não perdoou a seu próprio filho. Que, em Jesus, nos deu e nos dá tudo. A. Maillot comenta com seu estilo paradoxal: “Deus não tem outro filho de reserva... Em Cristo, Deus se despojou e se arruinou pelos homens”. Ele também teve sua noite escura (era meio-dia no relógio dos homens), ainda que incendiada pelo amor. O Deus-em-si se fez o Deus-conosco (o Emmanuel) e além disso o Deus-para-nós. O “para”, em certo sentido, já é a qualificação da divindade. As últimas palavras de Bonhoeffer, antes de ser executado, foram: “Isto é o final, para mim o começo da vida”. Os três apóstolos pensam que foram dispensados da noite da paixão-morte, quando, no monte, contemplam ao Cristo transfigurado na glória. “É bom ficarmos aqui! Vamos fazer três tendas...”. Equivocam-se pensando chegar à pascoa sem passar pelo obstáculo do Calvário. Mas a visão pascoal antecipada dura como um relâmpago. Imediatamente recomeça a noite. “De repente, olhando em volta, não viram ninguém mais, a não ser Jesus, só com eles”. Um homem como os demais, e mais: um condenado à morte que caminha até o patíbulo infame. A luz se apagou. E, contudo, neles permaneceu acesa uma palavra: “Este é meu Filho amado, escutai-o”. E eles, como nós, como todos os crentes, levam dentro, além daquele raio de luz, sobretudo, aquela palavra. O caminho do que acredita só pode se iluminar por uma palavra. “Lâmpada para meus passos é a tua palavra” (Sl 119, 105). A lâmpada não elimina a noite. Mas permite caminhar.

 (Alessandro Pronzato, 1932-, Itália)

 

CONTEMPLAR

O holofote de Karnak, 2017, Templo de Karnak, Luxor, Egito, Sake Van Pelt (1991-), Holanda.




segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

O Caminho da Beleza 14 - I Domingo da Quaresma

Os transbordamentos de amor acontecem sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível (Papa Francisco).

I Domingo da Quaresma                     21.02.202

Gn 9, 8-15               1 Pd 3, 18-22                      Mc 1, 12-15

 

ESCUTAR

“Ponho meu arco nas nuvens como sinal de aliança entre mim e a terra” (Gn 9, 13).

Cristo morreu, uma vez por todas, por causa dos pecados, o justo pelos injustos, a fim de nos conduzir a Deus (1 Pd 3, 18).

“O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1, 15).

 

MEDITAR

Devemos resistir à tentação de preencher o vazio. É o deserto que é o lugar onde Deus pode vir falar ao nosso coração. Entrar na capela ou outro local e permanecer em silêncio diante da presença de Deus é, portanto, a coisa mais corajosa que se pode fazer. Isso nos prepara para a demanda imprevisível...qual é o teu deserto, aquele em que Deus te falará com ternura?

(Timothy Radcliffe, 1945-, Reino Unido).

 

ORAR

    Neste primeiro domingo de Quaresma encontramos Jesus que, depois de ter recebido o batismo de João Batista no rio Jordão (cf. Mc 1, 9), padece a tentação no deserto (cf. Mc 1, 12-13). O deserto de que se fala tem vários significados. Pode indicar a situação de abandono e de solidão, o “lugar” da debilidade do homem, onde não existem ajudas nem seguranças, onde a tentação se faz mais forte. Mas ele pode indicar também um lugar de refúgio e de amparo, como foi para o povo de Israel que se livrou da escravidão egípcia, onde se pode experimentar de modo particular a Presença de Deus. Jesus, “permaneceu quarenta dias no deserto, onde foi tentado pelo demônio” (Mc 1, 13). São Leão Magno comenta que “o Senhor quis padecer o ataque do tentador para nos defender com a sua ajuda e para nos instruir com o seu exemplo”. Que nos pode ensinar este episódio? Como lemos no Livro da Imitação de Cristo, “o homem nunca está totalmente isento da tentação, enquanto viver... mas é com a paciência e com a verdadeira humildade que nos tornaremos mais fortes do que todos os inimigos”; a paciência e a humildade de seguir o Senhor todos os dias, aprendendo a construir a nossa vida sem O excluir, ou como se Ele não existisse, mas nele e com Ele, porque é a fonte da vida verdadeira. A tentação de eliminar Deus, de pôr ordem sozinho em si mesmo e no mundo, contando unicamente com as próprias capacidades, está sempre presente na história do homem. Jesus proclama que “se completou o tempo e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1, 15), anuncia que nele acontece algo de novo: Deus se dirige ao homem de modo inesperado, com uma proximidade singular, concreta, cheia de amor; Deus encarna-se e entra no mundo do homem para assumir sobre si o pecado, para vencer o mal e restituir o homem ao mundo de Deus. Mas este anúncio é acompanhado pelo pedido de corresponder a um dom muito grande. Com efeito, Jesus acrescenta: “Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15); é o convite a ter fé em Deus e a converter todos os dias a nossa vida à sua Vontade, orientando para o bem todas as nossas obras e pensamentos. O tempo da Quaresma é o momento propício para renovar e tornar mais sólida a nossa relação com Deus, através da oração quotidiana, dos gestos de penitência e das obras de caridade fraterna.

(Bento XVI, 1927-, Alemanha).

 

CONTEMPLAR

S. Título, 1963, David Heath (1931-2016), Estados Unidos.




segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

O Caminho da Beleza 13 - VI Domingo do Tempo Comum

Os transbordamentos de amor acontecem sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível (Papa Francisco).

VI Domingo do Tempo Comum                   14.02.2021

2 Rs 5, 9-14             1 Cor 10, 31-11, 1              Mc 1, 40-45

 

ESCUTAR

“Vai, lava-te sete vezes no Jordão, e tua carne será curada e ficarás limpo” (2 Rs 5, 10).

Irmãos, quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus (1 Cor 10, 31).

Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele e disse: “Eu quero: fica curado!” (Mc 1, 41).

 

MEDITAR

A muitos só lhes resta o inferno.

?Que lhes coube na monstruosa partilha da vida

Senão uma angústia sem nobreza, e a peste da alma.

Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,

Nem assistiram à contínua anunciação

E ao contínuo parto das belas formas.

Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror,

Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos,

Comeram o pó e beberam o próprio suor,

Não se banharam no regato livre.

Entretanto, a transfiguração precede a morte.

Cada um deve assumi-la em carne e espírito

Para que a alegria seja completa e definitiva.

 

É necessário conhecer seu próprio abismo

E polir sempre o candelabro que o esclarece.

(Murilo Mendes, 1901-1975, Brasil)

 

ORAR

       O Espírito que reina n’Ele tem o poder de curar. De curar desde as raízes; porque é capaz de criar, de apreender o mais fundo princípio de vida e transformá-lo. O poder de curar é tão inesgotável em Jesus que Ele leva a melhor da miséria humana que se comprime à sua volta. Não recua. As feridas, os membros torcidos, as deformações, nenhuns sofrimentos O assustam. Defronta-os. Não distingue o que é mais urgente ou o que correspondesse à força que está em Si, e, simplesmente, aceita toda a gente. A palavra “Vinde a Mim” – vide Mateus, II, 28 – é por Ele realizada antes mesmo de a pronunciar. E que deixa Ele aproximar-se de Si! Não é o sofrimento humano um mar? Não é socorrer um trabalho sem fim? Quem, decidindo-se a aliviar os homens, havendo-se posto à disposição deles, não foi submergido – e feliz ainda quando se não perde a si próprio – por esta tarefa infinita? Jesus sente o sofrimento dos homens. A compaixão agita-Lhe o coração. Permite à miséria aproximar-se de Si, mas é mais forte do que ela. Não conhecemos alguma palavra do Senhor que pareça “idealista”, que deixe entender que poderia suprimir a dor. Não a sobrevoa, comovido ou entusiasta, encara-a na sua inteira e horrível realidade. Mas jamais perde a coragem, jamais Se cansa ou aparece decepcionado. O seu coração, o mais sábio e o mais sensível de todos que alguma vez bateram, é mais forte do que todo o sofrimento humano... Estaremos mais perto da verdade se dissermos: Cristo não procurou evitar o sofrimento, como sempre faz o homem. Não o desprezou. Não Se protegeu contra ele. Acolheu-o no seu coração. Tomou os homens que sofrem como eles são, com toda a sua realidade. Fez seus os incômodos, os pecados e as necessidades do homem. Há nisso uma infinita grandeza. Um amor de uma santa seriedade; sem qualquer ilusão e por isso mesmo infinitamente poderoso, porque é “um ato da verdade na caridade”, que apreende a realidade e a eleva acima de si mesma. A atividade de cura de Jesus é um ato de Deus: uma revelação de Deus e um caminho para Deus.

(Romano Guardini, 1885-1968, Alemanha)

 

CONTEMPLAR

S. Título, 2015, Fernando Zamorra, Folha Press, São Paulo, Brasil.




segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O Caminho da Beleza 12 - V Domingo do Tempo Comum

Mantinha-se firme, como se visse o Invisível! (Hb 11, 27)

V Domingo do Tempo Comum                     07.02.2021

Jó 7, 1-4.6-7                       1 Cor 9, 16-19.22-23                   Mc 1, 29-39

 

ESCUTAR

“Meus dias correm mais rápido do que a lançadeira do tear e se consomem sem esperança. Lembra-te de que minha vida é apenas um sopro (Jó 7, 6).

Ai de mim se eu não pregar o Evangelho! (1 Cor 9, 16).

À tarde, depois do pôr do sol, levaram a Jesus todos os doentes e os possuídos pelo demônio... De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto (Mc 1, 32.35).

 

MEDITAR

Os transbordamentos de amor acontecem sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível.

(Papa Francisco, 1936-, Argentina)

 

ORAR

       Uma das coisas que mais se destacam nesse trecho, do que era a vida diária de Jesus, é que a oração era muito importante e muito frequente em sua vida. O projeto de vida de Jesus se centrava em curar enfermos, partilhar a comida com famintos e remediar as penalidades e sofrimentos das pessoas. Mas, para realizar esse projeto, Jesus viu que precisava orar ao Pai. E precisava muito e com frequência. Para orar não ia ao templo, mas a lugares solitários, ao campo, ao monte. E assim passava noites inteiras em oração. A oração de Jesus é uma lição exemplar mais profunda do que imaginamos. A oração é uma das provas mais patentes de que Jesus era um “ser humano”. E, como todo ser humano, sentia a necessidade de ajuda e auxílio do Transcendente, o Pai do Céu a quem acudia com tanta frequência. O segredo, a explicação e a chave da humanidade de Jesus estão em sua espiritualidade. Ou seja, Jesus foi tão profundamente humano por causa da relação tão frequente e profunda que teve com a fonte de toda humanidade. A condição humana, tal como de fato existe – mesclada e fundida com o inumano e com a desumanização – só resulta num homem, “como tantos outros” (Fl 2, 7), que foi tão plenamente humano que nele não cabia inumanidade alguma. Por isso Jesus necessitou recorrer ao Pai. Por isso o necessitamos todos, se é que de verdade queremos ser profundamente humanos e sintonizar com tudo o que é verdadeiramente humano. Há formas de orar que entontecem e há formas de orar que humanizam.

(José Maria Castillo, 1929-, Espanha)

 

CONTEMPLAR

Homem Sombra, 2020, Rua Aldersgate, Londres, Lesley Scoble (1949-), Reino Unido.