Os transbordamentos de amor acontecem
sobretudo nas encruzilhadas da vida, em momentos de abertura, fragilidade e
humildade, quando o oceano do amor de Deus arrebenta os diques da nossa
autossuficiência e permite, assim, uma nova imaginação do possível (Papa
Francisco).
II Domingo da Quaresma 28.02.2021
Gn 22,
1-2.9-13.15-18 Rm 8, 31-34 Mc 9, 2-10
ESCUTAR
“Eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar” (Gn 22, 17).
Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rm 8, 31).
E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles (Mc 9, 8).
MEDITAR
Deitado por inteiro no beliche, fixo o olhar na parede cinza.
Lá fora, uma noite de verão,
que me ignora,
segue pelos campos, cantando...
Irmão, até por trás da noite escarlate
Alvorece o novo dia
resiste!
(Dietrich Bonhoeffer, 1906-1945, Alemanha)
ORAR
Proibido saltar por cima da noite. É noite para
Abraão (“Toma teu filho único, Isaac, a quem amas, e oferece-o em sacrifício”).
É noite para tantas pessoas que se sentem “acusadas” e “condenadas” (Rm 8, 33).
É noite para os discípulos que ouviram o Mestre falar do caminho da cruz (Mc 8,
31ss). Dá vontade de saltar por cima destas trevas e se deixar penetrar
imediatamente pela luz. Chegar felizmente ao final alegre: “não estendas a mão
contra teu filho e nem lhe faças nada... Te abençoarei”. Agarrar-se a essa
afirmação: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” Fixar imediatamente
o olhar sobre Jesus que veste o hábito da luz sobre o monte da transfiguração.
Demasiado simples. Porque é necessário passar através da noite, explorá-la até
o fundo. Também a noite contém indícios de luz. Resistir confiando na palavra.
Dietrich Bonhoeffer viveu sua noite interminável na prisão de Tegel, em Berlim.
Aquelas trevas foram perfuradas, em rajadas, por golpes de luz que lhe
permitiram “manter-se em pé”, recorrer com firmeza às “estações sobre o caminho
da liberdade” e seguir sendo evangelicamente “resistente” contra o demônio do
nazismo. Como quando, em 20 de julho de 1944, meditando as leituras do dia,
topou com a passagem de Paulo: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?”
Daí retirou, como atesta em uma carta, gozo e força. O Deus-para-nós é o Deus
que não perdoou a seu próprio filho. Que, em Jesus, nos deu e nos dá tudo. A.
Maillot comenta com seu estilo paradoxal: “Deus não tem outro filho de
reserva... Em Cristo, Deus se despojou e se arruinou pelos homens”. Ele também
teve sua noite escura (era meio-dia no relógio dos homens), ainda que
incendiada pelo amor. O Deus-em-si se fez o Deus-conosco (o Emmanuel) e além
disso o Deus-para-nós. O “para”, em certo sentido, já é a qualificação da
divindade. As últimas palavras de Bonhoeffer, antes de ser executado, foram:
“Isto é o final, para mim o começo da vida”. Os três apóstolos pensam que foram
dispensados da noite da paixão-morte, quando, no monte, contemplam ao Cristo
transfigurado na glória. “É bom ficarmos aqui! Vamos fazer três tendas...”.
Equivocam-se pensando chegar à pascoa sem passar pelo obstáculo do Calvário.
Mas a visão pascoal antecipada dura como um relâmpago. Imediatamente recomeça a
noite. “De repente, olhando em volta, não viram ninguém mais, a não ser Jesus,
só com eles”. Um homem como os demais, e mais: um condenado à morte que caminha
até o patíbulo infame. A luz se apagou. E, contudo, neles permaneceu acesa uma
palavra: “Este é meu Filho amado, escutai-o”. E eles, como nós, como todos os
crentes, levam dentro, além daquele raio de luz, sobretudo, aquela palavra. O
caminho do que acredita só pode se iluminar por uma palavra. “Lâmpada para meus
passos é a tua palavra” (Sl 119, 105). A lâmpada não elimina a noite. Mas
permite caminhar.
CONTEMPLAR
O holofote de Karnak, 2017, Templo de Karnak, Luxor, Egito, Sake Van Pelt (1991-), Holanda.