segunda-feira, 11 de abril de 2011

O Caminho da Beleza 23 - Semana Santa


Cruz (detalhe), Arcabas (Jean-Marie Pirot), Igreja do Espírito Santo e de S. Alessandro Mártir, Arquidiocese de Portoviejo, Equador.


O Caminho da Beleza 23
Leituras para a travessia da vida


A beleza é a grande necessidade do homem; é a raiz da qual brota o tronco de nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convite à liberdade e arranca do egoísmo” (Bento XVI, Barcelona, 2010).

Quando recebia tuas palavras, eu as devorava; tua palavra era o meu prazer e minha íntima alegria” (Jr 15, 16).



Domingo de Ramos                   17.04.2011
Is 50, 4-7                 Fl 2, 6-11                 Mt 27, 11-54


ESCUTAR

“O Senhor Deus deu-me língua adestrada para que eu saiba dizer palavras de conforto à pessoa abatida; ele me desperta cada manhã e me excita o ouvido, para prestar atenção como um discípulo” (Is 50, 4)

“Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2, 6-8).

“Senhor, nós nos lembramos de que quando este impostor ainda estava vivo, disse: ‘Depois de três dias eu ressuscitarei!’ Portanto, manda guardar o sepulcro até o terceiro dia para não acontecer que os discípulos venham roubar o corpo e digam ao povo: ‘Ele ressuscitou dos mortos!’ pois essa última impostura seria pior do que a primeira” (Mt 27, 62-64).


MEDITAR

“O Logos, que em si não podia morrer, assumiu um corpo que podia morrer, para oferecê-lo por todos. Após o pecado teríamos de alcançar de novo a graça, não de dentro, mas em união com o corpo. A redenção não é uma simples eliminação do pecado, mas acontece mediante uma superabundância de vida, mediante o sangue e o sacrifício deste Deus encarnado” (Atanásio, Da encarnação).

“O engajamento de Deus pelo homem é tão definitivo que toda objeção contra a ordem do mundo e a Providência está reduzida ao silêncio. O Novo Testamento é um livro em que a alegria é capaz de abranger, novamente, mesmo o sofrimento mais extremo: o abandono de Deus por Deus” (Urs Von Balthasar, O engajamento de Deus).


ORAR

            A existência de Jesus encontra a sua razão de ser no Sim prévio aos desígnios do Pai. Toda a sua vida e o seu empenho repousam sobre um pacto permanente entre Ele e o Pai. No entanto, ao chegar a hora esperada se produz a entrada nas trevas: a fonte paternal se cala; o Pai sempre presente se retira; sua luz se extingue e o Filho que carrega o pecado do mundo se vê abandonado. Paradoxalmente, somente alguém tão inseparavelmente próximo do Pai, como o Filho, expressão de uma presença e união indestrutíveis, pode experimentar tal abandono.
            Desde a ressurreição de Lázaro, os inimigos de Jesus decidiram a sua morte e Ele, que até então se esquivara do entusiasmo das massas, vai aceitar, deliberadamente, ser acolhido como um rei, um messias e um grande profeta. Ele quer se deixar reconhecer como tal, pois a sua hora soou: Ele é o Senhor e não há mais nada a perder.
            A mula era outrora a montaria dos chefes de Israel antes de Davi. Era a montaria do povo miúdo. Posteriormente, foi suplantada pelo cavalo que era a montaria dos ricos e o sinal do chefe militar. Jesus é um rei pacífico cujo reino não tem nenhuma pretensão de dominação. A multidão aclama Jesus, como o salmo 118 cantado na festa das Tendas que tem um significado messiânico: “Bendito em nome do Senhor aquele que vem! Nós vos abençoamos desde a casa do Senhor. O Senhor é Deus, ele nos ilumina. Ordenai uma procissão com ramos até os ângulos do altar. Tu és meu Deus, eu te dou graças, Deus meu, eu te exalto. Dai graças ao Senhor porque é bom, porque é eterna sua misericórdia” (Sl 118, 24-29). Os hosanas pedem e desejam que o Messias arme a sua tenda no meio do seu povo e o seu entusiasmo vinha dos que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro. A multidão aclama aquele que venceu a morte.
            Na sua hora, Jesus é abandonado por seus discípulos que dormem. O único vínculo com o Pai, que persiste, está centrado no cálice: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Mas não se faça a minha vontade e sim a tua” (Lc 22, 42). Este não-sim é todo o vínculo restante com o Pai. Um vínculo que, ao final, vivenciará somente na Cruz como abandono de Deus.
            Jesus deu um sentido à sua morte ao dizer que não havia maior prova de amor do que dar a vida pelos amigos e se esta frase é verdadeira, então é imperativo que Ele morra. Três dias mais tarde esta mesma frase iluminará os peregrinos do caminho de Emaús: “Como sois insensatos e lentos para crer em tudo o que disseram os profetas! Não tinha o Messias de sofrer isso para entrar em sua glória?” (Lc 24, 25-26). E entrar na glória é revelar o amor de Deus.
            Neste domingo de Ramos, devemos ter a lucidez, como comunidade eclesial, que o pecado é essencialmente o medo do futuro e uma tentativa desesperada para impedir o seu advento. E o Cristo nos evoca, com a sua entrega de amor, que a libertação do pecado consiste em sermos fulminados pela coragem da esperança: “No mundo passareis tribulações; mas tende ânimo, pois eu venci o mundo” (Jo 16, 33).


CONTEMPLAR

Ingresso em Jerusalém, Duccio di Buoninsegna, painel de Maestà, 1309-1311, Museu dell'Opera del duomo, Siena, Itália.




Quinta Feira Santa                    21.04. 2011
Ex 12, 1-8.11-14                 1 Cor 11, 23-26                  Jo 13, 1-15


ESCUTAR

“Assim devereis comê-lo: com os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão. E comereis às pressas, pois é Páscoa, isto é, a ‘Passagem’ do Senhor!” (Ex 12, 11).

“Todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (1 Cor 11, 26).

“Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos laveis os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13, 14-15).


MEDITAR

“Aquele que está coberto com o manto de luz, se despoja do manto que estava vestido. Aquele que cinge o céu com nuvens amarra um pano branco na cintura. Aquele que faz correr a água dos lagos e dos rios verte a água na bacia. Ele, diante do qual ‘todo joelho se dobra no céu, na terra e nos abismos’ lava ajoelhado os pés dos seus discípulos. Ele não ofende a sua dignidade, mas mostra seu imenso amor pelos homens” (Severiano de Gabala, Homilia sobre o Lava-pés).

“A cruz é o início da liberdade do homem frente a Deus. Abdicando da sua potência, Deus revela que Ele é apenas amor e é o amor que salva da morte” (Joseph Moingt).


ORAR

            Jesus testemunha que o Senhor é o Servidor de todos e por esta razão veio “não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate por todos” (Mc 10, 45). Jesus nos ama porque simplesmente nos ama, sem nenhuma outra razão além de ser, Ele mesmo, o próprio Amor.
 Jesus assume a posição humilde à revelia do que era legislado pelas autoridades religiosas judaicas: evitar que escravos de origem israelita fizessem o trabalho penoso e humilhante de tirar as sandálias de seu senhor ou lavar os seus pés: “Se um irmão teu se arruinar e se vender a ti, não o tratarás como escravo, mas como diarista ou empregado” (Lev 25, 39). Ao contrário da hospitalidade judaica, que oferecia água para os hóspedes lavarem a poeira de seus pés antes de sentarem-se à mesa, Jesus faz o gesto no meio da ceia para marcar o seu significado espiritual: a pureza que o homem não pode adquirir por si mesmo, porque vem de Deus, pois é Deus que toma a iniciativa. Jesus lava os pés dos que serão portadores da sua Palavra cumprindo o profetizado por Isaías: “Como são belos os pés dos que anunciam a Boa Nova” (Is 52, 7).
Um dos primeiros sentidos que Jesus dá à sua morte é o de uma nova gênese. Seu sacrifício vai inaugurar uma nova criação, instaurar uma nova ordem em que os valores serão virados do avesso e as hierarquias tomarão outro sentido: serem um serviço de amor fraterno recíproco. Nesta recriação de uma humanidade nova regenerada pela Cruz, poderemos ainda descobrir a presença de Satanás que reside no espírito de Judas, o traidor. Pedro se nega num primeiro momento e se arrepende no segundo; Judas não suporta a profunda auto-humilhação daquele que se apresentava como Mestre e Senhor.
            Nesta tarde, celebramos este pão partido que resume a história inteira do mundo: um grão de trigo que germina na terra e que a vitalidade da terra, da água, do ar e dos raios do sol transforma em talo verde, em espiga dourada. Celebramos a água, o fogo, o suor de muitos homens e mulheres que transformaram este grão de trigo em pão. E o pão se transforma em nosso corpo e no corpo de Jesus quando a sua memória nos une.
            O vinho que celebramos hoje representa a agridoce história da vida: após um largo inverno, nos retorcidos troncos da cepa brotarão alguns tenros rebentos. O céu e a terra os converterão em uva e vinho para celebrar o amor e aliviar as penas. Este vinho se converterá no próprio Jesus quando nos reunirmos para celebrar a vida, pois Jesus é a própria vida.
            Nesta tarde, cubramos o nosso coração com as palavras de Edith Stein: “Na boca do Cristo, as antigas fórmulas da benção se tornaram uma palavra criadora de vida. Os frutos da terra se tornaram sua carne e seu sangue cheios de vida. A criação visível no seio da qual Ele já penetrou pela Encarnação Lhe é agora unida de uma maneira nova e misteriosa. As substâncias que servem ao crescimento do corpo humano são radicalmente transformadas: tornam-se participantes da vida do Cristo e plenos de sua vida divina” (in Source cachée).


CONTEMPLAR

Lava-pés e última ceia, Anônimo.




Sexta Feira da Paixão                         22.04.2011
Is 52, 13-53,12          Hb 4, 14-16; 5, 7-9              Jo 18, 1-19, 42


ESCUTAR

“Mas ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas, o preço da nossa cura” (Is 52, 5).

“Aproximemo-nos então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4, 16).

“Tudo está consumado” (Jo 19, 29).


MEDITAR

“Eis os mistérios terríveis da batalha deste dia, os assustadores troféus da guerra contra o inferno; a indescritível destruição total do antigo tirano. Maior do que poderíamos esperar, é a vitória que tem alcançado por nós Aquele que assumiu a nossa carne. Pois, morto ele lutou contra a morte; Deus forte e poderoso destruirá o inferno” (Proclus de Constantinopla, Discurso para a Páscoa).

“O Deus que se revela na cruz não é um Deus que quer o sofrimento do homem, mas um Deus capaz de aceitá-lo em si mesmo para que desapareça para sempre da existência humana. Um Deus que não está diante do Crucificado enviando-lhe provas, purificações ou castigos, mas um Deus que está ao lado dele, sofrendo com ele e preparando já a sua ressurreição e felicidade definitiva” (José Antonio Pagola, É bom ter fé).


ORAR

            O texto do profeta Isaías constitui a página mais misteriosa e mais perturbadora da Antiga Tradição. No início, ele proclama a vitória do Servo: “Ei-lo, o meu servo será bem sucedido; sua ascensão será ao mais alto grau”.  A tradição judaica reconhece na figura do Servo Sofredor a personificação do Israel humilhado, exilado, assassinado, mas que o Senhor faz recuperar a liberdade e a glória, exaltando-o como testemunho diante das nações. Para a tradição cristã, este texto perde o seu caráter coletivo para uma interpretação pessoal: é uma antecipação da Paixão do Cristo e um anúncio velado da sua Ressurreição.
O profeta faz uma autocrítica: “Ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz e suas feridas o preço da nossa cura”. A narrativa do profeta nos evoca a paixão de Jesus: “Foi maltratado e submeteu-se, não abriu a boca; como cordeiro levado ao matadouro ou como ovelha diante dos que a tosquiam, ele não abriu a boca. Foi atormentado pela angústia e foi condenado”. Na sua obra “Paixão segundo São Mateus”, Bach invoca a atitude exemplar de Jesus: “também na adversidade devemos, como ele, permanecer em silêncio na perseguição” (Recitativo 40).
            Jesus anuncia a sua Paixão e se apóia nas Escrituras. Os evangelistas referendam a Sua fala: “Este é o meu corpo, que é entregue por vós” (Lc 22, 19) e “Este é o meu sangue da aliança, que se derrama por todos para o perdão dos pecados” (Mt 26, 28).
 Esta entrega dilacerante torna-se um hino comovente pela inspiração de Bach: “Ó fronte ensangüentada e ferida, dolorida e escarnecida! Ó fronte ferida, para zombaria, por uma coroa de espinhos! Ó fronte, antes belamente adornada, com a mais alta das honras e agora assim atacada: Eu te saúdo! Tu, nobre rosto, ante o qual teme e treme o juízo final, de que forma cospem sobre ti! Quão lívido estás! Quem apagou de forma tão infame a luz sem igual dos teus olhos?” (Coral 63).
            Jesus Crucificado se revela como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, pois “entregou o corpo à morte sendo contado como um malfeitor; ele, na verdade, resgatava o pecado de todos e intercedia em favor dos pecadores”. O profeta termina a sua poesia como a começou, por uma proclamação do Senhor exaltando o seu Servo: “Por esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita” e por esta razão nenhuma esperança é sepultada. O élan vital se incendeia no escuro da noite, repousa apenas a grande luz que sabe ser procurada e amada até a madrugada de domingo em que se consuma a nova Criação e as novas Bodas do Cordeiro. Bach empresta do Cântico dos cânticos a poesia do encontro a ser vingado: “Aonde foi o teu amado, ó tu a mais bela dentre as mulheres? Para onde se encaminhou o teu amado? Queremos ajudar-te a buscá-lo” (Coro 36).
            Nesta tarde surda não podemos passar ao largo da Cruz destes homens e mulheres crucificados com o Cristo e cuja aparência de feiúra os torna desprezados pelos cristãos asseados que freqüentam os cultos e se acreditam justos de mãos limpas.
            Na hora da nossa morte, como a de Jesus, peçamos com a poesia de Bach: “Quando eu tiver de partir, não te afastes de mim! Quando eu tiver de sofrer a morte, vem para o meu lado! Quando meu coração estiver invadido pelos maiores temores, arrebata-me da minha aflição com tua angústia e a tua pena! (Coral 72)
            Mais do que nunca é preciso saber que Jesus se fez pão: “Eu sou o pão vivo descido do céu” (Jo 6, 51) e que, se fará, agora e sempre, o Caminho que nos conduzirá à Verdade e à Vida (Jo 14, 6).


CONTEMPLAR

Agnus Dei, Francisco de Zubaran, 1635-40, óleo sobre tela, 38 x 62 cm, Museu Nacional do Prado, Madri, Espanha.



Sábado Santo                   23.04.2011
Gn1, 1-2;Ex 14, 15-15; Ez 36, 16-17a.18-28          Rm 6, 3-11           Mt 18, 1-10


ESCUTAR

“Ó noite em que Jesus rompeu o inferno, ao ressurgir da morte, vencedor: de que nos valeria ter nascido, se não nos resgatasse em seu amor?” (Proclamação da Páscoa).

“Se, pois, morremos com Cristo, cremos que também viveremos com ele. Sabemos que Cristo ressuscitado dos mortos não morre mais; a morte já não tem poder sobre ele” (Rm 6, 8-9).

“Ele não está aqui! Ressuscitou, como havia dito! Vinde ver o lugar em que ele estava” (Mt 28,6).


MEDITAR

“Agora a Palavra desce para a Serpente. A pequena Criança que nos nasceu e nos foi dada, desce na cova da áspide, a estrangula e a mata reduzindo a nada sua violência e o seu orgulho. Agora os infernos se tornam céu, o Hades está cheio de luz, as trevas que outrora amedrontavam se afastaram e os cegos recuperam a visão. Pois o Sol levante, Luz do alto apareceu aos que permaneciam nas trevas e na sombra da morte” (João Damasceno, Homilia para o Sábado Santo).

“Ele ressuscitou não para mostrar que deixa definitivamente o túmulo de nossa terra, mas para provar que mesmo este túmulo dos mortos que é a terra e o corpo do homem estão definitivamente transformados na morada esplêndida e incomensurável do Deus vivo e da alma do Filho em que habita a plenitude da divindade” (Karl Rahner).


ORAR

            O sábado santo é o único dia do vazio litúrgico do ano. A Igreja observa o luto e não celebra a Eucaristia, sacramento da presença do Cristo. Jesus se deixou vencer pela morte para ser tragado com ela nas profundezas mais secretas do mundo para fazer germinar aí o princípio da sua vida divina. Neste momento, Ele começa a transformar o mundo nisto que é Ele mesmo. Nasce uma segunda vez como criança da terra, mas de uma terra transfigurada, liberada e libertada de todo limite; de uma terra que Nele encontra sua base eterna, pois está para sempre livre dos grilhões da morte e da vaidade.
            Quando nos esvaziamos há lugar em nós para a ação de Deus e nesta noite de sábado há alguma coisa a ver e a receber: o Dom mais forte do que a Morte.
            O monge trapista Luc, 82 anos, do mosteiro de Notre Dame de l’Atlas, em Thibirine, na Argélia, antes de ser martirizado após cinqüenta e oito dias de angústia e tortura, e degolado, em 1996, com mais seis dos seus irmãos, escrevera: “A troca da nossa parte é somente o dom. O retorno do dom não depende de nós e é nisto que se arrisca a fé, o salto no vazio. Perder a sua vida é ter a lucidez de que o Cristo não existe para si próprio e é, por esta razão, que encontramos a nossa salvação existindo para Ele, ou seja, para seus irmãos que são também nossos irmãos”.
            Esta passagem da noite à luz exprime a fé no Cristo que passa da morte à vida e torna-se a nossa Luz. Este é o sentido da vigília pascal: uma esperança confiante do Cristo preparada ao longo de três grandes noites: a da Criação, a de Abraão e a da saída do Egito. Escrevia o monge Luc: “Minha única defesa é uma Esperança cega em Deus. É preciso saber a travessia depois morrer e que isso seja, em plena lucidez, na paz do Cristo e no amor aos homens. Deus nos conduz pela mão. A peregrinação continua. Adiante de nós, o Cristo carregando a sua cruz nos mostra o caminho e que no seu término brilha a luz pascal da Ressurreição”.
            A liturgia desta noite nos reafirma a grandeza de Sua presença hoje. Devemos nos deixar impregnar desta generosidade narrativa das imagens e permitir que o Espírito de Deus possa agir profundamente em nosso ser. Tantas vezes sufocamos este Espírito e esta generosa liberdade para nos mantermos nas trevas da segurança e da acomodação.
            “Alegrai-vos!” e “Não temais!” são as palavras de ordem que nos devolvem a esperança e nos arrancam da demissão da vida. Jesus, nesta noite de sábado, nos convida a passar do costume de si para a descoberta de si e nos faz saber que não é o caminho percorrido e nem as suas palavras repetidas que marcam o seguimento, mas o testemunho que oferecemos e damos pela prática do amor fraterno. É este testemunho que destrói o ciclo da morte e nos abre o caminho da Luz.
            Nesta noite de vigília, precisamos ter a esperança de que uma luz grandiosa, que iluminará o mundo, está prestes a nascer das profundezas da noite. É preciso vigiar na esperança para que não morramos um minuto antes de que tudo aconteça. Nesta noite é preciso ser profeta da luz: “Vigia, o que resta da noite? Vigia o que resta da noite? O vigia responde: Virá a manhã e também a noite. Se quereis perguntar, perguntai, vinde outra vez”(Is 21, 11-12).
            Meditemos as palavras de Fr. Christophe, martirizado em Thibirine: “Ora humilhado, ora exaltado, escondido agora, manifestado de repente para ser um dia cumulado pela dileção, é preciso arriscar muita aventura antes de atingirmos este ponto em que experimentamos a pura essência do Amor”.


CONTEMPLAR

Lamentação sobre o Cristo morto, Sandro Botticelli, 1490-1492, têmpera sobre painel de madeira, 107 cm x 71 cm, Alte Pinakotheck, Munique, Alemanha (detalhe Maria Madalena e o Cristo).







Páscoa da Ressurreição                      24.4.2011
At 10, 34a.37-43               Cl 3, 1-4                   Jo 20, 1-9


ESCUTAR

“E Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu Juiz dos vivos e mortos” (At 10, 42).

“Pois vós morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo, em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer em seu triunfo, então vós aparecereis também com ele, revestidos de glória” (Cl 3, 3-4).

“Ele viu e acreditou. De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20, 8-9).


MEDITAR

“Toda história da salvação poderia ser descrita como um drama de amor, como um imenso Cântico dos cânticos. Porém é menos a noiva que procura o noivo que o Deus fiel que procura seu povo adúltero, que procura a humanidade que se desviou dele; ele a procura para ‘lhe falar ao coração’ e reconduzi-la ao seu primeiro amor. Na Páscoa, as bodas são consumadas e no Ressuscitado é a humanidade inteira e o cosmos que se encontram secretamente recriados e transfigurados: o corpo do Ressuscitado é vida pura e não esta mistura de vida e de morte, esta ‘vida morte’ que chamamos de vida” (Athenágoras de Constantinopla).

“Se olharmos nossa vida nesta luz, se nós pensarmos que somos chamados pelo Amor a ser o Templo de Deus, o Santuário do Espírito e o Corpo de Jesus, teremos, frente a nós mesmos, uma atitude de respeito que fará de nós o altar, o tabernáculo onde Deus se revela, onde Deus manifesta Sua vida, transfigurando a nossa para que a nossa comunique a Sua” (Maurice Zundel).


ORAR

            Em Atos, o discurso de Pedro é pronunciado na casa de Cornélio, centurião romano e pagão. O evangelho começara a ultrapassar as fronteiras de Israel e Pedro, contrariando a sua educação e certezas, decide batizar um pagão. A última frase de Pedro é vital nesta sua nova compreensão da realidade espiritual do Evangelho: “Todo aquele que crê em Jesus recebe, em seu nome, o perdão dos pecados”. Se, no início, a salvação fora anunciada a Israel, doravante basta crer em Jesus, o Cristo para receber o perdão dos pecados, ou seja, entrar na Aliança com Deus.
            A liturgia da Igreja, neste domingo de Páscoa, nos faz ouvir um texto tardio após a Ressurreição do Cristo, para nos fazer compreender, de uma vez por todas, a razão da vinda do Cristo entre nós: “Eu nasci, para isso vim ao mundo, para testemunhar a verdade. Quem está a favor da verdade escuta a minha voz” (Jo 18, 37). Todos podem ouvir e compreender esta Voz.
            A ressurreição de Jesus não é como o ressurgimento de Lázaro no mesmo corpo conhecido pelas suas irmãs e vizinhos e para um resto de vida que teria o seu término. Lázaro, ao ser trazido de volta à vida, saiu todo atado nas faixas mortuárias. Seu corpo estava ainda prisioneiro dos grilhões do mundo, pois não era ainda um corpo ressuscitado.
             Ninguém viu o Senhor ressuscitando. O que Madalena, Pedro e João viram foram os sinais e as aparições do Ressuscitado. Não foram os olhos do corpo que O viram, mas os olhos dos seus corações iluminados pelo amor e pela fé.
            Maria Madalena assistirá a primeira aurora desta nova humanidade que as trevas não puderam impedir. João sabe que as faixas de linho no chão são a prova de que Jesus está, doravante, livre da morte, pois estas faixas que O imobilizaram simbolizavam, a passividade da morte. Seu corpo ressuscitado não conhece e nem experimenta mais nenhum entrave ou limite. Diante destas faixas abandonadas e inúteis, João “viu e acreditou”.
            A última frase do evangelho de hoje é espantosa: “De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos”. Foi preciso esperar a ressurreição para que os discípulos compreendessem o mistério do Cristo, suas palavras e suas atitudes. É a ressurreição do Cristo que ilumina todas as Escrituras e as torna luminosas.
            A nossa fé deverá ser alimentada sem nenhuma prova material, além do testemunho das comunidades cristãs que a sustentaram sempre. O desafio é encontrar a força, como Pedro e João, de ler em nossas vidas e na vida do mundo todos os sinais cotidianos da Ressurreição. O Papa Bento XVI nos exorta: “Quando alguém experimenta na sua vida um grande amor, conhece um momento de ‘redenção’ que dá um sentido novo à sua vida” (Spes Salvi 26).
            O Espírito nos foi dado para que a cada “primeiro dia da semana” renovemos a gostosura de amar e ser amado e, fulminados pela Esperança, possamos correr, com todos nossos irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai ao reencontro misterioso do Ressuscitado.


CONTEMPLAR

Cristo levantado do túmulo, Bergognone, c. 1490, óleo sobre painel, 114,5 cm x 61,2 cm, Galeria Nacional de Arte, Estados-Unidos.




Nenhum comentário:

Postar um comentário