quinta-feira, 25 de maio de 2023

O Caminho da Beleza 27 - Pentecostes

Peguei da mão do anjo o livrinho e comi-o. Na boca era doce como mel, mas, quando o engoli, meu estômago tornou-se amargo (Ap 10, 10).

Pentecostes          

At 2, 1-11                  1 Cor 12, 3b-7.13-13                    Jo 20, 19-23

 

ESCUTAR

“Todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua” (At 2, 6).

“A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum” (1 Cor 12, 7).

“E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20, 22).

 

MEDITAR

Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais conta. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que esmaga os vossos ombros e vos faz pender para a Terra, deveis embriagar-vos sem tréguas. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de ternura, à vossa escolha. Mas embriagai-vos. E se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, na solidão baça do vosso quarto, acordais já diminuída ou desaparecida a embriaguez, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, à ave, ao relógio, a Deus, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, a ave, o relógio e Deus vos responderão: “São horas de vos embriagardes! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de ternura, à vossa escolha”.

(Baudelaire)

É isto, o espírito. Esta capacidade de não submeter sua existência, mas de assumi-la no amor para fazer dela uma oferenda luminosa e universal.

(Maurice Zundel)

 

 ORAR

    Tentemos deixar fluir ao menos uma vez na vida o sopro do Espírito no meio e dentro de nós. Deixemos que sejam varridos das cabeças todos os símbolos do poder: coroas, solidéus, mitras com todas as máscaras e disfarces que ornam as liturgias do poder. Permitamos que o sopro arranque as páginas dos nossos códigos, que leve para o mais longe as sandices dos nossos discursos políticos, sociais e religiosos e assistamos ao fogo se ocupar de queimá-los para que nunca mais pretendam dosificar a sua força. Com certeza, será um ganho para todos nós. Ele não sopra para garantir a ordem, para avalizar decisões que prejudiquem o Bem Comum e nem desempenha a função de juiz em nossos jogos com as regras determinadas por nós e para o nosso sucesso. Façamos, ao menos uma vez, com plena confiança no Espírito da Liberdade, a prova de acolher este mesmo Espírito como elemento perturbador, verdadeira inspiração, desmonte das regras fixadas de antemão e portador de coisas jamais vistas, ouvidas e experimentadas antes. Tenhamos a coragem de sermos habitados pelo vento e pelo fogo. É o Espírito da Verdade que vem a nós e nos produz como homens e mulheres que não temem as travessias plurais da vida. O Ressuscitado abre o futuro, abre a porta e abre a esperança do possível. Pentecostes é a festa de todos os possíveis. O Espírito acende em nós uma paixão e uma nova criação nasce de um colossal incêndio que nos deixa enamorados e nos surpreende com as palavras apaixonadas que por falso pudor nunca nos permitimos, publicamente, dizer. O Espírito – vento e fogo – rompe os limites das alcovas e das salas e brinca, diverte-se e ri da nossa sisudez e pretensa seriedade. Vento e fogo são incontroláveis, imprevisíveis e a nova aliança que trazem nos faz orbitar fora de nós e encontrar os outros conhecidos e desconhecidos num abraço amoroso e livre. Não basta nos cercarmos aos próximos, devemos alcançar os que estão distantes. Os discípulos foram considerados embriagados, pois novamente despertavam entusiasmados para anunciar, em todas as línguas, as maravilhas do Senhor. Toda a tentativa de administrar a ação do Espírito e falar em seu nome será um contrassenso. O Espírito de Jesus se encontra na oração, na solidariedade, no perdão, na palavra comprometida e na misericórdia que superam todas as fórmulas e as frases de conveniência, os conselhos moralizantes e as respostas pré-fabricadas. Jesus nos fala de um pecado contra o Espírito que nunca terá perdão. É a blasfêmia de conceder ao Espírito apenas um sussurro e uma sutil e vigiada fissura ao invés de janelas e portas abertas dos corações. O pecado irreparável é a pretensão de falar da coragem cristã e oferecer ao Espírito um pouco menos da metade de todo o resto que concedemos ao medo e a angústia. O pecado sem perdão é falar de Pentecostes sem nunca nos permitir experimentar e viver até as últimas consequências a sua embriaguez.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Saltos do Barco, 2020, Malásia, Igor Atuna (1966-), Arrasate-Mondragón, Espanha, Siena International Photo Awards 2021.




quarta-feira, 17 de maio de 2023

O Caminho da Beleza 26 - Ascensão do Senhor

Peguei da mão do anjo o livrinho e comi-o. Na boca era doce como mel, mas, quando o engoli, meu estômago tornou-se amargo (Ap 10, 10).

Ascensão do Senhor                 

At 1, 1-11                  Ef 1, 17-23               Mt 28, 16-20

 

ESCUTAR

“Uma nuvem o encobriu, de forma que seus olhos não podiam mais vê-lo (...) ‘Homens da Galileia, porque ficais aqui, parados, olhando para o céu?’” (At 1, 9.11).

“Ele manifestou sua força em Cristo, quando o ressuscitou dos mortos e o fez sentar à sua direita nos céus” (Ef 1, 20).

“Ide ao mundo inteiro... Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20).

 

MEDITAR

A pessoa humana é o valor absoluto para Deus porque ela O contém. Na verdade, é um grande mistério: Deus entre os homens, Deus com eles, Deus neles. Nossa dignidade é de Lhe pertencer. Desde o Natal, somos construídos com a mesma matéria do Reino.

(Françoise Burtz)

O que conta não é o que damos, mas o amor com que damos.

(Madre Teresa de Calcutá)

 

ORAR

Neste domingo não comemoramos a “partida” do Mestre, mas a nossa partida, pois somos nós que devemos garantir a sua presença no mundo. Há uma solene investidura: é urgente partir uma vez que o Evangelho deve começar a sua aventura no mundo. A promessa de que o Cristo estará conosco “todos os dias, até o fim do mundo”, desafia a sua Igreja a não banalizar esta presença eficaz e obscurecê-la. Somos chamados a nos encarnar, ou seja, ser uma carne real numa história real; a realizar a missão de anunciar a Boa Nova do Reino; a carregar os pecados do mundo sem ficar, de fora, olhando o que acontece aos seres humanos; e finalmente, ressuscitar dando a todos um quinhão de vida, esperança e gozo. A missão da Igreja de Jesus se inicia com uma partida. Não se trata de multiplicar viagens e atividades, mas dar intensidade e visibilidade evangélica à própria existência. O princípio estruturante da Igreja deve ser o mesmo da vida de Jesus: a misericórdia. É a misericórdia que deve atuar na Igreja de Jesus e configurá-la. Não somos chamados a construir uma comunidade como recordação e ficarmos parados olhando para o céu, pois esta atitude pode nos conduzir a buscar em lugares equivocados e nos emperrar o caminho: “Por que procurais entre os mortos aquele que está vivo?” (Lc 24, 5). Não se trata de congelar lugares especiais e criar peregrinações, mas descobrir juntos, num ponto qualquer do mundo, o lugar e o rosto em que Jesus está presente na terra. A ascensão é um apelo para seguir agindo e esperando apesar das decepções, desenganos e desalentos que nos ameaçam. Somos chamados a “remir os tempos porque os dias são maus” (Ef 5, 16), a ter paciência “até que venha o Senhor” (Tg 5, 7), a resistir como Jó para conhecer “o desfecho que Deus lhe proporcionou, pois o Senhor é compassivo e misericordioso” (Tg 5, 11) e testemunhar que “a paciência engendra a esperança” (Rm 5,4). Entre o dom do Espírito Santo e o acontecimento definitivo do Reino existe uma espera que é o tempo do testemunho e de proclamar a Boa Nova a toda Humanidade. O evangelho começa e termina em Jerusalém. Os Atos começam em Jerusalém e terminam em Roma, ponto de encontro de todos os caminhos do mundo conhecidos na época. O Novo Testamento ultrapassa as fronteiras de Israel e o céu de Jesus é a participação plena na vida do Amor e na construção de comunidades que amam e se colocam abertas ao mundo, servindo a todos sem discriminação. Uma Igreja samaritana marcada e animada pelo princípio da misericórdia é a que deve ser presença no mundo de hoje. Que neste domingo tenhamos a lucidez de proclamar que o Espírito de Jesus não é privilégio dos cristãos, mas de todos os homens e mulheres: “De fato, todos nós judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo e todos nós bebemos de um único e mesmo Espírito” (1 Cor 12, 13).

Manos da Terna Solidão (Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts) 

 

CONTEMPLAR

Ascensão, Salvador Dalí, 1958, óleo sobre tela, 115 x 123 cm, Coleção Simon Perez, México.




quinta-feira, 11 de maio de 2023

O Caminho da Beleza 25 - VI Domingo da Páscoa

Peguei da mão do anjo o livrinho e comi-o. Na boca era doce como mel, mas, quando o engoli, meu estômago tornou-se amargo (Ap 10, 10).

VI Domingo da Páscoa

At 8, 5-8.14-17                  1 Pd 3, 15-18                      Jo 14, 15-21

 

ESCUTAR

“Era grande a alegria naquela cidade” (At 8, 8).

“Amados, santificai em vossos corações o Senhor Jesus Cristo e estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pedir” (1 Pd 3, 15).

“Quem acolheu os meus mandamentos e os observa, esse me ama. Ora, quem me ama será amado por meu Pai e eu o amarei e me manifestarei a ele” (Jo 14, 21).

 

MEDITAR

Um único olhar, um único pensamento, um único batimento do coração, têm uma dimensão infinita. O Amor transfigura todos os cálculos e estatísticas. Não somos mais uma gota impessoal no oceano, mas uma vida insubstituível e um destino que tem o seu próprio valor.

(André Dupleix)

 

 ORAR

     Jesus nos deixa uma possibilidade: “Se me amais, guardareis meus mandamentos”; e não uma ordem: “se sois obedientes não seguirão para o inferno”. Ele diz: “Quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei”. O amor é a única maneira de viver o Cristo e qualquer outro comportamento, ainda que seja irrepreensível, se não for amoroso, não é cristão. A Igreja é a igreja de Jesus não quando é o lugar da obediência, da disciplina, da perfeita organização funcional, do dogmatismo, mas quando é a Igreja do amor e da misericórdia. Jesus, antes de partir, não distribui nenhum diploma e muito menos um certificado de autenticidade cristã. Nossos atos são autenticados por Jesus se estão escritos na língua do amor. Pelo dom do Espírito da Verdade, o Cristo e o Pai estarão presentes no meio de nós: “Não vos deixarei órfãos”. O homem é o lugar onde irrompe o universo celeste, o lugar onde habita o Outro. Devemos nos abandonar, nas entranhas, a esse dom, convencidos, como diz o teólogo Yves Congar, de que “Deus Pai, pelo seu Espírito, faz com que Cristo habite em nossos corações, isto é, nessa profundeza de nós mesmos onde se forma a orientação de nossa vida”. Essa Igreja da interioridade não é intimista, isolada, fechada sobre si mesma, mas uma comunidade de amor e de liberdade expressas na ternura de Deus em cada um e na lealdade entre todos de dar razão da sua esperança e generosidade. A esperança existe quando é convincente o amor que manifestamos em atos concretos. Somos o que praticamos, pois a prática do amor aniquila a ambiguidade das palavras. Jesus vai ao fundo de nós mesmos. Não fica na superfície das aparências. Olha as pessoas como o Pai as olha. Sabe seus sonhos, seus medos, seus sofrimentos e aspirações. Sabe o que cada um é e que é imperativo romper o medo de chegar ao centro de nós mesmos. Sabe aquilo que o poeta Leminski, cheio do Espírito, dizia: “isso de querer ser /exatamente aquilo/que a gente é/ainda vai/nos levar além”. É vital superarmos o comportamento religioso baseado no medo, no pecado e nos limites traumatizantes. O Cristo nos oferece continuamente algo maior e mais além. Oferece-nos a liberdade e a coragem da nossa capacidade mesma de sermos ternos e de amar. Meditemos as palavras de Francisco: “Excluímos da Igreja a categoria da ternura. Vizinhança e ternura são as duas maneiras do amor do Senhor. Elas nos fazem ver a força do amor de Deus.  Não se salva por decreto ou com uma lei: salva-se com ternura”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)


CONTEMPLAR

Rita Lee, 1997, Bob Wolfenson, São Paulo, Brasil.




 

quinta-feira, 4 de maio de 2023

O Caminho da Beleza 24 - V Domingo da Páscoa

Peguei da mão do anjo o livrinho e comi-o. Na boca era doce como mel, mas, quando o engoli, meu estômago tornou-se amargo (Ap 10, 10).

V Domingo da Páscoa 

At 6, 1-7                   1 Pe 2, 4-9               Jo 14, 1-12

 

ESCUTAR

“Naqueles dias, o número dos discípulos tinha aumentado, e os fiéis de origem grega começaram a queixar-se dos fiéis de origem hebraica” (At 6, 1).

“Amados, aproximai-vos do Senhor, pedra vida, rejeitada pelos homens, mas escolhida e honrosa aos olhos de Deus” (1 Pe 2, 4).

“Não se perturbe o vosso coração. Tendes fé em Deus, tende fé em mim também. Na casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14, 1).

 

MEDITAR

Todo deus que não se apresente como resposta à questão do sentido da vida, inerente às preocupações fundamentais da pessoa ou de um determinado grupo humano, é um ídolo, uma ilusão ou um subterfúgio. Um deus ausente da vida torna os humanos vítimas de devaneios mais ou menos infantis, escravos do sagrado e de ideologias inverificáveis.

(Francisco Catão)

 

ORAR

    A leitura do livro de Atos rompe a visão idílica das primeiras comunidades cristãs. Elas sofreram com a pequenez e a miopia dos que se privilegiavam e se protegiam por serem da mesma procedência étnica. Os que deviam se ocupar das necessidades materiais também precisam do dom do Espírito para romper com o seu interesse pessoal e as discriminações que dele decorrem. É o Espírito que nos impede de nos convertemos em prisioneiros das tarefas burocráticas e administrativas. É o Espírito que nos faz saber que o serviço prático não é uma limitação nem o apostolado um privilégio exclusivo, pois cada um de nós constrói a comunidade eclesial a partir da sua originalidade e experiência vital. Somos, como Cristo, pedras angulares, pedras de tropeço e rochas que fazem cair quando a nossa liberdade enfrenta as manobras do poder; quando a nossa pobreza não está disponível para projetos de grandeza passageira; quando a nossa palavra profética estorva os projetos sagazes e sedutores. Somos rochas que fazem cair quando não aceitamos as regras do êxito, da hipocrisia, do carreirismo. Somos pedras vivas quando deixamos de ser inertes, decorativos e facilmente manipulados. Devemos ter a lucidez de que o Cristo é maior do que as igrejas e o Evangelho maior que os nossos sermões. Para as primeiras comunidades, o cristianismo não era uma religião, mas uma nova forma de viver. O Cristo é o Caminho e a Vida mediados pela Verdade. Uma Igreja verdadeira é uma Igreja que se parece com Jesus. Uma Igreja que arrisca a perder prestígio e segurança por defender, como Jesus, a causa dos últimos. Para Jesus, a esfera divina não é uma realidade exterior ao homem, mas interior: existe uma fusão entre o Pai e os homens que estende ao infinito a sua capacidade de amar. Jesus é o Caminho de um amor generoso que pode nos amedrontar por ser custoso. É este amor generoso que nos conduzirá a crer no esforço para a transformação do mundo e a não dissipar, num longínquo céu, os tesouros destinados para a terra. Mais do que nunca devemos afirmar que “Deus contemplou a sua obra e viu que tudo era belo” (Gn 1, 31).


(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

O Sagrado Coração de Jesus, 1962, Salvador Dalí (1904-1989), óleo sobre tela, 86.5 cm x 61 cm, coleção privada.