sexta-feira, 31 de maio de 2024

O Caminho da Beleza 28 - IX Domingo do Tempo Comum

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

IX Domingo do Tempo Comum

Dt 5, 12-15              2 Cor 4, 6-11          Mc 2, 23-28

 

 

ESCUTAR

 

“Guarda o dia de sábado, para o santificares, como o Senhor teu Deus te mandou” (Dt 5, 12).

 

Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos pela angústia; postos entre os maiores apuros, mas sem perder a esperança; perseguidos, mas não desamparados, derrubados, mas não aniquilados (2 Cor 4, 8-9).

 

Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou curada (Mc 2, 5).

 

 

 

MEDITAR

 

“Somente na ação é que se encontra a liberdade. Abandona o vacilar medroso e enfrenta a tempestade dos acontecimentos, sustentado somente pelo mandamento de Deus e por tua fé, e a liberdade envolverá jubilosa o teu espírito”.

 

(Dietrich Bonhoeffer)

 

“Os nossos sonhos são demasiado pequenos e, se Deus os desfaz, é para que nos possamos aventurar no espaço mais vasto da sua Vida. Deus liberta-nos de pequenas ambições para que possamos aprender a ter uma esperança mais extravagante”.

 

(Timothy Radcliffe)

 

 

ORAR

 

Os textos da liturgia de hoje nos afirmam que o único critério possível para se romper qualquer norma, regra ou lei sagrada é o da compaixão e do amor que brotam do coração. Em nome dele, em inúmeras situações, Jesus rompe os preceitos, sem vacilar, pois acima da lei está Deus que é Amor! No Evangelho, os mestres da lei e os fariseus são a encarnação da aparência satisfeita consigo mesma. Eles se colocam diante da Lei e nela se espelham. A Lei pensa por eles e é preciso que os outros façam como eles, pois só eles sabem a forma certa de cumprir a Lei e de interpretá-la: fora da sua interpretação não existe salvação. Para os mestres da Lei, os outros são os “outros”. Jesus nos ensina a vibrar com a justiça e com o amor e a não vivermos preocupados com uma lista de obrigações e deveres, nem com o nosso coração grudado num catálogo querendo impor ao outro a parcela de verdade ou de crença que seriam as nossas. Os valores evangélicos não são valores para serem vividos solitária e isoladamente, pois são valores de encontros vitais entre as pessoas, encontros de sonhos e desejos. Não podemos viver nos alimentando de códigos e nem gravitando numa ordem abstrata e asséptica de regulamentos e regras. Leis, códigos, regulamentos e regras, foram feitos para serem, permanentemente, re-inventados: “O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado”. O Evangelho revela que Jesus veio abolir todos os sentimentos de culpa que paralisam e obstruem os nossos desejos e sonhos. Jesus nos testemunha e exige de nós que amemos e aceitemos todos os riscos sem jamais protelarmos os nossos sonhos e desejos, baseados nesse amor, em nome de qualquer regra ou preceito por mais sagrado que seja. Pois se a lei é sagrada, é o amor que nos santifica. Santo Agostinho assustou e ainda assusta gerações de piedosos cumpridores das leis ao afirmar: “Ama e faze o que quiseres!”.

 

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

O Papa visita uma igreja local, 1982, Roma, Itália, Richard Kalvar (1944-), Magnum Photos, Estados Unidos.




sexta-feira, 24 de maio de 2024

O Caminho da Beleza 27 - Santíssima Trindade

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

Santíssima Trindade     

Dt 4, 32-34.39-40                       Rm 8, 14-17            Mt 28, 16-20

 

 

ESCUTAR

 

“Reconhece, pois, hoje, e grava-o em teu coração, que o Senhor é o Deus lá em cima no céu e cá embaixo na terra e que não há outro além dele” (Dt 4, 39).

 

“Vós não recebestes um espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, no qual todos nós clamamos: Abá, ó Pai!” (Rm 8, 15).

 

“Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20).

 

 

MEDITAR

 

A Divindade é em sua onisciência e onipotência como uma roda, um círculo, um todo que não pode nem ser compreendido, nem dividido, nem iniciado e nem finalizado (...) Deus os abraça. Vocês são circundados pelos braços do mistério de Deus.

(Hildegard von Bingen) 

Eu amo muito a Trindade: cada pessoa da Trindade é voltada para a outra. A religião que me foi ensinada é uma “religião para...”, isto é, uma religião que sai de si, que se inclina para fora de si.

 

(Soeur Emmanuelle)

 

O Cristo procura na minha alma a vontade do Pai; o Pai procura nela a imagem do Filho: quando todos os dois se reencontram na mina alma, ela está plena do Espírito Santo.

 

(Hans Urs von Balthasar)

 

 

ORAR

 

A festa da Santíssima Trindade não é uma simples formalidade nem uma representação dogmática. Ela nos convida a tentar viver e a nos insurgir contra uma certa insensibilidade em nós e em torno de nós à urgência de Deus e à envergadura do seu Mistério. Neste domingo, devemos entrar neste mistério adorável de saber que a dinâmica da Trindade é o Amor. É uma eterna comunicação, pois não existe nem um olhar-para-si, mas sempre e eternamente um olhar-para-o-outro. O Pai é um eterno olhar para o Filho assim como o Filho é um olhar eterno para o Pai e toda a Luz divina brota desta troca como a visibilidade de um dom eternamente realizado. Meditemos as palavras do dominicano Eckhart escritas no século XIV: “O Pai sorri para o Filho e o Filho sorri para o Pai e o sorriso faz nascer o prazer, o prazer faz nascer a alegria e a alegria faz nascer o amor”. Toda a alegria brota do dom nesta dança eterna em que qualquer posse é impossível, pois a grandeza consiste no dom de si mesmo. A vida de Deus é sempre uma vertiginosa troca, partilha e uma circulação infinita expressa no respirar do Pai, pelo sangue do Filho, na água e no fogo do Espírito. A vida da Trindade acontece em nós mesmos sem que a percebamos e nela “nem morte nem vida, nem anjos nem potestades, nem presente nem futuro, nem poderes nem altura nem profundidade, nem criatura alguma nos poderá separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus Senhor nosso” (Rm 8, 38-39). É no silêncio que esta vida se manifesta, pois a alegria verdadeira começa quando, enfim, com os olhos fechados e os lábios cerrados percebemos a dinâmica amorosa do Pai, pelo Filho e no Espírito Santo. Esta festa exige uma profunda revisão de vida e a perguntarmos sobre a esterilidade de um amor que se debruça sobre si mesmo e de um egoísmo que se idolatra. O Cristo nos revelou a Trindade para fazer surgir em nós uma liberdade total ante os olhos do egoísmo mortal que assola o mundo, aniquila as culturas, domina os mais fracos, corrompe os poderes civis e religiosos, e que, sobretudo, pela ganância, destrói a natureza criada para o bem de toda a humanidade por todos os séculos. Eis o mistério: Deus para nós, Deus em nós e Deus conosco.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

 

Trindade, ícone anônimo, 1680, têmpera sobre madeira, 180 x 140 cm, Mosteiro Catedral da Ascensão, Kremlin, Moscou, Rússia.




 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

O Caminho da Beleza 26 - Pentecostes

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

Pentecostes           

At 2, 1-11                 1 Cor 12, 3-7.13-13                    Jo 20, 19-23

 

 

ESCUTAR

 

“Todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua” (At 2, 6).

 

“A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum” (1 Cor 12, 7).

 

“E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20, 22).

 

 

MEDITAR

 

É isto, o espírito. Esta capacidade de não submeter sua existência, mas de assumi-la no amor para fazer dela uma oferenda luminosa e universal.

(Maurice Zundel)

 

 

ORAR

 

Tentemos deixar fluir ao menos uma vez na vida o sopro do Espírito no meio e dentro de nós. Deixemos que sejam varridos das cabeças todos os símbolos do poder: coroas, solidéus, mitras com todas as máscaras e disfarces que ornam as liturgias do poder. Permitamos que o sopro arranque as páginas dos nossos códigos, que leve para o mais longe as sandices dos nossos discursos políticos, sociais e religiosos e assistamos ao fogo se ocupar de queimá-los para que nunca mais pretendam dosificar a sua força. Com certeza, será um ganho para todos nós. Ele não sopra para garantir a ordem, para avalizar decisões que prejudiquem o Bem Comum e nem desempenha a função de juiz em nossos jogos com as regras determinadas por nós e para o nosso sucesso. Façamos, ao menos uma vez, com plena confiança no Espírito da Liberdade, a prova de acolher este mesmo Espírito como elemento perturbador, verdadeira inspiração, desmonte das regras fixadas de antemão e portador de coisas jamais vistas, ouvidas e experimentadas antes. Tenhamos a coragem de sermos habitados pelo vento e pelo fogo. É o Espírito da Verdade que vem a nós e nos produz como homens e mulheres que não temem as travessias plurais da vida. O Ressuscitado abre o futuro, abre a porta e abre a esperança do possível. Pentecostes é a festa de todos os possíveis. O Espírito acende em nós uma paixão e uma nova criação nasce de um colossal incêndio que nos deixa enamorados e nos surpreende com as palavras apaixonadas que por falso pudor nunca nos permitimos, publicamente, dizer. O Espírito – vento e fogo – rompe os limites das alcovas e das salas e brinca, diverte-se e ri da nossa sisudez e pretensa seriedade. Vento e fogo são incontroláveis, imprevisíveis e a nova aliança que trazem nos faz orbitar fora de nós e encontrar os outros conhecidos e desconhecidos num abraço amoroso e livre. Os discípulos foram considerados embriagados, pois novamente despertavam entusiasmados para anunciar, em todas as línguas, as maravilhas do Senhor. Toda a tentativa de administrar a ação do Espírito e falar em seu nome será um contrassenso. O Espírito de Jesus se encontra na oração, na solidariedade, no perdão, na palavra comprometida e na misericórdia que superam todas as fórmulas e as frases de conveniência, os conselhos moralizantes e as respostas pré-fabricadas. Jesus nos fala de um pecado contra o Espírito que nunca terá perdão. É a blasfêmia de conceder ao Espírito apenas um sussurro e uma sutil e vigiada fissura ao invés de janelas e portas abertas dos corações. O pecado irreparável é a pretensão de falar da coragem cristã e oferecer ao Espírito um pouco menos da metade de todo o resto que concedemos ao medo e a angústia. O pecado sem perdão é falar de Pentecostes sem nunca nos permitir experimentar e viver até as últimas consequências a sua embriaguez.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Pentecost, 1989, Andrew Wyeth (1917-2009), têmpera, 20,75” x 30,625”, Coleção Particular, Estados-Unidos.




quinta-feira, 9 de maio de 2024

O Caminho da Beleza 25 - Ascensão do Senhor

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

Ascensão do Senhor                  

At 1, 1-11                  Ef 1, 17-23               Mc 16, 15-20

 

 

ESCUTAR

 

“Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?” (At 1, 10).

 

“Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos” (Ef 1, 18).

 

“Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (Mc 16, 20).

 

 

MEDITAR

 

Não fiques imóvel
à beira do caminho,
não congeles a vida,
não ames com fastio,
não te salves agora,
não te salves nunca

Não te enchas de calma,
não reserves do mundo,
apenas um cantinho feliz,
não deixes cair pesadas
pálpebras como juízos definitivos,
não fiques sem lábios,
não durmas sem sonho,
não te penses sem sangue,
não te julgues sem tempo.

Mas se
apesar de tudo,
não podes evitar;
e congelas a vida,
e amas com fastio,
e te salvas agora,
e te enches de calma,
e reservas do mundo,
apenas um cantinho feliz,
e deixas cair pesadas pálpebras como juízos definitivos,
e te secas sem lábios,
e dormes sem sonho,
e te pensas sem sangue,
e te julgas sem tempo,
e ficas imóvel
à beira do caminho,
e te salvas;

então
não fiques comigo.

(Mario Benedetti)


ORAR

 

Nesta festa, os sentimentos são ambíguos: desilusão e espera; tristeza e alegria; decadência e consolo; cansaço e vontade de recomeçar. Sobretudo, domina uma pergunta de fundo: trata-se de uma conclusão ou um princípio? É preciso superar a catequese simplista e pueril que até hoje nos subjuga: Jesus veio ao mundo, permaneceu nele trinta e três anos, terminou sua missão com um incidente político, mas num final feliz voltou aos céus. Em suma, cumpriu a sua parte e agora cabe às igrejas assumir a parte que lhes cabe neste latifúndio até o Juízo Final quando serão julgadas pelo que fizeram na sua ausência. As coisas, infelizmente, não são tão lineares. Na trajetória cristã tudo aparece sob o signo da instabilidade e da imprevisibilidade. Somos herdeiros de uma fé vivida na obscuridade, mas com a certeza da ressurreição como sinal de que o mundo pode avançar, que as forças do mal podem ser derrotadas apesar das incertezas e contradições: tudo está cumprido e tudo está por se fazer. As rotas são inúmeras e diversas: um espiritualismo desencarnado, um apostolado burocrático e sem alma, uma missão fundamentalista e intolerante. E, no entanto, a beleza de ser cristão é a de que nada está decidido de antemão; nenhum programa está definido de uma vez por todas. A beleza de ser cristão se encontra na travessia que deve ser inventada e reinventada a cada dia. Como dizia Guimarães Rosa: “Viver é rasgar-se e remendar-se!”. Somos chamados a conquistar um sentido da realidade sem jamais perder a esperança, a honrar a cada dia um compromisso, por menor que seja, ainda que seja desproporcional a este mundo que resiste às mudanças. O cristão é o homem que admite as próprias misérias para experimentar a força que vem do Espírito e, por meio, de pequenos sinais de compaixão e fraternidade, manifestar o amor transbordante do Cristo. Jesus cumpre os profetas e, entre o dom do Espírito e o acontecimento definitivo do Reino, existe uma espera de tempo que deve ser preenchida pelo testemunho do amor fraterno “até as extremidades da terra”. O teólogo jesuíta Karl Rahner enfatiza: “O Cristo está de agora em diante no coração de todas as humildes coisas que compõem a vida da terra, esta terra que não podemos abandonar, pois ela é a nossa mãe”. A humanidade de Jesus é de tal modo perfeita que é necessário, agora e sempre, escrever a palavra Deus, e sua divindade é de tal modo real que é, também, preciso escrever, eternamente, a palavra Homem.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

 

Ascensão, Salvador Dalí, 1958, óleo sobre tela, 115 x 123 cm, Coleção Simon Perez, México.