quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O Caminho da Beleza 50 - Todos os Santos e Santas

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).


Solenidade de Todos os Santos                    

Ap 7, 2-4.9-14                   1 Jo 3, 1-3                Mt 5, 1-12

 

 

ESCUTAR

“Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 13).

Amados, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! (1 Jo 3, 2).

“Bem-aventurados... Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5, 11-12).

 

MEDITAR

Ser santo é suportar o olhar de Deus.

(Hans Urs von Balthasar)

 

ORAR

A celebração de todos os santos e santas, para que seja verdadeira, deve agitar dentro de nós uma mistura de sentimentos: gratidão e remorso; admiração e raiva; orgulho e nostalgia; alegria e inquietude; paz e desconcerto. Os santos quando surgem no nosso horizonte são uma provocação, pois a verdadeira vocação, tantas vezes falida, na nossa vida, é a santidade. O melhor escondido no nosso coração é a santidade. João nos fala do grande presente que o Pai nos deu, mas, atolados nas nossas vidas deficitárias, estamos mais preocupados em supervalorizar os fracassos, os erros e os infortúnios. A santidade não é feita de matérias extraordinárias e nem de fenômenos excepcionais. Ela é feita exclusivamente de amor. É o amor que faz os santos e santas, pois são os que não temem se deixarem amar. Se a santidade nos parece difícil e quase impossível é porque não temos a coragem de nos abandonarmos ao amor. O Senhor permanece desconhecido porque são muito conhecidas e difundidas as suas caricaturas. As bem-aventuranças são uma alegria concreta, duradoura e não um raio de momentos felizes que não se repetem. Elas jamais se dissolvem porque têm a mesma duração de Deus e Deus nunca retira a sua palavra. Temos apenas que nos aproximar da Palavra para ouvir e compreender o segredo da felicidade em Deus. Santos e santas são todos os que tiveram a coragem de dar esse passo, de abandonar a maneira habitual de interpretar a vida. A provocação desta festa de hoje é unir a vocação da santidade – que é a vocação de todos – com a vocação da alegria. Os santos e santas são os impacientes da alegria e na alegria aprendem a suportar o olhar amoroso de Deus. A pertença ou não ao Reino não se justifica pela adesão a verdades ortodoxas da fé, mas à prática ou não do amor. Um dia, vamos conhecer os verdadeiros santos de todas as religiões e de todos os ateísmos: os que viveram amando, no anonimato, sem nada esperar.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Cordeiro de Deus, Cláudio Pastro (1948-2016), vitral na Capela do Mosteiro do Encontro, Irmãs Beneditinas, Mandirituba, Paraná, Brasil.

 



quinta-feira, 24 de outubro de 2024

O Caminho da Beleza 49 - XXX Domingo do Tempo Comum

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).


XXX Domingo do Tempo Comum              

Jr 31, 7-9                 Hb 5, 1-6                 Mc 10, 46-52

 

 

ESCUTAR

 

“Salva, Senhor, teu povo, o resto de Israel” (Jr 31, 7).

 

Todo sumo sacerdote é tirado do meio dos homens e instituído em favor dos homens nas coisas que se referem a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados (Hb 5, 1).

 

Então Jesus lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” O cego respondeu: “Mestre, que eu veja!” (Mc 10, 51).

 

 

MEDITAR

 

Não é a idade o nosso problema. O nosso problema é a senectude e a atrofia da alma, não importa a idade cronológica. Nosso problema é que, educados em uma espiritualidade do silêncio e do sucesso, perdemos de vista a espiritualidade do risco.

 

(Joan Chittister, osb)

 

Aquele que sai de sua preguiça e de sua esterilidade espiritual para penetrar na ação interior viva; ele está decidido a ver se realizar o reino de Deus, ele tem a vontade de fixar sua natureza inconstante na decisão e na perseverança. Eis o que exprime o Amém.

 

(Romano Guardini)

 

 

ORAR

 

Jesus tem predileção pelos que emergem da multidão e superam todas as barreiras de proteção para estabelecer um contato direto com Ele. Bartimeu é um provocador, rompe o cerimonial e introduz um elemento que estava fora do programa. Age como o personagem da canção de Chico Buarque: “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Jesus para ao ouvir o seu grito e não continua mais o roteiro traçado. O grito do cego tem o poder de pará-Lo. Jesus diz: “Chamai-o”. Temos que reconhecer que somos nós, homens das igrejas que criamos barreiras protetoras e filtros seletivos. Ao invés de transmitir o convite, controlamos, como fiscais, os documentos; fixamos as regras inflexíveis para o encontro que jamais será pessoal, mas burocrático e cheio de maneirices pré-estabelecidas. Não suportamos o grito que incomoda e tentamos domesticá-lo para que se torne mais circunspecto. Está na hora de aprendermos o alfabeto do grito que nos desestabiliza em nossas seguranças e programações. Decoramos ad nauseam as perguntas rituais, mas para o grito imprevisível nossas respostas são ridículas, pois para os gritos não existem respostas pré-fabricadas. Temos que romper as liturgias do medo e do decoro e, como Jesus, viver ao ar livre, caminhar o caminho das pessoas comuns, não temer os muitos gritos de socorro que brotam dos lugares pelos quais passamos e que, muitas vezes, fazemos não ouvir para que não atrapalhem a trajetória dos nossos passos. Jesus sempre acolhe os passos clandestinos de quem O busca e clama por sua misericórdia. Não fomos encarregados para sermos tutores da tranquilidade e da segurança de Jesus, pois Ele está no meio de nós, disponível para ser incomodado. Francisco reitera na sua exortação: “Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (Evangelii Gaudium 49).

 

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

 

CONTEMPLAR

 

Cura do homem cego, Edy-Legrand (Edouard Léon Louis Warschawsky), obra a carvão em Bíblia editada por François Amiot e Robert Tamisier, França, 1950. 


















quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O Caminho da Beleza 48 - XXIX Domingo do Tempo Comum

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).


XXIX Domingo do Tempo Comum            

Is 53, 10-11             Hb 4, 14-16            Mc 10, 35-45

 

 

ESCUTAR 

 

“Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas” (Is 53, 11).

 

“Aproximemo-nos então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4, 16).

 

“Quem quiser ser grande, seja vosso servo; e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos” (Mc 10, 43-44).

 

 

MEDITAR

 

A gratuidade consiste acima de tudo em não levar em consideração nenhuma satisfação humana. A gratuidade lança a semente, sem esperar a aparição de qualquer fruto que seja; ela trabalha num Reino onde a única certeza é a da presença misteriosa do Cristo. Eis o que é a verdadeira gratuidade, ó Senhor: dar-me sem cálculo, ao serviço do coração do homem.

 

(Carlo Maria Martini)

 

 

ORAR

 

Os textos deste domingo nos colocam diante do valor fundamental da nossa sociedade atual: o status e o poder. O evangelista, ao narrar o pedido dos filhos de Zebedeu, denuncia o fisiologismo, a busca da satisfação de interesses, de vantagens pessoais ou partidárias, em detrimento do bem comum: queimando todas as etapas do seguimento de Jesus, sobretudo a cruz, os dois pediam para estar, lado a lado, na glória do Senhor. A ambição do poder rompe todo e qualquer princípio, transforma-se numa violenta injustiça porque corrompe as pessoas, gera a discriminação, legitima a traição, incentiva a divisão, estimula o cinismo e aguça os preconceitos que amarram a vida, diminuindo a nossa própria humanidade. O pedido é sumariamente recusado e Jesus os faz descobrir a condição para o acesso à glória: o servir a todos. Jesus não estabelece uma regra para vencer na vida, mas traça o caminho do seguimento. Servir não é desaparecer, nada fazer, dar algumas poucas horas voluntárias ou recusar responsabilidades. Servir é tornar público o nosso testemunho de amor ainda que sejamos vítimas do ardil das pessoas que só pensam em si mesmas, como Tiago e João. O caminho da cruz não é feito de um dolorismo, como muitas vezes somos levados a pensar. O caminho da cruz não é um sofrer, mas é, antes de tudo, um servir. A pedagogia de Jesus, como uma sinfonia, vai num crescendo: primeiro, devemos tomar a nossa cruz e arriscar a nossa vida pelo Evangelho; depois viver entre irmãos num testemunho de amor fraterno e, finalmente, assumirmos a identidade com o Cristo-Servo até o dom da sua vida por todos. Jesus tinha uma autêntica repugnância a todas as manifestações de ambição e de arrivismo entre os seus discípulos. As intrigas entre as igrejas e o carreirismo muitas vezes se servem do Cristo como tapume do egoísmo e são abomináveis aos olhos do Senhor. O papa Francisco exorta: “Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mc 6, 37)” (EG 49). Jesus entendia que o ser humano não é chamado apenas para sobreviver, mas para expandir tanto a plenitude da sua própria humanidade quanto a do mistério de Deus. Ele nos conclama a possuirmos tão plenamente a nossa vida que possamos doá-la sem medo. Jesus marca a sua vida por uma liberdade tão assustadora para os que não são livres que eles se levantam com ira para destruir o doador da vida. Numa vida assim beber o cálice é sorver, até a última gota, o amor que conseguimos como entrega e oblação; e ser batizado é mergulharmos no risco que acarreta de sermos cristãos no mundo de hoje, pois Jesus não está do lado do triunfo e do sucesso, mas da fraqueza e da morte. Que possamos, como cristãos, diante da responsabilidade que nos cabe na transformação do mundo, pedirmos: “Pai amoroso, perdoa-nos quando dermos importância demais àquilo que a Ti pouco importa!”.

 

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Cristo destacado da cruz (Courajod Christ), século XII, madeira com traços policromados, 155 x 168 x 30 cm, Museu do Louvre, Paris, França.




 

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

O Caminho da Beleza 47 - XXVIII Domingo do Tempo Comum

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).


XXVIII Domingo do Tempo Comum         

Sb 7, 7-11                 Hb 4, 12-13             Mc 10, 17-30

 

 

ESCUTAR

 

“Orei, e foi-me dada a prudência; supliquei, e veio a mim o espírito da sabedoria” (Sb 7, 7).

 

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

 

“É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus” (Mc 10, 25).

 

 

MEDITAR

 

O caminho para a fé passa pela obediência ao chamado de Cristo. Exige-se um passo decisivo, senão o chamado de Jesus ecoa no vácuo, e todo suposto discipulado, sem esse passo ao qual Jesus nos chama, transforma-se em falsa onda entusiástica.

(Dietrich Bonhoeffer)

A única possibilidade humana de converter um rico, consiste em despojá-lo de sua riqueza.

(Murilo Mendes)

 

ORAR

 

No evangelho de hoje, Jesus revela que a riqueza e o dinheiro são mais perigosos que o demônio, pois são eles que nos bloqueiam a compaixão, a autenticidade e a coragem diante das incertezas da vida. Para Jesus, a questão essencial não é a da pobreza, mas a da riqueza. Somos consumidos pela ilusão de encontrar no dinheiro alguma coisa que poderia acalmar as nossas angústias existenciais e o avarento suja o dinheiro porque não o usa, mas o esconde e o deixa, após a morte, para a ferrugem, para os ladrões e para o diabo que dividirá a família por causa da herança material. São João Crisóstomo pregava: “O meu e o teu são a causa de todas as discórdias”. Os homens são os únicos seres do mundo a saber que jamais escaparão da realidade da morte e, diante disto, a acumulação de bens não basta para enfrentar este inverno, pois ainda que nos tornássemos ricos o nosso medo não teria limite e o nosso terror não teria fim. A única saída para o enfrentamento da nossa finitude é aceitar a nossa pobreza essencial diante de Deus, deixarmo-nos conduzir pelo movimento do Espírito e abrir os nossos corações ao desespero e à miséria dos outros. São Basílio exortava: “Procurais celeiros? Vós os tendes: estes celeiros são o estômago dos pobres que têm fome”. Jesus, neste evangelho, acalma-nos a angústia e nos faz superar a atitude de sermos, ao mesmo tempo, juízes e carrascos de nós mesmos: “Só Deus é bom”. Jesus faz o jovem rico, assim como nós, ganhar a lucidez ao descobrir o vínculo imediato que existe entre a superficialidade da sua/nossa vida e a coisificação do seu/nosso ser pelo dinheiro e pela posse desmedida dos bens materiais. É o dinheiro que nos converte em cegos à miséria que coexiste ao nosso lado e surdos aos gritos de aflição dos que são vitimados pela indigência. Uma sociedade que estimula o consumismo deixa como herança uma montanha ornada pelo vazio bocejante do dinheiro que tudo devora e que, ao digerir o devorado, expele-o como merda espiritual, cultural e religiosa. O salmista previne: “Se a vossa fortuna prospera, não lhe deis o coração” (Sl 62, 11). O olhar de Jesus, que procuramos evitar, ao virarmos a face para não ver os pobres, desnuda a nossa falência interior e a nossa impotência humana para a doação e o risco. Jesus nos revela que o cêntuplo durante esta vida não será a prosperidade das riquezas materiais, mas a riqueza das riquezas: a vida eterna. O alerta de São Francisco ecoa até hoje para a Igreja que ajudou a reconstruir: “A riqueza traz o poder e o poder dilui a presença do Evangelho”. E o papa Francisco nos lembra: “Se as coisas, o dinheiro, a mundanidade se tornam o centro da nossa vida, nos aprisionam, nos possuem, nós perdemos a nossa própria identidade de seres humanos: escutai bem, o rico do Evangelho não tem um nome, ele é simplesmente ‘um rico’” (Homilia, 29.9.2013). Meditemos as palavras de Jesus, narradas pela comunidade de Mateus: “Não acumuleis riquezas na terra onde roem a traça e o caruncho, onde os ladrões arrombam e roubam. Acumulai riquezas no céu, onde não roem traça nem caruncho, onde ladrões não arrombam nem roubam. Pois onde está tua riqueza, aí estará teu coração” (Mt 6, 19-21).

 

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Porque era muito rico, 1894, George Frederic Watts (1817-1904), óleo sobre tela, 1397 x 584 mm, TateCollections, Reino Unido.




quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O Caminho da Beleza 46 - XXVII Domingo do Tempo Comum

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).


XXVII Domingo do Tempo Comum                      

Gn 2, 18-24            Hb 2, 9-11               Mc 10, 2-16

 

 

ESCUTAR

 

“Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne” (Gn 2, 24).

 

“Pois tanto Jesus, o Santificador, quanto os santificados, são descendentes do mesmo ancestral; por esta razão, ele não se envergonha de chamá-los irmãos” (Hb 2, 11).

 

“Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este mandamento” (Mc 10, 5).

 

 

MEDITAR

 

O que é essencialmente novo no Evangelho, é uma nova dimensão de grandeza: a dimensão da generosidade. A grandeza é a de ser generoso; a grandeza é a de saber dar; a grandeza é a de se dar, dar todo o seu ser e de tudo dar dando-se a si mesmo.

 

(Maurice Zundel)

 

Então Ele olhou para mim, o meio-dia de Seus olhos estava sobre mim, e disse: “Tens muitos amantes e todavia só Eu te amo. Os outros homens amam a si mesmos em tua intimidade. Eu amo-te por ti mesma. Outros homens veem em ti a beleza que desvanecerá mais cedo que seus próprios anos. Mas Eu vejo em ti a beleza que não desvanecerá... Só Eu amo o que é invisível em ti”.

(Diálogo entre Jesus e Miriam de Mijdel, Kalil Gibran)

 

ORAR

 

        A narrativa de Gênesis é poética e nos desvela que é na mulher que o homem se reconhece a si mesmo: “Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada “mulher”, porque foi tirada do homem”. Adão descobre o seu companheiro para o amor: o ser que brota ao preço da ferida do seu coração. Este ser que o Criador lhe entrega após um longo sono era semelhante a ele, mas diverso. E o esponsal se fez: ser um para ser diverso. No Evangelho, Jesus não se refere a nenhuma prescrição da lei, mas retoma a cena da manhã original não como uma lembrança do passado, mas como a imagem do paraíso e de uma realidade essencial inserida no coração: “Os dois formarão uma só carne, assim, já não são dois, mas uma só carne”. Não havia regras para o amor, nem leis, pois não havia necessidade disto. Jesus não prescreve nenhuma legislação matrimonial. Não era casado e, escandalosamente, convidava os que queriam segui-Lo a deixar tudo – família, vida acomodada, propriedades, bens acumulados. Jesus nos afirma que a nossa única regra, que resume toda a Lei e os profetas, é a do amor, tal como existia no paraíso, pois só o seu sopro possui a amplidão e a infinitude do próprio Deus. Por essa razão, não podemos aniquilar este amor e desfazê-lo.  Podemos tornar os amantes infelizes, infligir-lhes todos os males e sofrimentos, persegui-los até a morte, mas não saberíamos matar o amor: “As águas torrenciais não poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo” (Ct 8, 7). Para Jesus e o seu Evangelho, o amor não tem, por princípio, necessidade de nenhuma lei que o regulamente. Jesus nos queria e quer como pessoas livres capazes de construir vínculos de amor indissolúveis que nos convertam em dom recíproco. Jesus garante que o vínculo entre os que se amam vem da força de origem divina que trazemos em nós, esta extraordinária potência libertadora do amor. Para Ele, são as pessoas, inundadas e sustentadas pelo sopro divino, que fundam e respondem pelos esponsais e não os poderes civis e religiosos que os institucionalizam. O amor salva e as leis que inventamos salvaguardam os direitos dos mais fortes. Só a dureza de coração tem necessidade de leis rígidas que nada têm a ver com as palavras de amor que Deus quer ouvir pronunciadas entre nós, criados à sua imagem e semelhança, quando viu que era belo tudo o que havia criado. Moisés legisla para proteger a mulher da maldade e desamor dos homens que, arbitrariamente, as repudiavam como se pudessem atirar a primeira pedra. Jesus, do mesmo modo nos desafia: “Geração adúltera, até quando terei que vos suportar?” E uma geração adúltera é uma geração que se prostitui aos ídolos, que hoje são produzidos pelo mercado para nos iludir e colocar em outros amores os nossos corações. E Deus perdoa ao seu Povo-Esposa o adultério, pois seu amor é sem limites e sua aliança irrevogável. Jesus não nos deixa ludibriar e esquecer que a maior traição é casar sem se esposar! 

 

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

 

CONTEMPLAR

 

O Cântico dos Cânticos IV, Marc Chagall, 1958, Coleção “A Mensagem Bíblica”, óleo sobre tela, 144,5 x 210,5 cm, Museu Nacional Marc Chagall, Nice, França.