quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O Caminho da Beleza 14 - VIII Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

VIII Domingo do Tempo Comum               

Eclo 27, 5-8                        1 Cor 15, 54-58                 Lc 6, 39-45

 

ESCUTAR

Não elogies a ninguém antes de ouvi-lo falar, pois é no falar que o homem se revela (Eclo 27, 8).

Meus amados irmãos, sede firmes e inabaláveis, empenhando-vos, cada vez mais na obra do Senhor (1 Cor 15, 58).

“Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão e não percebes a trave que há no teu próprio olho” (Lc 6, 41).


]MEDITAR

Quem fala muito, dá bom dia a cavalo.

(João Guimarães Rosa, 1908-1967, Brasil)


ORAR

     Guimarães Rosa já dizia que o “pior cego é aquele que vê”. Enxergamos no outro aquilo que não vemos em nós mesmos, como diz a parábola do evangelho de hoje. Jesus recusou radicalmente qualquer situação de poder, pois sabia que o poder corrompe o espírito e nos cega para o mundo. No poder, executamos o julgamento fácil, projetando para o outro, que é diferente de mim, todos os defeitos e fraquezas que ocultamos em nós mesmos. Lembremos o que disse o sábio místico e eremita João Clímaco sobre a recusa evangélica do julgamento fácil entre os monges que buscavam o amadurecimento espiritual. “As quedas dos iniciantes provêm, na maior parte, da avidez (e vaidade). Nos que progridem vêm também de uma alta consideração por si mesmos (o orgulho). [Mas] para os que se aproximam da perfeição, vêm unicamente do fato de julgar o próximo”. Temos que estar vigilantes para que nossas instituições não se tornem uma máquina que destrói as pessoas ou, ao contrário, justifica as suas infidelidades. Precisamos orar e nos colocar à disposição do Espírito para que possamos sempre renunciar a ver e a escutar na Palavra de Deus apenas o que nos convém, o que está de acordo com os nossos hábitos e costumes, nossos gostos e índoles e os de nossas instituições e movimentos. Muitas vezes, somos cegos em perceber que o pão que oferecemos é acompanhado de dominação, de exploração, de destruição da natureza, de amargura ocasionada pela concorrência, de corrupção dos interesses, mas, sobretudo, da má distribuição mundial: a abundância de uns e a pobreza de muitos. O vinho que oferecemos é um dos instrumentos mais trágicos da degradação humana: embriaguez, alcoolismo, lares desfeitos, dívidas e suicídios. Na eucaristia, ao oferecermos, na mesa do Senhor, pão e vinho, frutos da terra, da videira e do trabalho, nos comprometemos a oferecer tudo o que eles significam: tudo o que está fragmentado e sem amor; tudo o que está dissolvido na mentira e na hipocrisia. A cada novo ofertório, para que o pão e o vinho se transformem, pelo Espírito, no corpo e sangue de Jesus, nos comprometemos, definitivamente, com a dor, a miséria e a perplexidade do mundo, mas também com a fraternidade, a compaixão, a solidariedade e os pequenos gestos de amor que transformam vidas e podem criar “um novo céu e uma nova terra onde habitará a justiça” (2 Pd 3, 13). O mais importante é sabermos o que somos diante de Deus e não o que parecemos ser aos olhos dos outros. Por isso, devemos orar como São Tomás de Aquino: “Concede-me, Senhor Deus, um coração vigilante que nenhum pensamento estranho afaste para longe de Ti; um coração nobre que nenhuma afeição indigna abata; um coração reto que nenhuma intenção equívoca desvie; um coração firme que nenhuma adversidade quebre; um coração livre que nenhuma paixão violenta domine”.   

(Manos da Terna Solidão)


CONTEMPLAR

"O pior cego é aquele que vê", 2022, Manos da Terna Solidão, Curitiba, Brasil.





quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O Caminho da Beleza 13 - VII Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

VII Domingo do Tempo Comum                 

1 Sm 26, 2.7-9.12-13.22-23                  1 Cor 15, 45-49                  Lc 6, 27-38


ESCUTAR

“O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e a sua fidelidade” (1 Sm 26, 23).

Como foi o homem terrestre, assim são as pessoas terrestres; e como é o homem celeste, assim também vão ser as pessoas celestes (1 Cor 15, 48).

“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36).


MEDITAR

HONRAR A VIDA 

Não....

Permanecer e transcorrer

Não é perdurar, não é existir

E nem honrar a vida!

Há tantas maneiras de não ser

Tanta consciência sem saber, adormecida...

Merecer a vida, não é calar e consentir

Tantas injustiças repetidas...

É uma virtude, é uma dignidade

É a atitude de identidade mais definida!

Isto de durar e transcorrer não nos dá o direito

De presumir, porque não é o mesmo que viver

Honrar a vida.

 

Não....

Permanecer e transcorrer

Nem sempre quer sugerir

Honrar a vida!

Existe tanta pequena vaidade

Em nossa estúpida e cega humanidade.

Merecer a vida é erguer-se verticalmente,

Muito além do mal e das quedas...

É como dar à verdade e à nossa própria liberdade

As boas-vindas!

Isto de durar e transcorrer não nos dá o direito

De presumir, porque não é o mesmo que viver

Honrar a vida.

(Eladia Blazquez/Mercedes Sosa)


ORAR

     O Evangelho de hoje nos revela a condição do agir cristão: a generosidade. Ela é quem responde pela grandeza da alma e a nobreza do caráter. Jesus nos dá as referências de uma prática sem a qual seremos, como diz o Papa Francisco, cristãos hipócritas: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles(...) Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”. O Pai nos apela a sermos generosos com todos, pois esta é a forma de justiça que Ele quer. Vivemos num ciclo de violência, do familiar ao religioso, que só será rompido em seus grilhões de morte quando formos capazes de criar elos de amor gratuitos e sem medidas: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados”. Somos nós, os cristãos, os que rogamos pragas, uns contra os outros, e amargamos o coração com as palavras que dele saem. Jesus nos previne que esta atitude pode nos levar ao limite da intolerância: “Chegará um tempo quando quem vos matar pensará oferecer culto a Deus” (Jo 16, 2). É a louca generosidade, o amar com toda gratuidade da oblação, que nos faz ir além da monotonia da vida cotidiana, dos gestos repetidos, dos sorrisos formais na representação diária no cenário do mundo. As bem-aventuranças são a desmedida de todos os limites que nos impomos: “Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante, será colocada no vosso colo; porque, com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos”. Temos que aniquilar as defesas que nos aprisionam na ilusória fortaleza da fé. A fé cristã é um espaço aberto e sem limites no qual vivemos sem nenhuma proteção.  O poeta dos tempos passados escreveu: “Quem passou pela vida em branca nuvem e em plácido repouso adormeceu (...) foi espectro de homem e não homem, só passou pela vida, não viveu” (Francisco Otaviano). Temos sido cristãos sem nervura e adormecidos como as igrejas que nos resguardam pela submissão e covardia. Somos chamados a ser cristãos com vértebras firmes e erguidas verticalmente; a darmos as boas vindas à verdade e à própria liberdade. Somos cristãos para proclamar, profeticamente, que passar pela vida não é o mesmo que viver, pois além de estar vivo, é preciso, mais do que nunca, honrar a Vida.

(Manos da Terna Solidão)


CONTEMPLAR

Liang Yaoyi, de 11 anos, com tumor cerebral, declara, antes de morrer, desejar doar seus órgãos para salvar outros doentes. Os médicos reverenciam a ele e à sua mãe, 2013, Shenzhen, China, fonte: China Daily.




 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

O Caminho da Beleza 12 - VI Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

VI Domingo do Tempo Comum                   

Jr 17, 5-8                 1 Cor 15, 12.16-20            Lc 6, 17.20-26

 

ESCUTAR

“Maldito o homem que confia no homem e faz consistir sua força na carne humana, enquanto o seu coração se afasta do Senhor” (Jr 17, 5).

Se os mortos não ressuscitam, então Cristo também não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vã é vossa fé (1 Cor 15, 16).

“Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome por causa do Filho do homem!” (Lc 6, 22).

 

MEDITAR

Alguns cristãos (...) acham que têm o dever moral de estar sempre a sorrir porque Jesus nos ama. Seamus Heaney chama-lhe ‘o sorriso fixo de um lugar pré-reservado no Paraíso’, e nada há mais deprimente.

(Timothy Radcliffe, 1945- , Reino Unido)

 

ORAR

      Neste mundo onde os valores materiais se impõem, a qualquer preço e custo, somos confrontados com uma escolha sem volta: sermos benditos ou malditos. A benção se manifesta quando rompemos a nossa autossuficiência e vamos ao encontro dos mais necessitados. A maldição nos é conferida pelo nosso amesquinhamento contínuo, material e espiritual, que não encontra mais razão e sentido para amar. O Papa Bento XVI nos alerta: “Se em minha vida negligencio completamente a atenção ao outro, importando-me apenas com ser ‘piedoso’ e cumprir meus ‘deveres religiosos’, então definha também a relação com Deus. Nesse caso, trata-se de uma relação ‘correta’, mas sem amor”. O Evangelho de hoje nos apresenta quatro bênçãos: para os pobres, para os famintos, para os aflitos e para os perseguidos e quatro maldições: para os ricos, para os favorecidos, para os saciados e para os de “status” social e religioso. Jesus nos chama a uma religião encarnada, uma religião que enfrente, por amor, tudo o que destrói a humanidade, sobretudo a corrida ao dinheiro, ao conforto material e à satisfação imediata. O Papa Francisco afirma reiteradamente: “Prefiro um ateu verdadeiro que ame do que um cristão hipócrita”. Para Jesus, os pobres não são somente os despossuídos, mas os que diante do dinheiro não o idolatram porque sabem que a maldição não é possuir bens, mas ser possuído por eles. Os possuídos pelos bens bastam-se a si mesmos. São ricos sem Deus, porque não precisam Dele para nada: Mamon lhes basta. Paulo nos conclama a crer na ressurreição de Jesus e acreditar que cada um de nós ressuscitará na exata medida do que foi capaz de viver e dar em sua travessia. A nós cristãos é lançado o desafio de nos entregarmos confiantes aos desígnios do Pai e superarmos o orgulho e a vaidade de nos bastarmos a nós mesmos. A ressurreição dos que nos precederam será uma bênção de reencontros e para os que se pensam imortais por causa de suas posses só lhes restará a maldição da melancolia de uma cama vazia numa varanda do céu.


CONTEMPLAR

Melancolia, 2021, Guillermo Espinoza (1985-), Monochrome Photography Awards 2021, Espanha/Alemanha.




sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O Caminho da Beleza 11 - V Domingo do Tempo Comum

A palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante que espada de dois gumes (Hb 4, 12).

V Domingo do Tempo Comum        

Is 6, 1-2a.3-8                     1 Cor 15, 1-11                      Lc 5, 1-11

 

ESCUTAR

“Ouvi, então a voz do Senhor que dizia: ‘A quem enviarei? Quem irá por nós?’ Respondi: ‘Aqui estou! Envia-me’” (Is 6, 8).

“Por último, apareceu também a mim, que sou como um aborto. Pois eu sou o menor dos apóstolos, nem mereço o nome de apóstolo, pois eu persegui a Igreja de Deus” (1 Cor 15, 8-9).

“Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador de homens!” (Lc 5, 10).

 

MEDITAR

Senhor, ensina-me a te descobrir sem cessar e seja a respiração de minha vida. Meu céu interior, meu sol escondido, minha ternura e que eu possa, por tua graça, refletir tua face a todos os meus irmãos (Maurice Zundel).

Ir na contracorrente: isso faz bem ao coração, mas nos falta coragem para ir na contracorrente e Ele nos dá essa coragem! Não há dificuldades, provas, incompreensões que devam nos amedrontar se ficarmos unidos a Deus como os ramos são unidos à vinha, se não perdermos a amizade com Ele, se sempre Lhe abrirmos, cada vez mais, lugar em nossas vidas (Papa Francisco).

 

ORAR

O profeta ensina que a cada nova manhã devemos nos apresentar diante do Senhor não para conseguir a previsão do futuro, mas para recebermos o que nos foi consignado para este dia. O Senhor, imprevisível em suas decisões ao chamar alguém, é também imprevisível ao delegar tarefas cotidianas. Ele sempre nos surpreende com os pedidos mais audaciosos que sempre nos incomodam, pois sua palavra nunca é tranquilizadora. O Senhor nunca nos pedirá bagatelas, mas o que nos compromete para que não faltemos com os compromissos decisivos da vida. O evangelho de hoje revela que quando as palavras da nossa experiência se esgotam e ficamos desiludidos, ouviremos a Sua voz imperiosa: “Avança mais para o fundo e ali lançai vossas redes para a pesca”. Não somos chamados a ficar estacionados no raso da praia lamentando o eterno movimento dos barcos, mas a arriscarmos, largamente, confiantes na Palavra do Senhor que sempre nos recompensará abundantemente. O milagre da vida está em, apesar das aparências e do derrotismo, confiar na Palavra que vira tudo do avesso. Nos três relatos da vocação aquele que é chamado descobre a própria insuficiência e miséria. Isaías exclama: “Ai de mim, estou perdido. Sou um homem de lábios impuros”; Paulo se reconhece como uma espécie de aborto e Pedro suplica: “Afasta-te de mim, porque sou um pecador”. O Senhor quando envia alguém não faz nenhum exame das suas virtudes, mas reconhece e agradece a sua disponibilidade. A Palavra de Deus não age em nosso lugar, não consola as nossas frustrações e nem melhora, num passe de mágica, a nossa situação. Ela sempre nos desinstala e nos coloca a caminho. Somos chamados para viver, avançar nas ondas e nas tempestades do mundo e sempre recomeçar a pesca. O discipulado deve aprender a viver na insegurança de quem “nada tem, mas possui tudo”. Não podemos fincar os pés nas areias para que a espuma do mar os lave, mas arriscar a vida pelos outros e, por esta razão, Jesus invoca: “Vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13, 14). Ele nos desvela que o único porto seguro em que devemos ancorar nossas vidas é o amor fraterno construído e conquistado na travessia dos nossos barcos. Estejamos sempre atentos e em posição de sentinelas para que em todo momento e em cada novo chamado possamos responder: “Aqui estou, envia-me!”.

(Manos da Terna Solidão)

 

CONTEMPLAR

Conversão de Paulo, 2004, Fiona Worcester, 35 cm x 35 cm, óleo e têmpera sobre madeira com gesso, Londres, Reino Unido.